Futuro Perigoso
Mª Del Mar Agulló
Os avanços médicos conseguiram curar toda a população mundial, transformando as doenças em meras lembranças. Devido a essas curas, o sistema imunológico das pessoas foi afetado, ficando exposto a novos vírus mortais. Bem-vindos à era dos vírus e dos hologramas. No futuro, vários séculos depois da época atual, os avanços médicos permitirão que a população não adoeça. Esses avanços debilitarão nosso sistema imunológico, deixando-o exposto a uma variedade de novos vírus mortais. Carolina e Keysi, duas jovens virologistas sem muita coisa em comum, serão as encarregadas de lutar contra os novos vírus, encontrando antígenos que os façam desaparecer, e terão que descobrir a si mesmas, enquanto lidam com sua complicada vida privada. As duas colegas farão uma amizade que as fará crescer como pessoas. Tudo vai se complicar quando a cura de vários desses vírus se tornar uma tarefa impossível, e o planeta passar a enfrentar uma situação crítica. Por outro lado, Mónica, uma mulher jovem, viúva, com dois filhos e sem trabalho, terá que lutar para sobreviver em uma sociedade ultramoderna, em que a tecnologia invadiu tudo, e em que os empregos estão mais escassos. Sua vida mudará drasticamente ao se apaixonar pelo homem errado. Atreva-se a entrar na era holográfica, um mundo futurista, cheio de tecnologia, e em que a humanidade terá que enfrentar vários desafios, inclusive uma possível extinção. Conseguirão as duas jovens virologistas encontrar um antígeno que salve o mundo? Conseguirá Mónica prosperar com sua família?
Mª del Mar Agulló
Futuro Perigoso
FUTURO PERIGOSO
Mª del Mar Agulló
Título: Futuro perigoso
© Mª del Mar Agulló, 2020
Tradutor: Lucas Rodrigues Oliveira (https://www.traduzionelibri.it/profilo_pubblico.asp?GUID=5ea513d10f3d32ad30288e60ec14d2fd&caller=pubblicazioni)
Ilustração da capa: mores345
Design da capa: © Mª del Mar Agulló
Primeira edição
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Para Xena
1. A ordem a partir do caos
Carolina trabalhava em um laboratório. Ela era uma jovem de vinte e cinco anos de Maiorca e que estava escrevendo uma tese de biologia. Ela estudava vírus que afetavam os humanos de forma mortal. Procurava possíveis antígenos e, quando entendia que estavam prontos, testava-os em "cobaias humanas".
As cobaias humanas eram pessoas que se dedicavam a usar seu corpo para fins de estudo clínico. Primeiro, era injetado o vírus, e, depois, o antígeno. Eram submetidas a uma grande variedade de testes antes, durante e depois do processo. Qualquer um poderia ser uma cobaia humana (CoHu); a única condição era ser maior de idade e não ter nenhuma doença mental que afetasse a capacidade de decisão. Os laboratórios pagavam muito bem. Apesar de, no início, a sociedade ser contrária à ideia, com o tempo as cobaias se tornaram populares. Atualmente, havia filas de espera.
Havia duzentos anos que as cobaias humanas existiam de forma legal, quando o governo da Finlândia legalizou esses experimentos com humanos. Logo chegaram outros países, até que a maioria aderiu. Antes de ser legalizada, essa prática era ilegal e punida com prisão para os funcionários dos laboratórios.
Muita gente morria nos testes. Alguns porque os antígenos não funcionavam, outros por causa de infecções. Em caso de morte, a família recebia uma grande quantia em dinheiro por vários anos, de acordo com o contrato que havia sido assinado. Havia pessoas que não morriam, mas acabavam com sequelas, como paralisia facial, perda de visão, ganho repentino de peso, entre outras, muitas delas com cura, outras não. Havia também pessoas que passavam por alterações em parte de sua aparência física; algumas ficavam com manchas por todo o corpo, outras sofriam modificações na cor do cabelo ou dos olhos, na altura, etc.
Atualmente, os vírus mortais haviam se multiplicado de forma exponencial, tornando indispensável o trabalho de Carolina e seus colegas.
***
Keysi era a típica britânica, com olhos azul-claros e cabelos loiros. Ela morava na Espanha havia três anos, quando conheceu em Londres seu atual namorado, um jovem estudante espanhol da mesma idade, intercambista do Programa Erasmus. Keysi havia trabalhado em laboratórios na Inglaterra, na Alemanha e, agora, na Espanha. Seus pais eram alemães, e seus avós eram ingleses, então ela não tinha problemas com os idiomas.
Fazia dois anos que Keysi era colega de laboratório de Carolina. As duas tinham a mesma idade e mantinham uma relação cordial. Keysi gostava de trabalhar em silêncio, sem ninguém para incomodá-la; na melhor das hipóteses, ela tolerava música clássica. Entretanto, Carolina falava sem parar, o que no início incomodava a britânica. Após os primeiros dias trabalhando juntas, Keysi disse a Carolina que não conseguia se concentrar se ela não parasse de falar sobre sua vida. A partir daquele dia, o relacionamento delas se baseava nos bons dias e noites de dedicação diária.
O trabalho de Keysi no laboratório era o mesmo de sua colega: procurar antígenos. Diferente de Carolina, ela sentia a necessidade de encontrar mais de um antígeno; não suportava a ideia de que houvesse pessoas que morressem por causa de um erro seu. Em seus testes, já tinha perdido duas cobaias humanas; com Carolina, morreram três cobaias.
– Bom dia, senhoritas – disse um homem de quase dois metros de altura e cabelos volumosos, entrando pela porta da Sala 4, onde as duas virologistas trabalhavam diariamente.
– Bom dia, senhor Norberto – respondeu Keysi.
– Trouxe cinco novos vírus. Tenham muito cuidado ao manipular, os rapazes da seção de coleta de vírus tiveram dificuldade para encontrar eles. O primeiro – Norberto levantou uma pequena garrafa contendo uma substância esverdeada. – é um vírus que coletamos na Índia; estima-se que tenha afetado trezentas mil pessoas, das quais sessenta mil morreram. Tem prioridade dois e, nas próximas semanas, pode se tornar um, se ele se atingir outros países. Perguntas? – Norberto olhou para Keysi e Carolina, que se entreolharam. – Esse outro – Norberto ergueu um frasco em forma de esfera que continha uma substância que parecia areia vermelha. – é um vírus que encontramos na fronteira entre a China e a Mongólia; lá, eles apelidaram de areia que voa, devido às tempestades que aconteceram nos últimos meses, que faziam com que esse vírus – Norberto apontou para o frasco. – saísse voando por causa do vento. O número de pessoas afetadas é desconhecido, tem prioridade cinco e é muito perigoso em contato com a água. Esse outro – Norberto pegou uma garrafa contendo uma substância azul parecida com massa de modelar. – é um grande mistério. Foi encontrada pela senhorita González – a senhorita González era filha de Norberto e a melhor no departamento de coleta de vírus. – na costa da Austrália durante suas férias. Ele começou matando uma grande quantidade de animais marinhos que apareceram na costa. Mais tarde, o vírus passou para as pessoas.
– Como passou dos animais para as pessoas? – perguntou Keysi.
– Por contato direto. A primeira pessoa afetada, o paciente zero, foi uma das pessoas que transportaram os corpos sem vida dos animais.
– Como sabemos que foi o paciente zero? As outras pessoas que retiraram os animais das praias não se contagiaram? – perguntou Carolina.
– Não, não se contagiaram. Todas as outras pessoas foram testadas, e todas estavam e continuam saudáveis. As próximas pessoas afetadas pelo vírus foram duas mulheres que atenderam nosso paciente zero no hospital.
– O que aconteceu com o paciente zero? – perguntou Keysi.
– Ele morreu três dias depois de ter sido infectado, assim como as duas mulheres e outras vinte pessoas.
– Quando tudo isso aconteceu? Por que não falaram nada na televisão? – perguntou Carolina.
– Carolina, todos os dias descobrimos novos vírus mortais. Não dá pra divulgar todos, ou o caos reinaria em cada lugar em que aparecesse um novo vírus. Imagine o que aconteceria na Austrália se dissessem que existe um vírus que pode matar em três dias e que não tem cura. Ou na Índia, que é um foco de surgimento de vírus, onde sessenta mil pessoas morreram só com esse vírus aqui. Nosso trabalho é vencer a guerra contra esse mal, que hoje é a principal causa de morte no mundo. Quando descobriram a cura do câncer, do mal de Alzheimer e de todas as doenças que agora são história, nosso corpo ficou mais forte, mas também mais fraco, e é dessa fraqueza que esses vírus se aproveitam. – Norberto foi até a janela e olhou, sentindo saudade; seu bisavô ficou famoso por descobrir uma vacina contra qualquer tipo de câncer, motivo pelo qual ele decidiu se tornar biólogo. Por várias décadas, as pessoas não morreram de doenças, mas um dia, uma mulher, em sua casa em Paris, começou a ficar doente. Depois de três horas, ela morreu por causa de um vírus. Desde então, os vírus se multiplicaram, e novos laboratórios eram abertos todos os dias para estudá-los em busca de uma cura. – A prioridade desse vírus é três. Se aumentar o número de vítimas, vai subir pra dois. – Norberto apontou para um pequeno frasco oval contendo uma substância de um tom amarelo esverdeado. – Esse aqui é um vírus encontrado aqui na Espanha, especificamente na província de Sória. Foi detectado ontem à noite; logo depois, uma de nossas equipes foi pra lá imediatamente pra coletar amostras. Afetou duas pessoas, um casal de idosos. A mulher morreu algumas horas depois do contágio, que foi entre duas e seis horas antes; o marido ainda tá vivo. A prioridade desse vírus é nível nove. E, por último, temos esse outro vírus – Norberto pegou uma garrafa cilíndrica contendo um líquido azul-claro. —, que vem de uma montanha fria da Noruega. Foi descoberto por acaso. Um alpinista tava passeando nas montanhas quando começou a se sentir mal e a sangrar pela boca. Ele correu o máximo que pôde até um abrigo de montanhistas, onde, já inconsciente, foi levado pra um hospital. O alpinista chegou ao hospital em parada cardíaca. Por sorte, conseguiram fazer a reanimação, e ele ainda tá vivo. Todos os alpinistas do abrigo começaram a sofrer os mesmos sintomas minutos depois, assim como aqueles que tavam no hospital naquele momento. Algumas horas depois, o hospital tava em quarentena, e continua até agora.
– Meu Deus, quantos infectados temos agora? – perguntou Keysi, que estava boquiaberta.
– Umas quinhentas pessoas até essa manhã, pode ser que agora já tenha alcançado mil. É muito contagioso, e o pior é que não sabemos a forma como se espalha.
– Quando tudo isso aconteceu? – perguntou Carolina.
– Ontem à tarde. Sairá no jornal do meio-dia. Tem prioridade dois. Meninas, ao trabalho.
– Espere, por que temos uma amostra desse vírus tão rápido? – perguntou Carolina.
– Nos enviaram de um laboratório da Noruega. Segundo eles, somos os melhores.
O laboratório de Norberto, O Farol da Luz, tinha prestígio internacional. Para trabalhar lá, primeiro era necessário passar por uma série de exames teóricos e práticos muito exigentes.
A pesquisa de antígenos tinha um grau de prioridade de um a nove, sendo um o maior grau. No início, o nível da prioridade foi delimitado pelo número de mortes, que depois foi alterado para o número de infectados, até que, no final, cada laboratório passou a escolher a prioridade de acordo com seu próprio sistema. O laboratório de Norberto escolhia a prioridade de encontrar um antígeno com base em cálculos que projetassem o número de infectados e mortos nos próximos dias.
