Polly!

Polly!
Stephen Goldin


POLLY!

Uma novela escrita por
Stephen Goldin

Publicada por Parsina Press (http://www.parsina.com/)
Tradução publicada por Tektime
Polly! Copyright 2008 por Stephen Goldin. Todos os direitos reservados.
Copyright da arte da capa korhan hasim isik.

Título original: Polly!
Tradutor: Inês Nascimento Wellnitz
Dedicado a todas as deusas
—passadas, presents e futuras—
que foram parte da minha vida

Primeiro Acto
Acordou a tossir.
Inicialmente confuso – de onde vinha aquela tosse? - rapidamente se apercebeu do cheiro. Fumo. O ar estava negro com tanto fumo; denso, ardente, a rodopiar pelo quarto em ondas ameaçadoras.
Depois foi o barulho: um rugido, como um comboio a alta velocidade, mas diferente. Talvez como um furacão ou um tornado, uma deslocação de ar tão violenta que o seu barulho era quase ensurdecedor. Doíam-lhe os ouvidos, talvez de uma mudança na pressão do ar.
E então ele percebeu o que é que aquele som lhe fazia lembrar: o rugido de uma fornalha de tamanho industrial.
Fogo!
Por fim os olhos abriram-se subitamente - um grande erro, já que começaram imediatamente a arder e a chorar. O fumo e a cinza tornavam quase impossível ver o que quer que fosse, e a tosse tornava quase impossível respirar.
Fogo, o pior pesadelo de qualquer dono de uma livraria; e mais ainda de um que vive no andar por cima da loja. Não se viam chamas no quarto, e portanto ele deduziu que só houvesse fogo ainda no piso de baixo. A devorar-lhe o ganha-pão.
Barbara! Acordar a Barbara!
Foi então que se lembrou que já não havia nenhuma Barbara para acordar. Ela tinha-o deixado uns dias antes. Era só ele.
Parte dele interrogou-se sobre o sentido de fazer alguma coisa; podia simplesmente ficar aqui, morrer e resolver assim todos os seus problemas. Mas a outra parte, aquela com um instinto de sobrevivência, foi mais forte.
O que é que sempre se recomenda em caso de incêndio? O fumo sobe; por isso, rasteja-se pelo chão para evitar respirá-lo. Mas será que era a mesma coisa quando o fumo vinha do andar de baixo?
Ele rolou da cama até ficar de joelhos no chão e começou a rastejar; depois parou. Para que lado ficava a janela? Não se via nada. Ele sabia em que posição estava a janela em relação à cama, mas o cérebro parecia ter desligado. Também já não conseguia lembrar-se para que lado tinha rolado da cama: esquerda ou direita? Estava a aproximar-se da janela ou a afastar-se dela?
Ouviu-se o partir de um vidro à sua frente: óptimo, estava a ir na direcção certa. Uma voz gritou: “Está aqui alguém?”
Ele tentou gritar em resposta, mas tinha os pulmões tão cheios de fumo que a única coisa que saiu foi uma tosse seca. Mas isso foi o suficiente para o bombeiro que tinha vindo buscá-lo. “Já o ouvi. Estou a caminho.”
Logo a seguir o bombeiro agarrou-lhe o braço, ajudou-o cuidadosamente a levantar-se e levou-o até à janela. Estava uma escada encostada à parede do lado de fora. “Acha que consegue descer?”, perguntou. Ele acenou com a cabeça em resposta.
“Há mais alguém aqui?”, foi a pergunta seguinte.
Desta vez ele abanou com a cabeça. “Sou só eu”, respondeu, com voz rouca.
Estava outro bombeiro na escada que, juntamente com o colega, o ajudou a descer, ainda a tremer. Já no chão, teve subitamente frio. Apesar ser Julho, a noite estava fresca, e ainda mais fresca parecia depois do forno que tinha sido o quarto. Ainda para mais estava só de cuecas. Eram a única roupa com que dormia, e por isso eram a única coisa que tinha vestido. Felizmente um dos bombeiros viu-o a tremer e embrulhou-o numa manta. Alguém lhe trouxe um fato de treino demasiado grande, que ele vestiu imediatamente; mais alguém lhe passou uma garrafa de água.
Ele virou-se para contemplar o incêndio, e viu, impávido, como o fogo lavrava pelo prédio acima. As chamas faziam um belo efeito contra o breu da noite. De vez em quando, mais para ter algo para fazer do que por ter sede, bebia um pouco de água.