Keysi fazia anotações de tudo o que Norberto tinha dito em uma agenda, e logo compartilhava com Carolina. A inglesa tinha uma memória eidética, por isso não precisava fazer anotações enquanto Norberto falava.
Aquele dia seria duro. Eles tinham trazido cinco vírus; poderia demorar horas, dias, semanas ou meses para descobrir os antígenos. Cada segundo era importante. A vida ou a morte de várias pessoas dependia de gente como elas.
Keysi então voltou ao vírus com o qual estava trabalhando antes de Norberto aparecer; era de prioridade dois, e ela estava prestes a encontrar o antígeno.
– Acho que consegui – disse Keysi.
– O quê? – perguntou Carolina, que estava imersa em seus pensamentos.
– O antígeno para o vírus de Cancún. Vou mandar para Norberto testar, já temos trabalho suficiente.
– Você não vai procurar outros possíveis antígenos? – Keysi estava sempre procurando por vários antígenos.
– Carolina, eu tô nervosa, muita gente tá morrendo, temos que nos apressar.
– Keysi, se acalme, desse jeito você não vai ajudar. Se quiser, pode tirar o dia de folga.
– Tirar o dia de folga? Com esse caos? – perguntou a inglesa, perdendo a paciência.
– Nesse caso, vá pra cafeteria, tome um café, relaxe. Se quiser, ligue pro seu namorado – Keysi fez uma careta. – e depois, quando tiver melhor, volte.
– Tá bom, vou ligar pra Clara – Clara era a secretária de Norberto, que atuava como garota de recados.
A secretária de Norberto entrou na sala depois de alguns minutos.
– Clara, leve esse antígeno pra Norberto, diga a ele que tá pronto pros testes, e que esse é o de Cancún.
– Clara, diga também a Norberto que eu gostaria de ter uma cópia dos relatórios do hospital do alpinista norueguês e o do caso zero da Austrália – disse Carolina.
Keysi seguiu o conselho de Carolina e foi tomar alguma coisa na sala que era usada para relaxar, mas ela não ligaria para o namorado, com quem tinha discutido, talvez pela última vez.
Keysi voltou para o local onde trabalhava, a Sala 4. Carolina já tinha começado a trabalhar com o vírus da Índia.
A britânica ficou ali, com a porta aberta, olhando para sua colega. Carolina se virou e olhou para ela, sem entender nada. Naquele momento, a britânica começou a chorar, então Carolina foi até ela e a abraçou.
– O que aconteceu, Keysi?
– Meu namorado me largou.
Carolina tinha visto o namorado de sua colega poucas vezes, em festas de Natal e em algum outro evento no laboratório. Ele parecia um rapaz muito atraente, mas um pouco antipático.
– Talvez ele não fosse o melhor cara para você.
– Carolina, eu sei que ele não era, mas isso não facilita as coisas. Eu deixei toda a minha vida na Inglaterra por ele, aprendi espanhol e vim morar em Maiorca com ele.
– Não tem mais volta?
– Não tem mais volta? – repetiu Keysi. – Eu não quero que tenha volta.
– Eu pensei que vocês tavam indo bem.
– A gente tava, até que no ano passado eu fiquei grávida.
– Eu não sabia disso – Carolina estava surpresa.
– Nem eu, até que era muito tarde. Uma noite, meu namorado levantou à meia-noite pra pegar um copo d'água. A cama tava cheia de sangue; aparentemente eu tava sangrando porque algo não tava funcionando dentro de mim. Eu tava tendo um aborto e nem sabia que tava grávida. Tava de dois meses. Tudo aconteceu muito rápido. Nos dias seguintes, eu tava triste, mas tudo continuava do mesmo jeito. – Keysi fez uma pausa. – A gente devia continuar.
– Claro – respondeu Carolina.
Essa tinha sido a conversa mais íntima que as duas colegas haviam tido, e também a mais longa. As duas continuaram trabalhando. Keysi adorava Richard Wagner, então Carolina foi ao computador e colocou uma playlist de Wagner, sem dizer nada.
Elas decidiram que cada uma criaria um antígeno para todos os cinco vírus, compartilhando informações para acelerar o processo.
2. Sou uma sobrevivente
Eram dez da manhã. Mónica tinha deixado seu filho pequeno, Samuel, na escola. Naquele dia, chegou mais tarde porque tinha um check-up marcado com o médico. Samuel nasceu como qualquer outra criança, mas algo mudou com dois meses de vida. Samuel estava ficando cego, e o avô de Mónica também era cego. Graças ao progresso da medicina, uma operação simples foi suficiente para parar a cegueira e recuperar a visão perdida. Samuel tinha que ir ao médico a cada seis meses para verificar se a visão estava perfeita.
Mónica estava caminhando para sua casa, pensativa. Ele estava desempregado, mas recebia uma pensão como viúva. Ele tinha que pagar o aluguel da casa em que morava com seus dois filhos, Samuel e Óscar, as contas do mês, o uniforme das aulas de karatê de Samuel e todas as despesas em geral. Seu marido tinha morrido de parada cardíaca quando detectaram a cegueira precoce de Samuel; infelizmente, não havia cura para tudo.
O seu marido era o pai de Samuel. O pai de Óscar era um antigo namorado da escola que ela não suportava. Pedir ajuda financeira era a última coisa que pensava em fazer.
Para Samuel, que tinha quatro anos, seu irmão mais velho era como um pai, mesmo que ainda faltassem vários dias para que ele atingisse a maioridade.
Antes de voltar para casa, ela encontrou uma de suas vizinhas, que tinha comprado um carro novo muito caro, que sempre havia sido a obsessão de seu marido.
– Oi, vizinha.
– Oi, Maribel.
– Você parece triste. Tudo bem na consulta de Samuel?
– Tudo bem, brigada.
– Você viu o carro que eu comprei? – disse, esboçando um grande sorriso. – Não pense que eu ganhei na loteria ou alguma coisa assim, conseguimos isso trabalhando.
Os vizinhos de Mónica tinham um açougue que não estava passando por seus melhores momentos. Mónica duvidava que a pequena empresa pudesse render tanto.
– Também não pense que roubamos um banco. Como disse, conseguimos trabalhando. Hoje à tarde, se você quiser, podemos dar uma volta com você e as crianças.
Depois de dizer isso, ela piscou, entrou em seu carro possante e saiu.
Outra vizinha saiu de casa para forçar um encontro com Mónica.
– Você viu o carro de Maribel?
– Sim, Rocío, eu vi – Mónica estava cansada e queria entrar em casa.
– Mas você sabe como eles conseguiram? Já ficou sabendo?
– Ela me disse que trabalhando.
– Trabalhando? Eu não chamaria assim. Ela foi a um desses lugares onde eles te injetam um vírus e depois injetam o antivírus. Se você se curar, fica rico, se não, bem…
– Você quer dizer que eles trabalharam como CoHu?
– Mas isso não é trabalhar, é sorte. E pensar no dinheiro que pagaram pra eles…
–Rocío, é trabalho, e além disso é muito perigoso, e também é necessário. Tem que ser muito corajoso para deixar que injetem um vírus mortal sem saber se você vai sobreviver.
Depois de dizer isso, ela entrou em casa, deixando a vizinha falando sozinha.
Suas duas vizinhas, Maribel e Rocío, eram muito parecidas. Eles competiam em tudo, queriam ser as primeiras a saber de tudo. Todos os vizinhos fugiam delas assim que as viam se aproximar. Para Mónica, suas duas vizinhas fofoqueiras eram cansativas.
Assim que a porta se fechou, a campainha tocou. Mónica abriu a porta, saindo para a pequena varanda da casa. Um homem baixinho, com pouco cabelo e óculos esperava na porta.
– Oi, Mónica – o homem cumprimentou.
– Oi, Ignacio.
– Tudo bem com Samuel?
– Sim, tudo perfeito – respondeu Mónica, que pensava que seus vizinhos não a deixariam em paz nem por um momento.
– Fico feliz. – o homem tirou os óculos e os limpou. – Vi você entrar e aproveitei pra vir perguntar se você já tem o dinheiro do aluguel.
– Ignacio…
– Você me deve dois meses, sem contar com o atual. Sou bom com você porque você tem dois filhos pra cuidar sozinha, mas eu também tenho que comer.
Mónica olhou automaticamente para a barriga proeminente de Ignacio, e, sem saber por que, começou a rir. Ignacio olhou para ela irritado.
– Desculpe, mas acho que a minha pensão de viúva não dá pra tanto.
– Então você vai ter que procurar outro lugar…
Mónica bateu a porta sem deixar Ignacio terminar de falar. Mónica sabia que as ameaças de Ignacio nunca eram cumpridas; no ano anterior, ela chegou a dever seis meses, e ele não a despejou. Mónica era uma mulher de trinta e quatro anos bastante atraente, aos olhos de Ignacio inclusive. Ele vinha flertando com Mónica desde que ela tinha se mudado, alguns anos atrás, após a morte de seu marido.
Ignacio era seu vizinho, mas também era o dono de todo o bloco de casas. Ele comprou depois que ganhou na loteria, quando as casas estavam 90% construídas. Ele morava em uma delas e alugava as outras. Vários vizinhos tentavam comprá-las, mas ele recusava, alegando que assim ganhava mais dinheiro.
Ignacio morava sozinho. Todos os vizinhos pagavam um dia, exceto Mónica, por isso que ela, quando ouviu que ele também precisava comer, começou a rir. Ela sabia que ele não precisava de dinheiro, ao contrário dela.
Mónica sentou-se em sua mesa e começou a fazer contas. Naquele mês, também não poderia pagar o aluguel a Ignacio, era impossível. Ela analisou as ofertas de emprego em vários sites, nada em que pudesse trabalhar: uma oferta muito bem paga como engenheiro de computação, uma oferta para ser o motorista pessoal de uma celebridade, outra oferta procurando um advogado e assim por diante. Mónica havia começado uma carreira em arquitetura, mas depois de dois anos ela a deixou. Depois disso, ele fez vários cursos de design de interiores e exteriores, e depois começou a trabalhar como assistente de arquitetos, como designer de interiores e outros trabalhos correlatos. Ela também trabalhou como jornalista freelancer para vários veículos de comunicação.
Mónica levantou-se da mesa e foi até a janela com um café na mão esquerda, sua mão mais hábil. Ela ligaria para se informar sobre a oferta de motorista. A princípio, poderia aceitá-la. A parte ruim era o horário; ela teria que contratar uma babá para ficar com Samuel pela manhã e levá-lo para a escola.
Ao meio-dia, Óscar e Mónica comeram macarrão pré-cozido em silêncio, com o som de fundo da televisão. Ela estava com uma expressão séria.
– Mãe, o que tá acontecendo?
– Temos problemas de dinheiro.
Óscar sorriu.
– Como sempre.
– Isso é engraçado pra você?
– Não, mãe, mas a gente também não tá tão mal.
– Não posso pagar o aluguel, nem os boletos…
– Mãe, para. Com a pensão de viúva e a pensão de órfão, podemos pagar quase tudo se economizarmos um pouco.
– Você tá certo, podemos pagar tudo, menos o aluguel, e já faz vários meses.
– Você pode pedir ajuda pro vovô e pra vovó.
– Não vou pedir ajuda pra ninguém.
– Não seja orgulhosa, mãe. E o meu pai?
– Quê?
– Você sabe, meu pai.
– Vou fingir que não ouvi nada.
– Mas ele teria que te pagar alguma coisa.
– Prefiro não ter que pedir nada a ele.
– Sempre tem a opção de sair com Ignacio.
Os dois riram.
– Acho que vou ligar para tentar uma oferta de motorista muito bem paga.