Toda a sua vida estava a ser devorada pelas chamas - bom, pelo menos tudo o que ainda não tinha metaforicamente ardido apenas uns dias antes.
Ali estava ele, imóvel no meio do reboliço - todos corriam à sua volta fazendo todo o tipo de coisas, uns com machados de bombeiro, outros tentando extinguir o fogo com água, outros ainda mantendo os expectadores a uma distância de segurança. Nada daquilo o afectava muito; era como se ele, de facto, já se tivesse ido embora. Era como se as imagens, os sons, os cheiros se sucedessem a uma velocidade vertiginosa, mas do outro lado de um telescópio virado ao contrário. Nada daquilo era real. Nada daquilo tinha a ver directamente com ele. Uma mulher parou por um instante e falou-lhe. Disse-lhe que era da Cruz Vermelha, perguntou-lhe se ele tinha onde ficar e deu-lhe um cartão de uma casa de abrigo que o acolheria por uma ou duas noites se ele precisasse de algum tempo para tomar providências para o futuro e organizar algumas coisas.
As chamas foram morrendo lentamente. Alguém lhe disse que o primeiro andar tinha ficado praticamente destruído, mas que se tinham salvado algumas coisas dele do segundo andar: a carteira, uma cómoda com algumas roupas, o telemóvel. Numa primeira análise, o fogo parecia ter tido origem num problema eléctrico, e não havia suspeita de acção criminosa.
A determinada altura ele devia ter ido até ao abrigo, embora não se conseguisse lembrar de o ter feito. Lembrava-se de ter acordado lá, de sair pela porta da frente, quase num trance, e descer a rua até a um Multibanco para levantar algum dinheiro das suas magras poupanças e comprar o pequeno-almoço. Mastigou e engoliu a comida sem lhe saber a nada - podia até ter comido papel que não tinha feito diferença nenhuma...
O resto do dia passou-o no mesmo estado de espírito. Foi ao que restava do apartamento buscar as poucas roupas que se salvaram e guardou-as em sacos de plástico de supermercado. Contactou o agente de seguros, que lhe deu as condolências antes de lhe recordar que, embora a maior parte do valor do negócio estivesse coberto, os valores pessoais não estavam. Ele saiu do escritório com uma pilha de papelada para preencher e devolver assim que estivesse pronta.
Passou essa noite numa pensão barata, sem relembrar nada do que tinha acontecido. Quando acordou, a realidade começou a penetrar lentamente na sua consciência. Ia ter de arranjar onde ficar, já que não tinha dinheiro para continuar a viver numa pensão. Tinha de fazer o ponto da situação, avaliar o que lhe sobrava; pelo menos isso ia ser rápido, já que não havia muito para inventariar.
Para onde havia de ir? O irmão tinha um rancho no Nevada e estava sempre a convidá-lo para o ir visitar. Era uma boa ideia, pensou ele.
Começou algumas vezes a marcar o número do irmão para o avisar de que ia ter com ele, mas desistiu sempre antes de estabelecer a ligação. Isto não era uma história que se contasse por telefone. E se ele entrasse em choque e não conseguisse falar, se de repente se apercebesse realmente do que se tinha passado e ficasse pregado ao chão, sem conseguir reagir? Não, era melhor ir até lá e fazer uma surpresa ao irmão. Quem sabe, talvez a viagem o ajudasse a pôr alguma ordem nas suas próprias ideias. Atirou os poucos pertences que tinha para dentro do seu Toyota e começou a conduzir em direcção a nascente.

Segundo Acto
A viagem começou tranquilamente: sair da cidade para apanhar a auto-estrada era simples. O dia estava quente e o ar condicionado estava avariado, mas o sistema 4-90 - 4 janelas abertas a 90 km/h - ajudava a suportar o calor. O carro não tinha leitor de CD, mas a rádio estava a passar boa música, rock clássico. Ao menos isso. Enquanto ele se concentrasse no que estava a cantar, não pensava naquilo em que não queria pensar.
Era de manhã e estava na hora de ponta. Ainda havia muito trânsito no sentido oposto, mas nenhum no dele: estava a conduzir no sentido contrário ao de toda a gente, para fora da cidade. Não havia nada que o obrigasse a abrandar. Mudou depois de auto-estrada, passando de quatro faixas para duas. O único trânsito que havia era ainda só no sentido oposto, o que significava que ele podia conduzir à vontade. Carregou no acelerador e o barulho do vento aumentou, abafando a música e levando-o a aumentar o volume do rádio.
A estrada ainda seguia para nascente por cima das colinas e descia depois para o vale central da Califórnia, quente e abafado. Este era um sítio onde só os tolos - ou os desesperados - se aventuravam no Verão sem ar condicionado. Ele não sabia ao certo em qual das categorias se enquadrava.
As colinas, que ele tinha deixado para trás, bloqueavam-lhe o sinal do rádio, que começou a falhar. Mesmo aumentando o volume se ouvia muito pouco, e era mais estática do que música; começou então a carregar no botão à procura de outra estação. Passou umas quantas à frente - desporto, um comentador qualquer claramente a tentar espicaçar os ouvintes - e uma estação onde estavam a falar em espanhol. Tentou mudar para FM, mas quase não havia recepção, por isso voltou para AM e acabou por encontrar uma estação que tocava música variada, de oldies a rock clássico. Não era má, embora fosse demasiado calma para o seu presente estado de espírito.
A temperatura estava agora a aumentar rapidamente. O vento era tão quente quanto o ar dentro do carro, e ele começou a transpirar. Parou numa estação de serviço, atestou o depósito e comprou garrafas de água que, pensou ele, deviam ser suficientes para bastante tempo. A primeira bebeu-a em meia hora; e transpirou no mesmo espaço de tempo quase a mesma quantidade de água. Abriu a segunda garrafa e despejou parte dela na cabeça, o que o ajudou a reduzir a temperatura para os limites do razoável.
Depois de sessenta quilómetros nisto, apanhou uma saída para uma auto-estrada com duas faixas de rodagem, quase vazia; tinha a estrada só para si. O relógio marcava dez e meia. Não estava a correr mal. Se continuasse assim talvez conseguisse até chegar ao rancho antes de escurecer - e de certeza que chegava antes de já estarem todos a dormir.
A paisagem estava a mudar lentamente e os campos agrícolas bem cultivados estavam a dar lugar a uma zona árida, de mato e vegetação baixa. As montanhas no espelho retrovisor encolhiam à medida que ele se aproximava do centro do vale.
Também esta estação de rádio estava a começar a falhar, agora com interferências de uma outra estação local, que orgulhosamente anunciava que tocava ambos os tipos de música, country e western. Na escala de preferências dele esses estavam só um ponto acima de rap, que por sua vez estava só um ponto acima de estática. Ouviu portanto com pouco interesse os acordes doloridos da música; mas depois de três cantores diferentes cantarem três canções de sofrimento sobre a mulher que os deixou, ele desligou o rádio, irritado, e continuou a conduzir em silêncio.
Percebeu rapidamente que tinha sido um erro. Nos vinte quilómetros seguintes o pensamento dele ganhou asas e voou para longe. O IRS. Barbara. O incêndio. A loja. Barbara. Impostos. Fogo. Até música country era melhor do que isto.
A temperatura continuou a subir. Ele bebeu o resto da água da segunda garrafa e voltou a despejar uma parte da terceira garrafa na cabeça, mas desta vez não resultou tão bem. Pelo menos ele tinha estofos de tecido em vez daquela imitação barata de couro: conduzir com a pele a colar-se naquele material a ferver teria sido muito pior, e a viagem já estava a ser suficientemente desconfortável.
Olhou para o assento do lado: a pilha de papéis do seguro seguia lá viagem, com um dos sacos de roupa a servir de pisa-papéis. Ele tinha dado uma vista de olhos aos formulários quando o agente de seguros lhos tinha entregado, e eles queriam toda a espécie de informação, provavelmente até o nome de solteiro do pai e o signo do avô. Tinha havido um incêndio, pelo amor de Deus! A maior parte dos seus documentos tinha perecido. Como é que eles esperavam que ele lhes pudesse dar informação sobre as finanças do negócio se toda a informação tinha ardido?
Não. Esta não era a altura certa para pensar nisso. Era altura de ouvir má música country e meditar enquanto conduzia pelo deserto.
O ponteiro do velocímetro passou os cento e trinta quilómetros por hora. Sem trânsito na estrada, não havia nada que o impedisse de acelerar; e era pouco provável que a polícia se interessasse por ele numa auto-estrada deserta.
Nesse preciso momento, viu outro carro a dar-lhe sinal de luzes. Encostou, a vociferar. Já conhecia o procedimento: pegou nos documentos do carro e na carta de condução e entregou-as ao agente da polícia, que lhos devolveu juntamente com uma multa, tudo de forma muito civilizada; quinze minutos depois já estavam ambos de volta à estrada.