– Motorista? Você? – Óscar riu.
– Eu não dirijo tão mal.
– E o que acha disso? Eu posso? – Óscar apontou para um folheto em cima da mesa, de um laboratório que precisava urgentemente de CoHu.
– Nem pensar. E menos ainda quando se pede com urgência. Isso é porque eles têm algum vírus muito perigoso e têm várias curas possíveis. Você não vai ser um experimento de laboratório.
– Depois de amanhã eu faço dezoito, então você não pode me impedir.
– Meus filhos não vão ser CoHu.
– Eu pensei que você defendia as CoHu.
– Eu defendo, mas é muito perigoso.
– A maioria sobrevive.
– É o que dizem, nunca mostram provas.
– Mãe, precisamos de dinheiro. Deixa eu falar com meu pai.
– Vou pensar.
Óscar não conhecia o pai, só tinha visto em fotos antigas de quando adolescente. Se o encontrasse na rua, nem saberia. Nas fotos que ele tinha visto, notou uma grande semelhança: os dois morenos, com olhos escuros, indiscutivelmente atraentes.
Para Mónica, o pai do seu filho mais velho tinha sido seu grande amor na época, mas tudo mudou depois que ele a trocou por outra mulher. E, embora o pai de Óscar tivesse tentado vê-lo quando bebê, Mónica sempre recusou.
Mais tarde, Samuel estava brincando pela casa com seu irmão. Era quarta-feira, o que significava o dia de uma caça ao tesouro. Depois que Samuel e Óscar fizeram seus deveres de casa, os dois irmãos esconderam um objeto que o outro teria que encontrar; o que encontrasse primeiro ganhava. Quase sempre Óscar encontrava antes, mas fingia que não para deixar seu irmãozinho ganhar.
Naquele dia, Samuel estava mexendo no guarda-roupa de Mónica, que tinha saído para fazer compras. Samuel olhou as gavetas da parte de baixo sem muito sucesso. Depois, pegou uma cadeira para tentar alcançar a parte mais alta do guarda-roupa. Mas, quando puxou um lenço de Mónica, que estava lá, ele sem querer jogou uma caixa de papelão no chão. Óscar, que estava no térreo, subiu correndo quando ouviu o barulho, pensando que seu irmão tinha caído.
– Samuel, você tá bem? – Óscar estava gritando quando subiu as escadas.
– Sim, eu tô bem.
Óscar entrou no quarto de sua mãe. Samuel estava sentado olhando alguns papéis, entre os quais algumas fotografias.
– Quem é esse homem? – perguntou Samuel.
– É meu pai.
Óscar não queria se intrometer na privacidade de sua mãe, então começou a recolher os papéis e as fotos e pediu que Samuel continuasse a procura em outra cômodo. De repente, seu coração disparou. Era uma foto de sua mãe grávida com seu pai. Por trás da foto, estava escrito o nome completo de seu pai, que também se chamava Óscar. Mas naquela caixa havia muito mais. Ele fechou a porta e começou a olhar tudo. Havia cartas de seu pai endereçadas a sua mãe, dedicatórias, poesias. Aquela caixa transpirava amor. Ele encontrou um número de telefone, que ele supôs que era do pai. Mas a pior coisa para Óscar foi o que encontrou no fundo da caixa. Havia vários brinquedos e figurinhas, além de várias cartas fechadas. Ele abriu uma das cartas, que estava endereçada a ele. Todos os brinquedos eram para ele, um presente de seu pai. Inclusive havia fotos ainda mais recentes. Óscar chorava por tudo o que havia perdido. Pegou as cartas endereçadas a ele e colocou o resto na caixa. Ao sair do quarto, mudou a expressão e agiu como se nada tivesse acontecido.
– Samuel, não conte pra mamãe que vimos a caixa.
– Por quê?
– Porque ela ia ficar chateada.
Horas depois, Mónica voltou. Óscar agiu como se nada tivesse acontecido. Tudo parecia normal.
À noite, ele lia cada carta, e a cada carta ele chorava mais profundamente, tentando não fazer barulho.
No dia seguinte, à tarde, Óscar segurava o folheto do laboratório em uma mão e, na outra, o celular com o número do pai gravado. Ele decidiu ligar para ele. Ele saiu da casa com o celular chamando. Três toques. Quatro toques. Antes de soar o quinto toque, atenderam. Era uma voz masculina, quente e suave, como se fosse de uma pessoa da sua idade. Óscar congelou. E se ele tivesse outros irmãos?
– Alô? – a voz repetiu do outro lado da linha.
Óscar desligou e entrou em casa. Sua mãe estava olhando para ele.
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, nada.
– Você não sabe mentir. Vamos, me diga, o que tá acontecendo?
– É que eu tô com dificuldade em um trabalho de ciências.
– Deve ser bem complicado pra ser difícil pra você.
Óscar sorriu. Ele tinha um QI alto, sempre tirava boas notas.
No jantar, comeram uma receita da avó de Samuel e Óscar.
– Tá muito bom, mamãe – disse Samuel.
– Brigada – disse Mónica, maravilhada.
– Mamãe, conta a história de como você conheceu o pai de Óscar.
Mónica olhou na direção de Óscar, que ficou vermelho.
– Nós já sabemos a história do meu pai, você já contou muitas vezes – continuou Samuel, enfatizando o "muitas".
– Tá bom, assim que terminarmos o jantar, eu vou contar pra vocês.
3. O que acontece em Maiorca fica em Maiorca
Era meia-noite, e, embora Carolina tivesse ido embora há horas, Keysi ainda estava trabalhando como se estivesse de tarde. Na sala, dava para ouvir a música de Wagner. Enquanto ouvia a abertura de O Holandês Voador, Keysi acreditava que havia encontrado um antígeno para o vírus indiano. Tinha levado cinco dias; sua colega ainda não havia alcançado resultados conclusivos. Keysi observou em seu microscópio como seu próprio vírus afetava o outro, destruindo-o completamente. Ela pegou o telefone e ligou para Norberto.
– Eu consegui – disse a virologista assim que Norberto atendeu.
– Quem é?
– Keysi.
– Keysi, você tem alguma ideia de que horas são? – A voz de Norberto parecia distante.
– Desculpe, espero não ter te acordado.
– Sim, Keysi, eu tava dormindo. Mas, me diga, o que você conseguiu?
– O antígeno do vírus indiano tá pronto para ser testado em uma CoHu.
– Meu Deus, você tá falando sério?
– Totalmente.
– Bem, eu ligo para Clara, embora ela esteja dormindo, pra que possamos fazer os testes amanhã de manhã.
– Amanhã? É muito tarde. E se eu testar em mim mesma?
– Quê? Keysi, nem pense nisso. Eu proíbo.
– Tudo bem, vou esperar.
No tempo que passou desde que Keysi começou a estudar o vírus, o número de mortos subiu para aproximadamente setenta mil, embora se calculasse que poderia haver cerca de vinte mil que não tinham sido contados. O caos reinava na Índia. Por causa desse vírus, todas as fronteiras tinham sido fechadas, e milhares de turistas tinham ficado presos no país, esperando que algum laboratório encontrasse uma cura. Era o procedimento padrão quando um vírus se tornava incontrolável.
Keysi voltou para casa esgotada. Ela passou por alguns turistas ingleses, obviamente bêbados, que estavam andando meio sonolentos. Quando entrou na casa, ligou a TV e preparou algo para comer; não comia nada há doze horas. Ela mudou para o canal de notícias. Keysi ficou espantada; uma nova lei estava sendo preparada em todo o mundo, segundo a qual todos os vírus ativos deveriam ser reportados, informando todos os detalhes. Keysi pensou nas palavras de Norberto na outra semana. Se todos os vírus fossem divulgados, onde quer que houvesse um, as pessoas iriam enlouquecer, esvaziar supermercados e entrincheirar-se em suas casas até o vírus desaparecer.
Keysi se aproximou do Sistema de Controle da casa, um sistema que controlava praticamente todas as funções da casa, e o conectou ao seu celular. No celular, ela clicou em "Encher banheira" e depois nas opções "Água quente" e "Bolhas de sabão".
Ao entrar no quarto para pegar roupas limpas, ela encontrou seu ex-namorado dormindo. Ela abriu o armário sem fazer barulho e pegou as roupas. Tinha que encontrar outra casa logo; a situação estava se tornando cada vez mais desconfortável. Todas as casas que Keysi tinha visto estavam ultrapassadas, sem um Sistema de Controle.
Na manhã seguinte, às sete, Keysi, depois de ter dormido apenas algumas horas, entrou pela porta do escritório de Norberto.
– Você testou? – perguntou ela desesperadamente.
– Bom dia pra você também – Norberto olhava para alguns papéis em sua mesa.
Keysi continuou de pé olhando para ele.
– Sim – disse ele depois de assinar um papel —, eu testei.
– Primeiras conclusões?
– É um sucesso, por enquanto. – disse ele cautelosamente. – Pensei que você e Carolina iam criar um antígeno para cada vírus antes de me entregar – Norberto levantou a cabeça para olhar a inglesa.
– Eu sei. Veja bem, quando Carolina saiu, eu tava terminando de criar meu antígeno, então perguntei se ela se incomodava que eu lhe entregasse, e ela disse que não.
– Bem, bom trabalho, Keysi. Já temos um antígeno, faltam quatro. Isso se não nos trouxerem mais vírus. Você já viu o que aconteceu em Taiwan?
– Não.
– Incendiaram um laboratório que pesquisava vírus, como esse. Toda a ilha está em quarentena. Eu acho que isso vai ser resolvido em breve. O que mais me incomoda é que as pessoas tão começando a odiar as ilhas que têm laboratórios. Você sabia que no começo só permitiam a abertura de laboratórios em ilhas, pro caso de acontecer alguma coisa parecida com essa de Taiwan e houvesse uma epidemia de vírus? É um absurdo. Carolina já chegou?
– Ainda não.
Nesse momento, ouviu-se o som de salto-alto se aproximando, seguido por um perfume feminino de alta qualidade. Uma mulher escultural, de cabelos escuros, alta e magra entrou pela porta do escritório.
– Bom dia, Titania.
– Bom dia, pai.
– O que você me traz hoje? Espero que não seja outro vírus.
– Só passei pra dizer oi – Titania sorriu. – e mostrar isso para você. – Titania colocou na mesa os papéis que estava segurando. Keysi e Norberto se aproximaram e olharam atentamente. – É uma nova máquina que detecta a presença de um vírus a quilômetros. Me pediram para testar em Taiwan.
– Em Taiwan? Não dá pra entrar em Taiwan, tá em quarentena.
– Eles que me pediram. Não tem problema, pai, eu vou ficar bem.
Norberto olhava para a filha com preocupação. Sua filha podia até ser a melhor de seu departamento, mas a situação era instável na ilha asiática.
Keysi saiu da sala para deixá-los a sós. Assim que entrou na sala onde trabalhava com Carolina, a Sala 4, ela parou para observar tudo: os computadores com sistema de toque holográfico, as várias máquinas e outros equipamentos de laboratório nas mesas brancas coladas nas paredes, os bancos roxos em que elas se sentavam, a grande mesa central branca que elas mal usavam e as paredes também brancas que refletiam a luz que entrava pela janela, voltada para o sul, cuja vista do mar Mediterrâneo era espetacular, já que não havia nenhum prédio na frente.
Keysi começou a estudar o vírus encontrado na fronteira da China com a Mongólia. Para um vírus, tinha uma estranha beleza. Assim que tirou as primeiras conclusões, ela sabia que levaria um tempo para encontrar um antígeno para esse vírus e, como o número de mortes era baixo em comparação com os outros, mas não o número de infectados, ela decidiu deixá-lo de lado, fazer uma análise preliminar dos outros três vírus restantes e, então, escolher um.