A temperatura estava agora a subir mesmo a sério. Ele despejou o resto da terceira garrafa de água na cabeça e quase que a sentiu evaporar-se ao tocar-lhe na pele. Bebeu depois a quarta garrafa de um só trago, o que não ajudou grande coisa. Parou então numa pequena bomba de gasolina que anunciava ser a única nos próximos cem quilómetros e atestou de novo o depósito. A gasolina era caríssima e ele estava a ficar sem dinheiro, mas com o azar com que andava nestes dias, era melhor não arriscar a alternativa.
Uns minutos depois começou a perder o sinal da estação de rádio country, e começou desesperadamente à procura de outra, mas a única coisa que conseguiu encontrar ali, no meio do nada, foi uma estação religiosa. Porque diabo estava uma estação destas a transmitir a meio de um dia de semana? Nem sequer era domingo. Não era suposto estas rádios limitarem-se a transmitir pela noite dentro, quando não havia perigo de incomodar gente decente?
"Estes eeee-volucionistas heréticos querem convencer-vos de que foi tudo um acidente", dizia o pregador. "Se encontrasses um relógio no meio de um campo, dizias 'que estranho, todas estas peças de metal se juntaram por acaso no meio de um campo de maneira a poderem marcar o tempo'? Que conclusão tão estúpida, ridícula, sem sentido, asinina, bronca, tola, palerma! Ou ias achar que alguém tinha construído esse mecanismo complexo com um objectivo em vista? Um relógio vem de um relojoeiro, tão certo como a noite segue o dia!"
"Pois", disse ele irritado na direcção ao rádio, "um relojoeiro imbecil que, ou não sabe, ou não quer saber se deixa um relógio no meio de um campo estúpido qualquer. Se calhar foi o dono que o perdeu ou o deitou fora porque não funcionava em condições. Então e se deixasses uma barra de ferro no tal campo e voltasses uns meses depois e a encontrasses coberta de um pó vermelho? Achavas que alguém a tinha pintado, não? Ou achavas que tinha enferrujado, seu cretino!"
Mas o pregador do rádio ignorou-o. "O que esta gente não consegue discernir é que tudo é parte de algo maior, algo tão grande que nós não conseguimos ver todos os detalhes. O plano de Deus é tão grande que nos envolve como um cobertor, quente e macio. O plano de Deus é vasto e existe para todos nós, e todos temos um papel nele."
"O plano de Deus inclui reduzir a minha loja a cinzas?", disse ele, agora a gritar para o rádio. "Deus quer que eu fique na rua e na bancarrota? E o IRS, também é alguma parte obscura do plano de Deus? Deus precisa assim tanto dos meus oito mil dólares? Faz parte do plano de Deus passar-me uma multa? Ou fazer com que a Barbara me deixasse? O que é que o plano de Deus me traz? Onde raio está esse cobertor de amor e conforto? É um cobertor todo comido pelas traças, é o que é!" Bateu furiosamente no botão do rádio para o desligar. O suor na sua cara misturava-se com lágrimas, fazendo-lhe arder os olhos e dificultar a visão. Se houvesse trânsito podia ter havido problemas, mas não havia ninguém à vista com quem ter um acidente, e ele lá conseguiu manter o carro na estrada.
Até o silêncio, até os próprios pensamentos eram melhores do que ouvir aquele lixo, mesmo que fossem pensamentos de raiva, confusos, depressivos e desesperados. Ao menos eram os pensamentos dele, e não de um aldrabão hipócrita qualquer.
Ele acabou com a água mais depressa do que esperava, bebendo metade e despejando a outra metade na cabeça. Mas serviu de pouco; ainda estava um calor insuportável.

Terceiro Acto
A princípio ele pensou que fosse uma miragem; mas como a imagem estava bem definida e aumentava de tamanho à medida que ele se aproximava, devia ser real. Tratava-se uma mansão grande de pedra branca brilhante. As filas de janelas, uma em cada andar, reflectiam o sol da tarde. A entrada estava protegida por um alpendre comprido suportado por colunas de mármore branco, e em frente da casa havia um relvado rectangular que contrastava com o deserto estéril a toda a volta. Ele conhecia esta estrada e não se lembrava de nenhuma casa como esta, mas a última vez que tinha passado aqui já tinha sido há alguns anos, e não era de admirar que as coisas tivessem mudado entretanto.
A casa ficava cerca de trinta metros afastada da estrada, com a entrada de frente para esta. À volta era tudo plano, sem nada que quebrasse a monotonia da paisagem à excepção de algum mato aqui e ali e alguns cactos solitários; até as montanhas, uma constante da paisagem californiana, eram apenas uma sombra azul no horizonte distante.
Ele estava demasiado concentrado na própria desgraça para perder muito tempo a pensar na casa. Era como se uma nuvem negra ensombrasse tudo o resto, e assim ele ignorou a mansão e continuou a conduzir. Ou, pelo menos, era essa a sua intenção. Do nada, o motor começou a falhar e parou, e o velho Corolla foi perdendo velocidade até parar quase em frente à rampa de acesso à casa. Ele só conseguiu conduzi-lo até à berma de maneira a não estar no meio do caminho de outros carros que viessem atrás dele - não que houvesse grande probabilidade de isso acontecer.
O ponteiro da gasolina mostrava o depósito pela metade. Ele rodou a chave na ignição algumas vezes, mas tudo o que se ouviu foi um ruído lamuriento. "Porra!", gritou ele para o carro, a dar murros no volante. "Porra, porra, porra, porra, porra! Porquê eu? E tinha que ser agora? Eu sabia que não devia ter confiado nesta lata velha para fazer uma viagem destas!"
Atirou um olhar quase enojado para a papelada da seguradora no assento do pendura debaixo do saco com roupa, saiu do carro e atirou furioso com a porta. Abriu o capot para examinar o motor, mas era um gesto fútil - ele não percebia nada de motores, não fazia ideia do que procurar e ainda menos ideia fazia de como reparar o que quer que fosse que por acaso encontrasse.
Olhou impacientemente para o relógio: meio-dia e trinta e cinco. Estavam de certeza quase quarenta graus, a temperatura ainda ia subir à medida que o dia avançasse, e não havia uma brisa que fosse. Ele ia ter de fazer alguma coisa se queria chegar ao rancho antes de a noite cair. Tirou o telemóvel do bolso, mas não ia ser grande ajuda - não tinha rede. Também, quem é que ia construir uma torre de telecomunicações no meio do nada para lebres e coiotes? Atirou o telemóvel para o deserto com toda a força que tinha. "Não prestas para nada!", gritou ele. "Serves para quê, afinal? Para que é que serve isto tudo?" Deu um pontapé de frustração no carro e engoliu um soluço. "Para que é que serve isto tudo?"
O que ele queria realmente fazer era entrar para o carro e enrolar-se no banco de trás e choramingar; quem sabe até chuchar no dedo, tal como um bebé, e o universo podia seguir o seu caminho e deixá-lo para trás. Era capaz de ser melhor isso do que o que tinha andado a fazer até agora.
Olhou então para cima, para a mansão. Pelo menos podia pedir para usar o telefone deles e chamar a Assistência em Viagem; se bem que, com o azar dele, provavelmente não estaria ninguém em casa...
Olhou então para as suas roupas. Apesar de ter despejado várias garrafas de água por si abaixo, o calor do deserto já as tinha secado. À falta de um pente, passou os dedos pelo cabelo e meteu pelo acesso à casa, contente por, pelo menos, não ser uma noite escura de tempestade, porque aí podia até estar a entrar no covil do Drácula ou do Frank N. Furter ou alguém do género.
Tão absorvido ia ele nestes pensamentos tenebrosos que já estava quase a meio do acesso à casa quando viu o boneco de neve no relvado junto ao alpendre. Tinha de ser uma daquelas decorações de Natal de plástico, pensou. Alguém tinha um sentido de humor muito especial, deixar uma coisa assim cá fora no meio de Julho; ou então alguém era muito preguiçoso para ir arrumar o boneco, uma das duas.
Mas, à medida que se ia aproximando, o boneco parecia cada vez mais feito de neve a sério. Era um boneco tradicional, com três bolas de neve, umas em cima das outras, a de baixo quase um metro de diâmetro, a do meio pouco mais de meio metro e a da cabeça um palmo e meio mais pequena. Os olhos eram duas ameixas pretas, o nariz era um pickle de pepino e a boca era feita de cerejas alinhadas num sorriso. Tinha ainda um cachecol amarelo e vermelho a marcar o pescoço e, na cabeça, em vez do tradicional chapéu alto, um boné de basebol dos Oakland A. Os braços eram magricelas para o corpo rechonchudo - eram feitos de dois paus espetados nos ombros. Ele avançou até ao boneco de neve e tocou-lhe: estava frio. Era mesmo feito de neve verdadeira, e estava aqui neste relvado com quarenta graus debaixo do sol escaldante do deserto em pleno mês de Julho. Recuou então devagar, sem conseguir tirar os olhos do boneco, que ali estava, impávido e sereno, claramente sem qualquer intenção de se deixar derreter.