Por volta das nove da manhã, enquanto sua colega estudava o vírus australiano, Carolina chegou com cara de quem havia dormido pouco. Keysi apontou para o relógio holográfico vermelho na parede.
– Ultimamente não tô dormindo, meus vizinhos tão sempre festejando. Tomara que eles vão embora logo – os vizinhos de Carolina eram quatro jovens franceses que, naquele ano, estavam estudando na Universidade das Ilhas Baleares.
Carolina começou a trabalhar. Enquanto isso, Keysi visitou a sala onde a CoHu estava testando seu antígeno.
– Como eles tão? – perguntou a inglesa a uma jovem enfermeira que tinha acabado de ser contratada pelo laboratório.
– Todos bem.
Ao retornar, Keysi parou no corredor e olhou para a galeria de fotos de seu celular. Em quase todas, ela aparecia sorrindo ao lado de seu ex-namorado. Ela apertou os lábios e segurou a vontade de chorar. Nesse momento, se sentiu desamparada. Tinha deixado a vida inteira para trás por um homem que a tinha abandonado. Ela não tinha ninguém na ilha.
Carolina percebeu que sua colega tinha entrado pela porta com uma expressão de tristeza no rosto.
– Você tá bem?
– Sim, é só que… você sabe… eu não tenho mais ninguém aqui na ilha.
– Não diga isso, eu tô aqui – Carolina ficou na dúvida se deveria aproximar-se para abraçá-la ou não; ela escolheu não se aproximar.
Keysi ficou surpresa com a reação de Carolina, o que poderia ser o começo de uma amizade entre as duas colegas no futuro.
As duas continuaram trabalhando com a música de Wagner ao fundo, trocando dados e sugestões, em um relacionamento em que havia cada vez mais cumplicidade.
4. Uma história de família
Mónica, depois de recolher os restos do jantar e limpar a mesa, sentou-se no sofá com os filhos e começou a história, enquanto Samuel olhava para ela impaciente e Óscar começava a ler alguma coisa no celular.
– Conheci o pai de Óscar há muito tempo na escola, quando ele tava prestes a completar doze anos, e eu já tinha completado. Era primavera. Lembro que seu pai – Mónica olhou para Óscar, que fingiu não estar interessado na história que sua mãe estava contando para o irmãozinho. – gostava de cheirar as flores dos pessegueiros da escola, o que chamou minha atenção.
– Tinham pessegueiros na sua escola? – perguntou Samuel surpreso.
– Tínhamos árvores de todos os tipos – Samuel abriu a boca, surpreso – você sabia que a gente tinha aulas de botânica?
– Hoje em dia também temos – disse Óscar, sem levantar os olhos do celular.
– Um dia, eu me aproximei de seu pai e perguntei por que ele fazia isso. Ele disse que gostava do cheiro delas. Fui até a árvore e peguei uma flor para cheirar, o que fez com que seu pai se chateasse comigo. Ele não queria que ninguém tocasse nas árvores. Ele ficou sem falar comigo durante o ano todo.
– O que aconteceu depois? – Samuel perguntou, interessado.
– No ano seguinte, ele me pediu ajuda em um assunto. A gente tava estudando mapas antigos, a gente tinha que desenhar os mapas, e eu era muito bom em desenho. Então, um dia ele se aproximou de mim e perguntou se eu queria fazer o trabalho com ele, e eu disse que sim. No final, acabei fazendo todo o trabalho sozinha. A partir daí, a gente se via todos os dias no recreio e, depois da aula, a gente sempre voltava junto pra casa.
– E aí vocês se apaixonaram? – perguntou Samuel, curioso.
Óscar levantou os olhos interessado.
– Alguém já lhe disse que você é um menino muito inteligente? – Samuel começou a rir.
– Sim, você – respondeu o filho mais novo de Mónica.
– Por muitos anos, fomos inseparáveis, até que fiquei grávida de seu irmão.
– E agora, onde ele tá? – perguntou Samuel.
Mónica olhou para Óscar, que estava olhando para ela.
– Ele tá no céu com o papai?
– Não, querido, ele foi embora.
– Pra onde? – o menino insistiu.
– Às vezes, tem gente que vai embora, que desaparece da sua vida.
– Como a tia Victoria, que mora em Londres? – Victoria era a irmã do pai de Samuel.
– Sim, tipo isso.
– Então podemos visitar ele?
Mónica estava começando a ficar nervosa.
– Acontece que não sabemos pra onde ele foi – interveio Óscar para ajudar sua mãe e impedir que ela gritasse com Samuel.
Mais tarde, depois que Mónica colocou o pequeno Samuel na cama, ela foi até a sala e se sentou ao lado do filho mais velho.
– Brigada por agora há pouco.
– Não tem de quê. Eu sei que você nunca gostou de falar sobre meu pai e que, quando você fala, acaba parecendo uma pessoa mentalmente perturbada.
***
No dia seguinte, Mónica acordou Samuel cedo e o levou para o quarto de Óscar.
– Quando eu falar três – disse Mónica baixinho.
– Certo.
– Um, dois e… três!
Ao dizer “três”, Samuel pulou na cama de Óscar.
– Parabéns! – disseram juntos Samuel e Mónica, enquanto ela jogava confetes coloridos no aniversariante.
Eram nove e meia da manhã quando a campainha tocou. Mónica abriu a porta e encontrou Ignacio com uma carta.
– Desculpe, eu já te avisei várias vezes.
Ignacio entregou a carta a Mónica e foi embora. Mónica nem esperou entrar em casa e abriu a carta, rasgando o envelope. Nele havia uma ordem de despejo. Ou pagava o aluguel nos próximos quatro dias ou já podia começar a fazer as malas.
Mónica ficou atônita, não acreditava que Ignacio a mandaria para a rua. Talvez ela devesse encontrá-lo em um jantar para amolecê-lo, coisa que ela sempre rejeitou, pois o achava repulsivo. Ela pensou em seu filho mais velho, tão determinado, sempre preocupado com o bem-estar dos outros. Ela faria qualquer coisa por seus filhos, inclusive perder a dignidade, mas também estava preocupada com o que eles poderiam pensar dela. Talvez ela não tivesse sido um bom exemplo para Óscar, mas ela não queria repetir o mesmo erro com Samuel.
A campainha tocou novamente, e Mónica correu para a porta na esperança de que Ignacio tivesse se arrependido. Em vez disso, encontrou Rocío, exatamente o que ela precisava naquela hora.
– Oi, vizinha.
– Oi, Rocío.
– Vi Ignacio vir aqui. O que ele queria? Aconteceu alguma coisa?
Mónica pensou nos anos em que vinha sido paciente com os vizinhos, momentos em que gostaria de lhes dizer que se metessem nos assuntos deles. Em vez disso, suspirou profundamente e disse educadamente:
– Só queria saber se tenho o dinheiro do aluguel.
Rocío não parecia muito satisfeita.
– Você vai comemorar o aniversário de Óscar?
– Ele vai comemorar com os amigos à noite.
– E você não vai fazer uma festinha aqui?
– Acho que não.
– Que pena, uma festa seria bem-vinda. Você sabia que Maribel está procurando uma namorada para Ignacio? Você devia se apressar, ou então ele vai escapar de você.
–Não tô te entendendo – disse Mónica, confusa.
– Eu vi que ele te visitou várias vezes, e que tem uma paquera inocente entre vocês.
– Você é realmente sem igual – disse ela em voz alta, sem tentar disfarçar.
– Brigada, eu sei. Sou boa em observar os detalhes – disse ela, demonstrando todo o seu ego. – E então, você quer que eu diga alguma coisa pra ele?
Mónica fechou a porta sem responder. Talvez uma mudança de casa não fosse uma ideia tão ruim, afinal.
Depois de fechar a porta, o telefone, que estava no corredor, começou a tocar. Mónica pegou-o e apertou o botão verde.
– Bom dia, você é a senhora Ibáñez? Estou ligando da empresa de motoristas.
– Sim, sou eu – respondeu meio sem jeito, enquanto se dirigia ao sofá para se sentar.
– Veja, vimos o seu currículo, e você parece uma candidata muito interessante. Não é fácil encontrar pessoas tão jovens que sabem dirigir carros antigos. Claro, não dá pra dirigir os modernos. Poderia começar amanhã?
– Isso quer dizer que eu tô contratada? – Mónica perguntou com uma voz muito alta, enquanto sua pulsação aumentava.
– Claro que sim, por que você acha que eu liguei? – o homem do outro lado da linha riu. – Sei que o trabalho é de segunda a sexta-feira, mas meu cliente precisa ir ao escritório para uma reunião amanhã. Eu quero deixar as regras bem claras. Você não deve falar com ele a menos que ele fale com você. Se um dia você tiver que levar a esposa ou as filhas dele, vai ser igual. Precisa ser pontual no horário de chegada, meu cliente odeia atrasos. O trabalho começa às sete e meia da manhã, hora em que você tem que tá esperando na porta da casa do meu cliente. À uma da tarde, você deve buscar ele no escritório e levar pra onde ele quiser ir. Assim que ele sair do carro, seu expediente se encerra. Durante seu horário, vai ter que ficar perto do carro, caso meu cliente precise. Também é possível que seus serviços sejam necessários em outras datas, como é o caso de amanhã, mas não se preocupe, essas horas significam um acréscimo no seu salário. Pro trabalho de amanhã, você vai receber quinhentos e sessenta simeões. Você vai dirigir uma limusine de propriedade do meu cliente, que vamos levar pra sua casa hoje à tarde.
O simeão era a moeda universal. Trezentos anos antes, a queda no valor de várias moedas, incluindo o dólar, dos Estados Unidos e Austrália, o peso mexicano e o iene japonês, houve uma grave crise financeira nesses países, e decidiu-se que não havia sentido em ter moedas diferentes no mundo.
Uma situação semelhante ocorreu no caso dos idiomas, e o inglês e o russo foram propostos como língua universal, uma ideia que foi rejeitada quase imediatamente, pois considerou-se que seria uma perda de valor cultural parar de falar as outras línguas. Atualmente, havia centenas de aplicativos e objetos que serviam como tradutores instantâneos, sem a necessidade de conhecer o outro idioma.
***
Havia dois tipos de estradas: as antigas e as automáticas. As antigas eram estradas construídas muito anos antes, estavam desatualizadas, tinham sido pavimentadas há muito tempo e, em geral, recebiam pouca manutenção, devido ao tráfego reduzido. Por outro lado, havia as estradas automáticas, que recebiam manutenção constante. Enquanto nas estradas antigas os carros precisavam de um motorista que os dirigisse, nas estradas automáticas os carros não precisavam de motoristas, pois estavam conectados a um sistema eletromagnético central que levava o carro de um lugar para o outro sem necessidade de fazer nada, apenas indicar o local para o qual se quisesse ir. Além disso, elas funcionavam com energia solar e não poluíam.
Cada tipo de estrada tinha suas vantagens e desvantagens. Nas estradas automáticas, não havia risco de colisão; o sistema informatizado de vias ao qual os carros estavam conectados traçava a rota, colocava no mapa e configurava para que não houvesse nenhum risco. Desde a introdução das estradas automáticas, cem anos antes, não houve acidentes nesse tipo de via, e por esse motivo a maioria das pessoas usava essa modalidade de estrada.
Durante algum tempo, dirigir em estradas antigas tornou-se moda, especialmente para pessoas ricas que queriam evitar os engarrafamentos das estradas automáticas. Evidentemente, a maioria não sabia dirigir, e tinha que recorrer a um motorista, um trabalho que, graças a essa moda, tinha ressurgido.
Mónica não dirigia um carro velho há anos, então ela estava nervosa. Decidiu que passaria a tarde dirigindo o carro velho que tinha deixado no estacionamento subterrâneo, no qual não tocava desde que tinha se mudado. Se ela ainda o mantinha, era porque havia boatos de que uma taxa seria introduzida para poder circular em estradas automáticas, além do imposto pago anualmente.
Mónica dirigiu até um antigo parque industrial abandonado de sua cidade, Elche, onde seria instalado um novo laboratório de pesquisa de vírus, após sua demolição e reforma, previstas para o final do ano.
Até chegar ao complexo industrial, a vários quilômetros de sua casa, o motor do carro de Mónica morria toda vez que ela parava.
– Vai, Mónica, você consegue. – disse ela a si mesma. – Faça isso pelos seus filhos e tente não ser demitida no primeiro dia.
Mónica praticou a tarde toda, até que ela foi buscar Samuel na escola.
***
Eram doze e meia quando Óscar entrou em casa.
– Foi tudo bem? – disse Mónica do sofá.
– Oi, mãe, tudo bem.
– Chegou cedo.
– Depois de tantas horas com eles, eu já tava cansado – explicou um sorridente Óscar.
– Seu irmão sentiu sua falta hoje à tarde.
– Por que você nunca me fala sobre meu pai? – ele perguntou, mudando de assunto e se lembrando das cartas que sua mãe tinha escondido.
– Você realmente quer falar sobre isso?
– Sim.
– Eu não tô preparada.
– Mãe, já se passaram dezoito anos, eu quero conhecer ele.
– Eu não tenho notícias dele há muito tempo. Eu queria poder te dar informações. Mais ainda, queria poder te dizer que seu pai era maravilhoso ou que ele procurou por você, mas ele não procurou, nunca se preocupou com você – mentiu Mónica.
Óscar entrou no banheiro para tentar se acalmar, já que há dois dias havia descoberto as cartas de seu pai. Tinha a sensação de ter vivido a vida toda com uma estranha. Já não conhecia mais sua mãe. Sempre tinha pensado que seu pai era a pior pessoa do mundo por causa do que sua mãe dizia para ele. Mas, agora que tinha descoberto parte da verdade, ele duvidava que sua mãe fosse melhor. Que motivo ele poderia ter para não deixar que se aproximasse dele?
Mónica subiu as escadas para ver se Samuel continuava dormindo; quando desceu novamente, encontrou Óscar assistindo TV angustiado.
– Olha, mãe, um laboratório de vírus em Taiwan explodiu.
– É uma tragédia. É por isso que me dá medo que queiram construir um laboratório aqui.
– É normal, Elche é a cidade mais importante da Espanha, não fazia sentido que não tivesse um aqui – disse Óscar, empolgado.
– Você vai continuar com essa besteira de ser CoHu?
–Besteira? Você acha besteira arriscar a vida pra salvar os outros? Acho que você tem que ser muito corajoso pra fazer uma coisa dessas – Óscar estava ficando exaltado.
– Você mesmo acabou de dizer, arriscar a vida. Qual a necessidade de você fazer isso?
– Alguém tem que fazer isso, se não todos morreríamos. Se ninguém se arrisca, ninguém ganha.
– E tem que ser meu filho?
– Se for preciso, sim.
– O que você quer provar?
– Só tô tentando ajudar. Ajudar as pessoas doentes a se curarem, ajudar você e Samuel com o dinheiro.
– Você não precisa, já tem muitos candidatos.
– Você é uma hipócrita, mãe. Sempre disse que as CoHu são heróis, mas não lhe parece certo que seu filho seja uma. CoHu sim, mas sem sujar as mãos. Que mãe corajosa – Óscar tinha lágrimas nos olhos.
– Você vai falar comigo sobre coragem? Quem criou você e Samuel? Quem deu tudo pra vocês?
– Acho que a mesma pessoa que me nega a chance de conhecer meu pai desde que eu nasci – disse Óscar, tentando recuperar a compostura.
– Não diga bobagens, seu pai abandonou a gente, eu não tenho notícias dele há dezoito anos.
– Pare de mentir, eu sei de tudo, encontrei sua caixa.
– Você bisbilhotou minhas coisas?
– Eu ter encontrado sua caixa te preocupa mais do que o fato de que você mentiu pra mim a vida toda? – Óscar desabou e começou a chorar.
– Só fiz isso para te proteger.
– De onde você tirou essa frase? De um filme?
– Peraí, onde você vai?
Óscar abriu a porta da frente e saiu, batendo a porta com força.
– Óscar, espera.
Mónica saiu de casa, mas já era tarde demais. Seu filho, que era campeão de atletismo, já tinha sumido de sua vista.
5. Dois são melhor que um
Keysi trabalhava no vírus encontrado em Sória; estava sendo difícil estudá-lo. O computador tocava A Cavalgada das Valquírias, ópera de Wagner. Carolina, que mostrava sinais claros de sono, tomou notas em um caderno para adicioná-las depois à sua tese. Keysi apertou o botão de pausa e disse em voz alta para a colega:
– É como se fossem dois vírus, mas é só um.
Carolina se aproximou de Keysi e olhou para os dados mostrados pelo computador.
– Keysi, você misturou dois vírus? Esses dados são impossíveis. Aqui tem variantes de dois vírus, claramente é algum erro.
– O pessoal da coleta de vírus deve ter cometido um erro.
– A gente devia reportar.
– Mas Carolina, eles poderiam ser despedidos, um erro tão sério é motivo de demissão.
– Me surpreende que você pense assim, já que você passa mais tempo aqui do que lá fora, de tanta preocupação com as pessoas infectadas.
– Eu sei, mas também me preocupo com meus colegas.
– Tá bom. Vou processar minhas amostras e comprara os resultados com os seus. Talvez tenha sido um erro.
– Brigada, Carolina. Vou ligar pro hospital de Sória para descobrir como o paciente idoso está evoluindo, e aproveito pra pedir que mandem mais amostras, se possível.
Carolina se virou, continuou com o que estava fazendo e, vinte minutos depois, começou a estudar o vírus de Sória. Keysi foi procurar o número de telefone do hospital de Sória.
Jacinto, um belo rapaz de 27 anos da área de coleta de vírus, entrou na Sala 4, onde Keysi e Carolina trabalhavam diariamente, assustando a segunda, que estava concentrada em seu trabalho.
– Você não pode avisar antes? – perguntou Carolina, irritada.
– Desculpa.
– Desculpa? Jacinto, Keysi e eu trabalhamos com material muito delicado, e somos algumas das poucas pessoas no laboratório que não usam roupas de isolamento ou qualquer proteção. Então, por favor, tenha mais cuidado.
– Eu sei, mas você nunca é exposta diretamente. Eu corro mais riscos quando vou coletar os vírus. Meu traje pode rasgar, e eu posso me infectar.
– E sua interrupção poderia ter me feito largar esse frasco que contém esse vírus misterioso que eu tenho nas mãos, e que ainda não achamos uma cura, e infectar nós duas – Carolina não queria dar o braço a torcer.
– Por que você diz que é misterioso?
– Porque todos os vírus têm suas próprias variantes simétricas. Desde que conseguimos "capturar" os vírus, pudemos descobrir que todos eles têm o mesmo padrão simétrico, com suas próprias características.
– Sim, eu já sabia disso. Trabalho aqui, lembra?
Jacinto sempre foi apaixonado por vírus, motivo pelo qual começou a estudar biologia, para depois se especializar em virologia molecular. Mas, depois de perceber que teria que trabalhar trancado em laboratório, mudou de biologia para coleta e tratamento especializado de micro-organismos.
– Ao submeter os vírus à viócula – a viócula era uma máquina que mostrava todas as características observáveis de um vírus, o que seria o ponto de partida no estudo de cada um deles —, entre outros dados, este gráfico nos mostra… – Carolina apontou para tela do computador.
– A tabela característica.
A tabela característica era um gráfico semelhante a uma cadeia de DNA, mostrando as qualidades únicas dos vírus.
– Exato. Aqui podemos ver duas tabelas características interligadas, o que é totalmente impossível. É por isso que acreditamos que esse vírus foi submetido a algum tipo de contaminação que o alterou.
– Carolina, isso é impossível. Eu mesmo coletei esse vírus.
***
Keysi ligou para o hospital onde estava o paciente idoso de Sória, selecionando “chamada holográfica” e colocando o telefone na palma da mão. Apenas os celulares modernos tinham o recurso de ligação holográfica, os outros tinham apenas opões de chamadas de voz ou vídeo. Ao responder do outro lado da linha, apareceu no telefone de Keysi um holograma de uma mulher de meia-idade, com evidências de já ter passado por tratamentos estéticos no rosto.
Keysi explicou à mulher o motivo de sua ligação.
– Lamento dizer, senhorita, mas o paciente morreu ontem à noite. A boa notícia é que, por enquanto, não há mais infectados.
A mulher se comprometeu a enviar mais amostras do vírus no mesmo dia e se despediu.
Keysi voltou à Sala 4, onde encontrou Carolina conversando com Jacinto.
– Eu tenho que ir. Tchau, Keysi – disse Jacinto, que saiu da porta consultando a localização de um vírus de que ele teria que coletar amostras.
– Não diga nada – disse Carolina, apontando o dedo para sua colega.
Keysi tinha a teoria de que Jacinto estava apaixonado por Carolina, o que a deixava nervosa, pois ela só via seu jovem colega como um amigo.
– Eu não ia dizer nada. – Keysi sorriu, deixando seus pensamentos para si mesma. – Tenho más notícias. – anunciou. – O paciente idoso morreu.
– Tem mais infectados?
– No momento não. Eles vão nos enviar mais amostras hoje. – Keysi olhou pela janela; era um dia ensolarado, os turistas estavam passeando tranquilamente, e o mar estava brilhando. – Acho que vou continuar estudando o vírus da Austrália.
– Por que você não descansa um pouco? Você tá entocada aqui há quase 24 horas, precisa descansar.
– O que você acha que os parentes dos infectados pensariam se soubessem que, em vez de procurar uma cura, eu tô descansando? – perguntou Keysi, exaltada.
– Não acho que você vai ajudar em nada cansada.
– Eu não tô cansada! – protestou a inglesa.
Por volta das duas da tarde, as amostras de vírus chegaram através da Rede de Transporte de Mercadorias Altamente Perigosas. Era uma rede de pequenos tubos à prova de fogo, anticongelantes e inquebráveis, de dois metros de diâmetro, muito rápidos, subterrâneos e que conectavam os laboratórios. No caso de ilhas, como em Maiorca, o vírus era transportado ao seu destino por um avião especial. No início, a construção começou como uma rede de transporte de mercadorias, mas, devido aos altos custos, uma rede menor e de uso médico foi construída em seu lugar. A rede foi construída paralelamente à Rede de Transporte Subterrâneo, uma rede que transportava passageiros, e que ligava praticamente todo o mundo, com uma velocidade que beirava os dois mil quilômetros por hora.
Clara se apressou em levar as amostras para a Sala 4.
– Tá aqui. Qualquer coisa, me chame – se ofereceu Clara, que naquele dia usava um penteado retrô, típico de dois séculos atrás, que simulava a figura de um leão feroz.
– Acho que vou sair um pouco.
– Eu também. Eu vou comer lá no meu apartamento. Você poderia vir comigo. Como as meninas que moram comigo tão viajando, eu tô sozinha, e assim você não teria que ver… – Carolina evitou falar o nome de Raúl, ex-namorado de Keysi.
– Não precisa, mas eu agradeço.
Carolina foi embora correndo, derramando uma lata de refrigerante pelo corredor do laboratório. Keysi ficou por mais alguns minutos, verificando o vírus estranho, tentando encontrar um erro. Ao sair do laboratório, Jacinto estava esperando por ela.