Por fim, sacudiu a cabeça rapidamente para afastar daqui o pensamento; havia muitos outros assuntos mais prementes de momento. Subiu assim os quatro degraus até à varanda, aproximou-se da grande porta da frente, e tocou à campainha.
A porta abriu-se passados alguns segundos e ele deu por si a olhar para a mulher mais bonita que alguma vez tinha visto. Era baixa – ele media só um metro e setenta, e ela mal lhe chegava ao nariz – mas essa era a única coisa que ele talvez pudesse ter considerado menos perfeita nela. Tinha proporções perfeitas, nem demasiado voluptuosa, nem demasiado maria-rapaz. O cabelo castanho-escuro, cortado curto, emoldurava um rosto também perfeito, com olhos castanhos brilhantes, um nariz atrevido e uma boca pequena e cheia de vida. Vestia uma espécie de macacão comprido preto de cetim. As calças eram largas e fluidas; a parte de cima eram duas faixas de tecido que partiam da cintura, subiam pelo tronco e atavam atrás do pescoço. Estava a usar sapatos de salto baixo pretos e as costas estavam nuas. Não era magra como algumas modelos, mas não se lhe via um pingo de gordura. Usava uma corrente fina de ouro ao pescoço, com um medalhão grande de vários centímetros de largura com pelo menos uma dúzia de luzinhas que acendiam e apagavam. Não parecia ter muito mais de vinte anos.
Ele estava tão ocupado a admirá-la que quase se esqueceu do motivo porque tinha tocado. “Hum, desculpe incomodá-la, mas o meu carro avariou-se na estrada ali à frente, e eu pensei...”
“Bem, não fique aí fora nesse forno”, disse ela, fazendo-lhe sinal para entrar. “Venha para dentro, o ar condicionado está ligado e está muito mais agradável. Bem-vindo à Casa Verde.”
“Obrigado”, disse ele, entrando. Ela fechou a porta, e ele deliciou-se com a temperatura da sala. Há horas que não sabia o que era sentir-se fresco.
Estavam numa sala com um chão de mosaicos de mármore brancos e pretos e um enorme candeeiro de cristal suspenso do tecto alto. Um corredor amplo e longo com várias portas para outras salas levava à parte de trás da mansão. Uma escadaria larga atapetada de verde-escuro levava ao andar superior.
“Detesto incomodá-la assim…”, começou ele, mas ela interrompeu-o outra vez.
“Disparate. Não incomoda nada. Não pode escolher onde o seu carro se avaria, pois não?”
“Não”, suspirou ele. “Esperava que me deixasse usar o seu telefone para uma chamada rápida.”
“Até deixava, se tivesse um.”
“Vive aqui longe de tudo sem um telefone?”
“Se eu tivesse um telefone, as pessoas iam passar a vida a tentar ligar-me”, disse ela. “Já há demasiadas pessoas a tentar falar comigo. Prefiro estar um pouquinho inacessível.”
“Mas e se tem algum problema?”, insistiu ele. “Se precisar de contactar alguém?”
“Não tenho nenhuma dificuldade em entrar em contacto com quem quero”, disse ela. “E não há problema que eu e o meu pessoal não consigamos resolver.”
“Ah, tem pessoal. Assim sempre é melhor.”
“Yep. Aliás, eu ia sugerir que o meu motorista desse uma vista de olhos ao seu carro. Provavelmente saberá repará-lo.”
“Não quero dar-lhe incómodo...”
“Oh, não me incomoda nada. O Fritz é que vai fazer isso. É para isso que ele cá está.” Ela pegou no medalhão e falou na direcção dele. “Fritz, está um carro na estrada aqui em frente que parou de funcionar. Podes dar-lhe uma vista de olhos e ver se o consegues pôr a andar?”
“Sim, Fraulein”, disse uma voz vinda do medalhão. O sotaque alemão era tão cliché que quase que se podia ouvir o bater da continência do outro lado.
“Muito obrigado”, disse ele.
Ela virou-se para o encarar. “A propósito, o meu nome é Polly.”
"Ah, hum, olá. Eu sou o Rod."
Ela inclinou a cabeça para a esquerda. "Mas não se parece nada com um "rod"1 (#litres_trial_promo).
"Como é um "Rod", então?"
"Oh, longo, cilíndrico e duro." Ela fez um sorriso malicioso. "A menos que seja uma alcunha." Ele corou violentamente. "É, hum, é o diminutivo de Herodotus", disse baixinho. Ao mesmo tempo perguntou-se porque é que o tinha dito; era uma informação que ele quase nunca dava voluntariamente, muito menos a um estranho.