– Keysi, espera.
A britânica parou, esperando que Jacinto continuasse falando.
– Você me faz um favor?
– Outro?
– É bem pequeno.
– Vamos ver, diga – concordou a inglesa.
– Você me ajuda a conquistar Carolina?
Keysi fez uma cara de susto.
– Jacinto, eu sei que é difícil, mas aceite, ela não gosta de você.
– Mas vai gostar – disse ele alegremente.
– Você nunca desiste?
– Dela não.
– Há quanto tempo vocês se conhecem?
– Há uns dois anos, quando comecei a trabalhar aqui.
– E desde quando você tá apaixonado por ela?
– Acho que desde dois segundos depois que nos conhecemos.
– Eu não acredito em contos de fadas – disse ela, de forma seca.
– Diz a pessoa que largou a vida inteira e veio morar na Espanha pouco depois de conhecer um cara.
Keysi ficou vermelha.
– Não posso te ajudar.
– Sim, você pode, mas não quer. Vamo lá, não custa nada, você passa o dia todo com ela.
– Não temos esse tipo de relação.
Keysi continuou andando até chegar ao seu apartamento. Ao entrar, ela ficou feliz por estar sozinha. Ligou a máquina de cozinhar, colocou todos os ingredientes nos compartimentos indicados e esperou que a merluza com batatas assadas acompanhada de molho de alho-poró estivesse pronta.
A britânica começou a comer com pressa para terminar o mais rápido possível e poder retornar imediatamente ao laboratório. Sua obsessão por descobrir antígenos crescia rapidamente a cada dia. Quando ela estava terminando de comer, Raúl entrou no apartamento, acompanhado por uma mulher morena muito jovem e atraente.
– Ah, desculpe, Keysi, eu não sabia que você tava aqui.
– Não se desculpe.
A mulher permanecia em silêncio junto à porta, carregando uma pequena mala na mão.
– Essa é minha irmã, Marina, ela veio de Alicante – Raúl e toda a sua família eram dessa cidade – para passar alguns dias aqui de férias.
Keysi limpou as sobras de comida do rosto com um guardanapo com cheiro de baunilha – o tipo favorito da inglesa —, se aproximou de sua ex-cunhada e a cumprimentou.
Marina e Keysi conversaram alegremente por um tempo, até que a primeira saiu com o irmão, que queria mostrar para ela aquela bela cidade à beira-mar.
Keysi mal tinha dormido nos últimos dias, mas, embora tivesse dito à colega que não estava cansada porque não queria admitir, ela estava. Ela se recostou no sofá com a intenção de fechar os olhos por alguns segundos, que se tornaram horas.
***
Carolina se sentiu vazia quando entrou em seu apartamento, na zona norte da cidade. Ela morava com duas estudantes de direito, uma de Valência e outra de Barcelona, que tinham viajado para Nice. Com o tempo, elas tinham se tornado grandes amigas, apesar de não terem muito em comum.
Ela abriu a geladeira na esperança de achar algo gostoso para comer, mas tudo o que encontrou foram restos de comida que estavam com um cheiro desagradável. Ela fechou a geladeira e foi até o restaurante que havia embaixo de seu apartamento.
Era um restaurante retrô, a tecnologia mal tinha chegado naquele lugar. Na maioria dos restaurantes, todos eram atendidos por hologramas que reagiam à voz e enviavam pedidos dos clientes para a cozinha, onde equipamentos e máquinas preparavam a comida automaticamente. Na maioria das vezes, o resultado não era agradável para o cliente; em troca, os preços eram extremamente baixos, o que era viável porque não era preciso pagar salários.
Um homem de meia-idade e um pouco acima do peso cumprimentou Carolina calorosamente, saindo de trás do bar e abraçando-a.
– Que bom que você veio me ver – disse Pedro.
– Eu vim pra comer.
– Melhor, melhor – o homem ficou muito satisfeito.
Carolina olhou para as mesas; todas estavam vazias.
– Como vão os negócios?
– Como pode ver, mal. Eu tive que despedir meu cozinheiro, agora faço tudo. Essas máquinas só criam desemprego; se você não sabe como criar robôs, é cientista ou conhece alguma tecnologia de informática, já não serve mais para nada.
– Não diga isso.
– Quantas profissões já foram extintas? Taxistas, entregadores, motoristas de ônibus, tradutores, operadores de linhas de produção, apresentadores de televisão, sem falar dos professores, que só são deixados nas escolas para não assustar as crianças. Sobraram poucos de nós, cozinheiros, vendedores e tal. Inventaram até uma máquina que cria máquinas! Esse mundo tá deixando de nos pertencer. Cuidado pra que não inventem maquininhas que sabem descobrir antígenos.
Carolina ficou pensando no pai, que trabalhou como bibliotecário antes de ser substituído por um holograma, e em seus professores da escola e da faculdade, todos hologramas inteligentes também. A maiorquina pensava que talvez Pedro tivesse razão, e os seres humanos estivessem em perigo de extinção, sendo eles mesmos seus piores inimigos.
Pedro preparou para Carolina um prato de caracóis com molho de tomate, acompanhado de um bife. Em todo o tempo em que ela esteve no restaurante, nenhum cliente entrou, o que lhe deu pena. Ela gostava do homem, o conhecia desde o dia em que se mudou, quando ele se ofereceu para ajudá-la a carregar sua mudança.
Logo depois, Carolina foi ao laboratório com sua bicicleta; odiava os carros, especialmente os engarrafamentos que eles provocavam.
Quando entrou pela porta da Sala 4, ficou surpresa por não ver sua colega trabalhando, mas não se importou.
Carolina iniciou o procedimento do zero com as novas amostras vindas de Sória. Depois de quatro horas muito longas, o processo preliminar foi concluído, faltando apenas comparar os dados e tirar as conclusões. Carolina esperava que os resultados fossem completamente opostos. Depois de comparar os dois resultados, ela não poderia ter ficado mais chocada. O que ela tinha acabado de descobrir poderia mudar a maneira como os biólogos estudavam vírus.
– Não acredito! – disse Carolina em voz alta, e imediatamente ligou para Keysi, que havia chegado alguns minutos antes e conversava com Clara e Norberto.
A britânica chegou correndo.
– O que aconteceu?
– Não houve contaminação, são dois vírus. Os vírus tão evoluindo, ou pode ser que o nosso sistema imunológico continue enfraquecendo.
Naquele momento, Norberto entrou.
– Norberto, você tem que ver isso.
O diretor do Farol da Luz se aproximou e olhou para o que Carolina estava lhe mostrando.
– Impressionante – disse Norberto, surpreso com a descoberta de suas duas funcionárias favoritas, tirando sua filha Titania.
– Você precisa divulgar, é perigoso ter essa informação e não compartilhar – disse Keysi. Seu chefe estava olhando para ela com uma expressão muito séria.
– Houve outro caso – Norberto começou a contar. – há muito tempo. – Norberto aproximou-se da porta, certificou-se de que ninguém estava ouvindo e fechou-a. – Foi há dez anos, no oblast de Irkutsk, na Rússia. Desde que existem as cepas de vírus mortais, produto de nossos avanços médicos, dois ou mais vírus nunca viveram em um mesmo corpo. Sabemos que quando um vírus invade o seu corpo, outro não pode entrar, pois o corpo já está doente. Há dez anos, um homem de oitenta anos foi encontrado morto em sua casa, com um fio de sangue saindo da boca. Imediatamente, ligaram pra uma unidade especializada em coletar cadáveres infectados por vírus. Quando chegaram ao laboratório, começaram o processo de investigação, pura rotina. – Norberto pegou um dos bancos e sentou-se, com Carolina e Keysi observando-o atentamente. – Quando o biólogo que o examinava iniciou o processo, não percebeu nada de peculiar, nada o fez suspeitar que o corpo era portador de dois vírus. O biólogo continuou o procedimento, quase terminado, quando notou as feridas internas do corpo. – Norberto esfregou os olhos. – A primeira coisa que ele pensou foi que o vírus era extremamente perigoso, então ele saiu da sala e foi até o compartimento que serve como uma passagem entre o corredor e as salas altamente perigosas. Ele fechou a porta com o código criptografado e acionou o processo de remoção do vírus para eliminar quaisquer vestígios do vírus que ele carregasse. Ele desabotoou o traje de isolamento e alertou os membros da equipe de coleta para que fossem particularmente cautelosos. Quando voltou pra dentro, viu uma coisa realmente incomum: o cadáver estava se decompondo a uma velocidade espantosa. Nenhum vírus registrado apresentava esses sintomas post-mortem. Mas tinha outra coisa: os ossos tavam ficando pretos. Depois de mais dois dias de pesquisa, o biólogo descobriu algo que julgavam impossível: um corpo podia abrigar dois vírus ao mesmo tempo. O biólogo, fascinado por essa descoberta médica, continuou a estudar os restos do corpo, bem como as amostras de vírus que ele conseguiu extrair dele. – Keysi e Carolina estavam em silêncio, concentradas no relato do chefe. – Uma manhã, quando o biólogo chegou ao seu posto de trabalho, descobriu outra coisa. Não havia mais dois vírus, e sim apenas um. Os dois vírus sofreram mutação, transforman-do-se em um vírus novo e mais poderoso. Isso aconteceu inexplicavelmente e, que a gente saiba, nunca mais aconteceu. Espero que vocês sejam discretas, e com isso quero dizer que essa informação não sai desta sala. Não falem sobre isso em público, entenderam?
Keysi e Carolina concordaram.
– Podemos ver amostras desse vírus ou ler os relatórios?
– Não acho que isso seja relevante, os vírus só devem sair das Câmaras Isoladas de Segurança quando for realmente necessário.
As Câmaras Isoladas de Segurança eram centros de armazenamento ocultas no subsolo ou no fundo do mar que mantinham amostras de vírus e seus antígenos. Cada laboratório tinha uma, e a o do laboratório de Norberto ficava a dois quilômetros ao sul de Maiorca, escondida no fundo do mar. Era acessada através de um submarino, e, para entrar, primeiro era preciso ter uma autorização e, depois, passar por uma série de longos e rígidos controles de segurança.
As únicas Câmaras Isoladas de Segurança que não continham amostras de vírus eram os arquivos com o acervo histórico da China, Austrália, Canadá e França, as hortas de sementes da Islândia, Paraguai e Namíbia e os centros de dados de tecnologia do Japão e da Antártida.
– Você fez um ótimo trabalho, mas infelizmente ninguém vai ficar sabendo. Como vai com os outros vírus? Eu tô especialmente interessado no que foi encontrado na Noruega. O número de infectados aumentou pra aproximadamente doze mil e quinhentos.
– Eu tenho dois possíveis antígenos, mas eles ainda não tão prontos. Com sorte, termino nessa semana – informou Keysi.
– Eu tô quase terminando um antígeno pro da Austrália.
– Perfeito. Assim que tiverem prontos, me informem. Muita gente tá morrendo.
Norberto saiu da sala e as deixou trabalhando. Estava preocupado; sua filha estava em Taiwan, cercada por muitos vírus mortais, e ele nem podia perguntar como ela estava, já que as comunicações tinham sido suspensas.
Enquanto trabalhavam, Clara entrou de repente, quando Carolina carregava amostras do vírus apelidado de areia que voa, fazendo com que ele escorregasse de suas mãos e caísse.
– Ai, meu Deus! – gritou Keysi aterrorizada. Clara também gritou, e depois saiu correndo.
– Calma! Não quebrou. Repito, não quebrou – por sorte, Carolina havia enrolado a esfera em um plástico protetor.