"Ah, o historiador grego!", exclamou Polly. "Que chique."
"Conhece?"
"Claro! Eu adoro a Grécia Antiga."
"Pois, o meu pai também. Era professor de cultura clássica."
"Ele devia gostar muito de si para lhe dar um nome tão nobre."
Herodotus fez um esgar de escárnio. "Herodotus Shapiro é um nome horrível para dar a um rapaz judeu."
"Eu gosto. Vou tratar-te por “tu”. Importas-te que eu te chame "Hero2 (#litres_trial_promo)"?"
"Prefiro Rod, a sério."
"Podes ser o meu Hero", disse ela, ignorando-o completamente. "Sempre é melhor que "Her3 (#litres_trial_promo)", não achas?"
"Não me faz diferença", respondeu com resignação. Ele tinha de momento problemas muito mais prementes do que aquilo que uma miúda qualquer tola e rica lhe chamava. De momento, um desses problemas era conseguir tirar os olhos do corpo deslumbrante dessa miúda tola e rica e não se babar para o chão.
Ela meteu o braço no dele e levou-o em direcção à sala que ficava à direita. "Anda para a sala e junta-te à festa!"
"Festa?" Sentiu o peito subitamente apertado. Festas estavam cheias de gente normalmente muito bem disposta, e gente bem disposta era a última coisa de que ele precisava neste momento. "Oh, eu não queria vir à penetra..."
"Não conseguias vir à penetra nem que quisesses", disse-lhe Polly firmemente. Ele sentiu-se de repente muito consciente do facto de estar despenteado e transpirado da viagem. "Acho que não ia estar à vontade. Muito provavelmente não conheço ninguém..."
"Não te preocupes, vais dar-te lindamente. É tudo boa gente, não convido ninguém que não seja."
"Mas... hum... nem estou vestido para uma festa."
"Não te preocupes, todas as minhas festas são ‘venha-como-estiver’, muito informais. As pessoas são mais importantes para mim do que as roupas que trazem vestidas. Anda!"
Ela abriu as portas de correr e levou-o para um salão cheio de gente. Uma música de fundo instrumental alegre estava a tocar enquanto as pessoas conversavam entre elas amigavelmente, e aqui e ali ouviam-se gargalhadas.
A alcatifa azul-claro estava coberta por dois tapetes persa com fundo azul-real. O papel de parede era num ton-sûr-ton de riscas horizontais azul-pastel e azul-marinho que corriam entre o tecto e os rodapés altos. Havia um sofá estilo séc. XIX comprido em brocado azul, cinco cadeiras estofadas com um padrão de jacintos azuis em losangos sobre um fundo verde-lima e, ao fundo do salão, um piano de cauda azul-bebé. Pequenas mesas de apoio de mogno em estilo antigo faziam sobressair a consola em meia-lua debaixo de um grande espelho de contornos biselados. No entanto, toda a gente estava de pé a conversar; ninguém estava a fazer uso do elegante mobiliário.
Ele examinou a multidão sem encontrar nenhuma cara conhecida. "Como é que conseguiste que todas estas pessoas viessem até tão longe para a tua festa?"
"Convidei-as", disse Polly simplesmente. "As pessoas gostam das minhas festas."
Ela carregou num botão do medalhão que tinha ao pescoço e um zumbido suave mas insistente soou no salão; os convidados interromperam as conversas para olhar para a porta.
"Olá a todos", disse ela. "Espero que estejam a divertir-se!" A maior parte das pessoas acenou com a cabeça, outros murmuraram afirmativamente.
"Óptimo!", disse Polly. "Se houver algum problema, digam-me. Quero apresentar a todos o meu Hero. Bem, na verdade o nome dele é Herodotus Shapiro, mas eu acho que Hero lhe cai como uma luva. Por favor, façam-no sentir-se bem-vindo!" Ouviu-se um breve aplauso vindo dos convidados, o que só fez com que Herodotus ficasse ainda mais embaraçado.
Polly olhou para ele: "Estás com cara de quem precisa de uma bebida."
"Não costumo beber..."
"Só um copo de vinho. Fifi!", chamou ela. Uma bela rapariga loira, nova e vivaz vestida com uma farda branca e preta de garçonette aproximou-se segurando um tabuleiro com copos de vinho. O uniforme era muito reduzido e deixava pouco espaço à imaginação, em particular no que respeitava à perfeita perpendicularidade dos seus apêndices mamários. "Oui, mademoiselle?", perguntou ela.