Clara voltou para a sala, ofegante.
– Menos mal. – Clara olhou para o frasco para ter certeza. – Eu tava vindo pra comunicar que a presidente da Espanha vai visitar o laboratório, basicamente pra tirar uma foto – Clara se virou para sair.
– Quando ela vem? – perguntou a maiorquina.
– Ah, sim! – Clara ainda estava ofegante. – Eu tô muito empolgada, acho que devia ir à academia. – Clara sorriu. – Ela vai vir na próxima semana. Vai ter uma grande festa, e ela vai nos entregar o prêmio de melhor laboratório da Espanha.
– Não tenho nada pra vestir – reclamou Carolina, quando elas voltaram a ficar sozinhas.
– Eu posso emprestar algumas roupas pra você.
– Vamos juntas pra uma loja de roupas amanhã?
– A gente tem muito o que fazer – disse ela, com os braços abertos.
– Eu preciso de você, você tem estilo. Não vai te fazer mal tirar uma manhã de folga. Quando foi a última vez que você não trabalhou?
– Carolina, hoje eu dormi a tarde toda.
– Isso é normal, você quase não dorme.
– Tá bom, eu vou com você – concordou Keysi, que se aproximou do computador, colocou o dedo no reprodutor de música e clicou em As Fadas, de Wagner.
***
Elas chegaram a uma loja de roupas, aberta 24 horas por dia, por volta das oito da manhã. Os funcionários da loja eram dois hologramas inteligentes que eram ativados por voz. Keysi e Carolina entraram na loja de roupas, passando suas pulseiras na frente da tela de identificação.
As pulseiras que usavam criavam um avatar personalizado muito realista para todas as lojas, visível pelo celular. Ao aproximar a pulseira do código de identificação de cada peça, o avatar automaticamente colocava a peça, para uma visualização melhor e com mais precisão de como ela se encaixaria, sem a necessidade de experimentá-la. Poucas lojas continuavam mantendo os provadores.
A porta de saída era diferente da de entrada. Se a pessoa quisesse sair, precisava passar por um scanner, que detectava se ela estava usando roupas que não foram pagas; nesse caso, a porta não abria, impedindo que a pessoa saísse. No início da implementação do sistema de scanner nas lojas, houve problemas, e muitas vezes os códigos não eram bem identificados, fazendo com que as pessoas não conseguissem sair.
– Eu não gostei de nada – Carolina olhava para as roupas, pouco convencida.
– Que tal essa? – Keysi mostrou a ela uma camiseta amarela com decote em V e ombros em forma de dodecaedro.
– Eu queria uma coisa mais chamativa.
A inglesa aproveitou o momento para falar sobre Jacinto.
– Por que você não dá uma chance pra Jacinto?
– Ele não me pediu.
– Você sabe o que ele sente por você.
– Eu sei o que você acha.
A britânica começou a olhar um vestido verde em um canto distante. A parte de baixo era mais clara, enfeitada com contas de prata.
– Você devia levar, ia ficar bem em você – disse Carolina, aproximando-se por trás.
– Custa setecentos simeões, é muito.
– Ok, se você não comprar, eu compro pra você.
– Não, Carolina, é muito dinheiro.
– Keysi, é o meu dinheiro, e, se eu quiser te dar um vestido, eu dou. Você passa o dia no laboratório, não faz mal que alguém te dê um presente. Aliás, você já encontrou uma casa? Porque ter que continuar morando com seu ex… enfim, deve ser complicado.
– Não é, a gente tá se dando bem. E não, não encontrei nada que eu goste, são todas casas antigas.
– As casas antigas tão na moda agora, eu mesma moro em uma.
– Eu nunca morei em uma. Em Birmingham, eu morava em uma casa que era tipo um chalé, bem moderna. Na Alemanha, também tinha um Sistema de Controle, assim como aqui.
– Você não quer tentar? Digo isso porque tem um quarto vazio no meu apartamento.
– Eu não me vejo morando com outras pessoas.
– Você acha que sobreviveria sem que as luzes se acendessem sozinhas ou tendo você mesma que dar a descarga?
– São avanços, facilitam a nossa vida.
– Também geram desemprego. Debaixo da minha casa tem um restaurante retrô. Ninguém entra. No final, vai acabar fechando.
– Gosto mais dos retrôs do que dos modernos, mas admito que vou muito mais nos modernos porque são mais rápidos.
– Sim, é verdade, mas a comida é uma merda.
– Não em todos.
– Tá, pode ser que em toda Maiorca tenha uns dois ou três que sirvam comida boa, mas em outros lugares também não é tão ruim. Quer dizer, a comida dos robôs pessoais de cozinha é muito boa.
– É verdade. Acho que é porque já existiam há séculos e foram melhorando, e, como nos restaurantes modernos as pessoas não reclamam, e mais e mais pessoas vêm, eles não melhoram.
– Muitas pessoas reclamam, mas da boca pra fora.
– Veja! – Keysi apontou animada para um longo vestido vermelho escuro com mangas compridas. – Leve esse, tenho certeza que vai ficar lindo em você.
Carolina se aproximou e passou o pulso pelo código da peça. Automaticamente, seu avatar pessoal vestiu a roupa, convencendo-a do resultado.
– Adorei, Keysi, muito obrigada por encontrar. Se dependesse de mim, eu não teria visto.
– Não tem de quê. Mas se você me der o vestido verde, eu te dou o vermelho.
– Me parece justo.
***
Dois dias depois, Carolina acreditava ter encontrado um antígeno para o vírus da Austrália.
– Acho que consegui – disse Carolina, depois de pausar a música.
– Deixe eu dar uma olhada – Keysi revisou os dados. – Tomara que funcione.
– Vou chamar Clara.
Antes que a maiorquina saísse da sala, Norberto apareceu.
– Onde você tava indo?
– Avisar pra Clara que eu tenho um possível antígeno pro vírus da Austrália.
– Ótimas notícias, mas lembre que você pode avisar ela daqui – Norberto apontou para o teledor, um instrumento que permitia a comunicação com todo o laboratório por meio de ligações ou videochamadas.
– Eu pensei que, pela importância da notícia, eu deveria contar pessoalmente.
– Tá bom. Tenho que contar uma coisa, e vocês não vão gostar. – Norberto ficou sério. – Na próxima semana, um grupo de virologistas chineses do prestigiado laboratório Árvore Alta vai nos visitar. Não se trata de uma visita de cortesia, eles querem ver como trabalhamos e, é claro, querem trabalhar com vocês enquanto estiverem aqui.
– Mas isso pode atrasar nosso trabalho – reclamou a inglesa.
– De fato, esse é o meu maior receio. Se, em vez de pesquisar, vocês tiverem que ensinar técnicas, como nossos dispositivos funcionam e assim por diante, fico preocupado que vocês demorem muito para encontrar antígenos. Vou fazer o meu melhor pra que eles deixem vocês em paz. Keysi, como tão indo os possíveis antígenos que você me contou?
– Tem uma coisa que eu não entendo. Quando aplico o vírus nas células sintéticas e depois injeto meus antígenos, o vírus cresce, não sei como, mas eu maximizo ele, quando na verdade tento fazer o oposto.
– Claramente, você tem uma ou mais variáveis ao contrário – disse Carolina.
– Eu pensei nisso, fiz outras combinações coerentes, mas ainda não funciona.
– Às vezes, o mais coerente é ser incoerente – disse Norberto.
– E a CoHu do vírus indiano? – perguntou Keysi, preocupada que seu antígeno tivesse falhado.
– Todos em perfeito estado e sem efeitos colaterais, você não precisa se preocupar. O antígeno foi um sucesso.
Duas horas depois, uma CoHu estava pronta para testar o antígeno criado por Carolina. Ele era um jovem de trinta e tantos anos, que estava suando muito deitado em uma maca.
– Relaxe – disse uma das enfermeiras que trabalhava nas Salas de Testes.
– Você tem família? Filhos? – perguntou Carolina para acalmá-lo.
– Dois divórcios, quatro filhos – respondeu o homem, sem olhar para ela.
– Você é muito corajoso, poucas pessoas se arriscam a ser CoHu.
– Faço isso pelos meus filhos.
– Você quer dormir durante o processo? Eu tenho que avisar que isso pode te afetar negativamente – informou a enfermeira.
– Você me perguntou se eu quero morrer dormindo?
– Não diga isso, você não vai morrer.
– Sinceramente, não me importo. Sei lá quem criou esse soro milagroso que vão colocar em mim.
– Esse soro milagroso, como você chama, é o que possivelmente vai evitar que milhares de pessoas morram e muitas outras sejam infectadas e acabem do mesmo jeito. E fui eu que criei – disse Carolina, irritada.
– Desculpe. – disse o homem, olhando para o rosto de Carolina pela primeira vez. – Você é muito nova, eu não sabia que as pessoas que pesquisavam essas coisas eram tão jovens. Você também é muito bonita.
Carolina ficou vermelha com o elogio do homem.
– Vai doer? – perguntou a CoHu.
– Não sei – respondeu a maiorquina.
A enfermeira entrou no módulo de contenção onde a CoHu estava. Vestida em seu traje de isolamento, aproximou-se dele, injetando o vírus, para em seguida injetar o antígeno.
– Vou ficar um tempo observando ele. Se precisar de ajuda, ligo pra um dos médicos.
– Agora só nos resta esperar – disse Carolina à enfermeira.
6. Você se perdeu, mas eu te encontrei
Samuel acordou às quatro da manhã chorando por causa de um pesadelo e encontrou Mónica no andar de baixo, sentada no sofá e parecendo triste. Mónica estava acordando todos os seus conhecidos e vizinhos durante toda a noite para perguntar se eles sabiam onde estava seu filho Óscar. Ninguém sabia de nada.
Mónica continuava sentada no sofá, com Samuel dormindo com a cabeça em seu colo, com um sentimento de culpa pela discussão com o filho. A única pessoa para quem ele não tinha ligado era o pai de seu filho, mas ele rapidamente descartou que Óscar pudesse estar com ele, pois não sabia onde ele morava e não tinha levado o celular, então era praticamente impossível.
O despertador começou a tocar às sete da manhã, e nesse dia ela começaria a trabalhar novamente. Mónica levantou-se da cama depois de ter dormido só alguns minutos; seu filho mais novo estava dormindo ao seu lado. Depois de se vestir, ela o acordou.
– Acorde, filho. – Samuel fez um barulho. – Acorde ou eu vou te dar um ataque de cosquinha.
– Não! – protestou o menino.
– Quem você prefere: Maribel ou Rocío?
– Nenhuma.
– Você tem que escolher, mamãe tem que trabalhar.
– Não posso ficar com o mano?
– O mano não tá em casa, escolha – insistiu Mónica, enquanto se penteava.
– Eu fico sozinho.
– Não pode.
– Vou com você.
– Também não pode.
– Mas mãe, é que eu não gosto de Maribel e Rocío.
Trinta e dois minutos depois, Mónica chegou à casa de seu cliente. A casa era uma grande mansão na área nobre da cidade, cercada por árvores exuberantes.
Um homem mal-humorado, vestido com um terno completamente branco e com um lenço roxo no bolso do paletó, segurando um copo de plástico cheio de café, abriu a porta de trás da limusine que Mónica estava dirigindo.
– Você está ciente de que está dois minutos atrasada? Espero que os atrasos não se repitam, ou vou ter que te demitir. – o homem olhou para o banco do passageiro. – Quem é o menino? – Mónica ficou vermelha.
– Desculpe, ele é meu filho, eu não tinha onde deixar e… – se justificou Mónica.
– Sim, sim, me poupe, não tô interessado em desculpas e não gosto de pessoas que sempre têm uma na ponta da língua, prefiro pessoas determinadas. Eu não me importo que você trouxe seu filho, eu gosto de crianças. Mas por que você ainda não saiu?
– Desculpe, não sei onde o senhor trabalha. Poderia me dizer?
– Não te deram o endereço?
– Não.
O homem suspirou.
– Tá bom, dessa vez eu vou lhe indicando o caminho. E, por favor, não se desculpe de novo, e não me chame de senhor, eu não sou tão velho assim.
O homem parecia jovem, apesar de ter o cabelo completamente grisalho. Mónica calculou que ele deveria ter cerca de quarenta anos.
A moradora de Elche saiu com a limusine seguindo as instruções de seu chefe. Estava nervosa, não queria estragar seu novo emprego no primeiro dia. O trajeto durou apenas dez minutos; se estivesse em uma estrada automática, levaria mais de cinquenta. Mónica começou a entender a utilização das estradas antigas para evitar engarrafamentos e chegar mais cedo aos lugares.
– Você foi uma grata surpresa. – o homem sorriu para Mónica pela primeira vez. – Quantos anos você tem? – perguntou ele a Samuel.
Samuel levantou a mão escondendo o polegar e mostrando um quatro. O homem se aproximou dele e acariciou sua cabeça.
– Vejo você à uma, não se atrase desta vez – disse ele, virando-se para Mónica, que balançou a cabeça.
O homem colocou óculos de sol bastante modernos e saiu da limusine, mas deu azar de derramar o que restava de seu café nas calças brancas.
– Merda! Porra!
Samuel e sua mãe riram, colocando a mão na frente da boca para esconder. O chefe de Mónica virou-se e deu um sorriso forçado.
Mónica foi com o filho a um estacionamento abandonado que não ficava longe da empresa de seu chefe, lembrando as palavras do homem que telefonou para ela no dia anterior, que disse para ela não se afastar da empresa.
– Temos que esperar no carro até que ele termine?
– Sim, você quer brincar de alguma coisa?
Samuel balançou a cabeça em sinal de negação.
– Prefiro ler.
– Sabe, seu pai também gostava muito de ler.
– Mãe, quando eu for pro outro lado, eu vou ver ele?
– Não sei, meu amor, espero que sim – respondeu ela, de forma carinhosa.
Samuel pegou um dos dois livros que havia trazido e começou a ler. Mónica, enquanto isso, pesquisou sobre seu novo chefe na internet. O nome dele era Alexis, tinha quarenta anos, como tinha estimado, e, quando era mais novo, tinha sido capa de várias revistas por causa de escândalos. Pelo que ela conseguiu descobrir, ele se casou quatro vezes, todos casamentos curtos, exceto o atual, que já durava quatro anos, e do qual nasceram suas duas lindas filhas: Yolanda, de três anos, e Aura, de um ano e meio. A empresa onde ela o havia deixado, O Diamante Dourado, pertencia à sua família há três gerações e trabalhava com a fabricação e pesquisa de novos aparelhos tecnológicos. Além disso, ele construiu centros de armazenamento de energia solar e reservatórios sobre o mar em áreas muito chuvosas, para um projeto beneficente que permitiria custo zero de eletricidade e água potável para as pessoas, um projeto anunciado anos atrás, que Mónica e outras pessoas necessitadas desejavam que acontecesse.
Procurando nas fotos de adolescente de Alexis, ela finalmente se lembrou. Ela não tinha reconhecido por causa de sua grande mudança física. Quando ele era mais jovem, era gordinho, seu rosto era cheio de espinhas, e daria para dizer que ele era feio. Agora, apesar de não dar para dizer que ele era bonito, era muito atraente, graças, em parte, à sua aparência mais madura. Na juventude, ele teve várias namoradas que se aproximaram dele por dinheiro. Mónica lembrou que uma dessas namoradas era justamente uma amiga dela de infância, mas a história não acabou muito bem. Sua atual esposa era uma ex-modelo sueca de lingerie, famosa por ter desfilado três vezes para o prestigiado desfile do estilista ítalo-espanhol Fiordi Ramos e por ter feito participações especiais em filmes famosos.
Sem perceber, concentrada em descobrir novos detalhes de seu chefe, o relógio marcou quinze para a uma. Mónica acelerou a limusine e seguiu para o local.
Alexis subiu sem dizer uma palavra, depois começou a ler alguma coisa em seu celular, que era muito grande. Mónica estava olhando para ele pelo espelho retrovisor. Ela gostaria de descobrir mais sobre o novo chefe, mas não se atreveu a falar com ele. Além disso, não deveria. Ao chegar na mansão, ele saiu sem se despedir e entrou em casa. Mónica achou ele antipático.
Assim que ela chegou em casa, apressou-se em procurar seu filho mais velho, mas Óscar não tinha retornado. Logo depois de se certificar que o filho não tinha voltado durante o tempo em que ela estava trabalhando, a campainha da casa tocou. Mónica correu para a porta pensando que deveria ser seu filho. Em vez disso, encontrou Ignacio com uma rosa vermelha um tanto pálida na mão esquerda e um olhar entre o de um ator exagerado que tentava seduzir e o de um assassino sádico.
– Oi, linda – disse ele, enquanto ia baixando o olhar.
– O que você quer, Ignacio? – perguntou Mónica, colocando as mãos na cintura.
– Eu não quero chegar na complicada situação de ter que te despeja, então eu tenho pensado sobre isso. Eu sempre notei uma certa atração entre nós – Mónica tossiu para não rir. —, mas, desde que Maribel me disse ontem que você sente alguma coisa por mim, me pareceu uma boa ideia sairmos juntos. Se você fosse da minha família, não teria que me pagar o aluguel. Pense bem, seria uma estupidez se você ficasse na rua por não querer sair comigo. No futuro, podemos até casar e ter filhos, se você quiser, embora eu não goste muito de crianças.
– Acho que não entendi direito, você tá propondo que eu me prostitua em troca do aluguel?
– Não, você me entendeu mal. Eu só quero que o amor prevaleça. Somos duas pessoas apaixonadas, por que não ficarmos juntos?
Mónica pensou que já tinha ouvido muita bobagem, então cortou qualquer possível proposta dizendo com dureza:
– Eu nunca na minha vida vou sentir nada parecido com amor por você, coloque isso na sua cabeça. Nunca mais me proponha uma coisa tão indecente como você acabou de fazer.
Mónica virou-se e bateu a porta, ante o rosto atordoado de Ignacio, que ficou ali sem saber como reagir.
***
Eram nove da manhã quando a porta da frente se abriu. Mónica correu, perturbada. Óscar entrou com cara de cansado.
– Aqui – disse Óscar à mãe, entregando-lhe um envelope.
Mónica abriu, surpreendendo-se com a quantidade de dinheiro que havia dentro.
– De onde você tirou isso? E onde você esteve desde que saiu? – perguntou, exaltada.
– Calma, eu tô bem. Pague Ignacio —disse ele com uma voz calma.
– Não até você me dizer onde conseguiu todo esse dinheiro.
– O vovô e a vovó me deram, tem o suficiente pra um ano inteiro.
Mónica ficou de boca aberta.
– Sabe, mãe, às vezes não ser orgulhoso não é tão ruim.
– Quero que você devolva pra eles agora mesmo – disse ela de forma autoritária.
– Nós precisamos, é isso ou a rua.
– Não mais, Óscar, eu tenho trabalho, fui contratada como motorista.
Agora era Óscar quem estava surpreso.
– Quê?
– Você achou que era uma piada?
– Mas nas estradas antigas só tem loucos dirigindo, procurando uma desculpa para desafiar a morte.
– Não vai acontecer nada comigo, as estradas antigas tão quase desertas.
– É o quase que me preocupa.
– Sobre anteontem… – Mónica mudou de assunto.
– Não quero falar sobre isso.
Óscar começou a andar em direção às escadas.
– Óscar, seu pai não é como você pensa.
– Mãe, por favor, eu disse que não quero falar sobre isso.
– Mas precisamos falar sobre isso.
– Falar sobre o quê? Que você é uma mentirosa?
– Eu te decepcionei, não foi?
– Você não sabe o quanto.
Óscar subiu para o andar de cima e se trancou no quarto. Mónica, por sua vez, pegou o celular e ligou para os pais.
– Quem é? Não vejo nada – disse uma voz feminina do outro lado da linha.
– Não é uma chamada holográfica, é só de voz – uma segunda voz entrou na conversa.
– Mãe, pai, sou eu, Mónica.
– Querida, você precisa comprar um celular mais moderno pra que possamos ver você como se tivesse aqui.
– Vamos te dar um – disse seu pai.
– Vovô! Vovó! – disse Samuel, saindo da cozinha.
– Querida, ative a videochamada, quero ver meu neto.
– Mãe, não é necessário. Samuel, suba pro seu quarto – ordenou ela ao filho.
Samuel foi obediente e subiu correndo as escadas.
– Por que vocês deram dinheiro a Óscar? Eu não preciso do seu dinheiro.
– Eu acho que precisa, ele disse que iam despejar vocês.
– Pai, não seja intrometido, eu já consegui um emprego.
– Que bom, filha, que bom. De qualquer forma, fique com o dinheiro.
– Não tenho intenção de fazer isso.
– Esse seu orgulho vai acabar com você. Sabe quem eu vi ontem no cabeleireiro?
– Não, mãe.
– A mãe de Óscar.
– A mãe de Óscar sou eu.
– Filha, pare de se fazer de boba. Sabe o que ele me disse?
– Não quero brincar de adivinhar com você, mãe.
– Ela disse que quer ver o neto, e ela tem esse direito. Dezoito anos e só viu em fotos.
– Você mostrou pra ela fotos do meu filho? – perguntou ela, irritada.
– Ela é avó dele, você tem sorte que o sem-vergonha do Óscar não pediu a guarda compartilhada.
– Você não disse nada disso pro meu filho, né?
– Não dissemos nada pra ele, mas, se ele perguntar, nós vamos contar.
– Pai, é uma questão entre meu filho e eu.
– Errado, é uma questão entre seu filho e a avó dele.
À tarde, como todo último domingo de cada mês, Mónica e seus filhos foram juntos ao cemitério para visitar o túmulo do pai de Samuel, Miguel. Embora o tempo tivesse passado, a dor da perda ainda continuava. Para Mónica, Miguel tinha sido a pessoa perfeita para ela. Perdê-lo tinha sido um golpe terrível. Se ela pôde continuar com sua vida, era por causa de seus filhos. Para Óscar, Miguel foi como encontrar o pai perdido, aquele que ele tanto desejava, e que agora tinha descoberto que poderia ter, se não fosse pelo egoísmo de uma mãe que não lhe permitia vê-lo. Mas agora que ele sabia parte da verdade, estava disposto a conhecê-lo e a completar o enigma que cercava a adolescência de seus pais.
7. Todos juntos
Keysi lia em um jornal digital uma notícia com o título: O prestigiado laboratório maiorquino O Farol da Luz encontra o antígeno para o vírus que matou centenas de pessoas na Austrália, orgulhosa de sua colega.
Ela estava sentada na entrada do laboratório, com o som do mar calmo ao fundo. Depois de ler o artigo inteiro, ela se levantou e passou novamente pelos controles de segurança na entrada. Primeiro, era preciso justificar sua presença no laboratório, depois a pessoa passava o cartão de autorização pelo sistema. Se tudo estivesse em ordem, a primeira porta, toda de vidro, se abriria. Então, era necessário passar por um detector de matéria, que detectava qualquer material, fosse ele de metal, plástico, madeira ou qualquer outro tipo que a pessoa estivesse carregando. Finalmente, era preciso entrar em um compartimento quadrado de paredes transparentes que detectava resíduos de vírus.
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