Polly pegou com destreza em dois copos do tabuleiro, deu um a Herodotus e ficou com o outro. "Fifi, quero que te certifiques que o Hero tem tudo o que deseja."
A garçonette olhou para Herodotus e sorriu. "Farei o meu melhor", prometeu ela, subitamente enrouquecida, com as ancas e os ombros a ondear como se corressem em eixos separados.
Polly ergueu então o copo num brinde. "A novas amizades", disse, tocando com o copo dela no seu. Herodotus olhou para o líquido dourado no copo e provou-o; era delicioso - doce sem ser enjoativo, suave, refrescante e com uma nota tonificante e frutada. Bebeu mais um pouco, desta vez com prazer.
Ela observava-o com um sorriso. "Gostas?", perguntou.
"Sim, é muito bom."
"É das minhas vinhas", gabou-se ela. "Chama-se Satisfação, e é o vinho de uvas felizes. Estas vinhas estão mesmo ao lado de umas onde tenho as uvas da ira. Guardo este vinho para ocasiões especiais."
"Olha, Polly, eu..."
"Desculpa ter de te abandonar por algum tempo, mas tenho de ir tratar dos outros convidados. Sabes como é, deveres de anfitriã... Mete conversa com as pessoas, diverte-te. Se precisares de alguma coisa, a Fifi e o James estão à tua disposição."
"Quem é o James?"
"O meu mordomo. Não demoro muito. Depois podemos falar." Ela bebeu um pouco do vinho e misturou-se com os outros convidados, coleccionando sorrisos de todos com quem falava, até desaparecer na multidão.
Herodotus sentiu-se muito deslocado e só. Toda a gente tinha um ar amigável, é certo, mas ele não estava a sentir-se particularmente sociável - não hoje. Dirigiu-se ao sofá, sentou-se tão levemente quanto pode numa das extremidades por respeito à sua óbvia antiguidade e tentou passar tão despercebido quanto possível.
Passados alguns minutos, um homem aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Aparentava estar perto dos setenta anos, com uma cara magra de pele enrijecida pelas intempéries e cabelo branco-neve no alto de uma testa com entradas profundas. Era magro com uma barriga algo proeminente e tinha a face enrugada, mas simpática. Havia ali muitas linhas de sorriso.
"Há quanto tempo a conhece?", perguntou o homem com bons modos.
"Quem? Polly?"
"É esse o nome que ela usa agora? Sim, Polly."
"Encontrei-a pela primeira vez há uns minutos."
O homem acenou com a cabeça. "Eu conheço-a há cinco anos. Eu e a minha mulher estávamos casados há quarenta e três anos, e ela nunca tinha estado doente um dia que fosse, à excepção de um espirro de vez em quando. Um dia a Alice foi ao hospital, e três semanas depois morreu com cancro. Todo o meu mundo colapsou, e eu pensei que mais valia morrer e ir ter com ela. Foi aí que uma enfermeira veio ter comigo na sala de visitas e me consolou. Eu não sou o tipo de homem que chora, mas nesse dia chorei no ombro dela como uma criança - molhei-lhe a farda toda. Mas ela não se importou. Contei-lhe tudo sobre a Alice, devemos ter passado horas a falar. Sabe, alguns amigos tinham tentado consolar-me dizendo que a Alice tinha ido para um lugar melhor, mas a Polly nunca me tentou convencer de nenhum desses disparates. Ela esteve simplesmente ali, presente, e isso foi o suficiente; e algum tempo depois o resto do mundo também passou a estar presente - mais vazio sem a Alice, mas com mais esperança do que eu tinha tido até aí."
Ele parou por um momento, e perguntou: "E qual é a sua história?"
Herodotus corou. Depois de uma história como aquela, o que é que ele podia dizer? "O meu carro avariou-se em frente aqui à casa", respondeu ele, quase em tom de desculpa.
O velho olhou para ele por uns momentos com um sorriso quase imperceptível nos lábios, e acabou por se levantar. "Certo", disse, esticando o braço e dando uma palmada amigável nas costas de Herodotus. "Lembre-se, como Polly sempre diz, nada está perdido enquanto houver esperança." E foi-se embora.
Herodotus tomou mais um pouco do vinho e observou os convidados. Após alguns minutos, um homenzinho com um ar de fuinha, vestido com um fato cinzento e com uma camisa branca perfeitamente engomada e um laço vermelho ao pescoço, aproximou-se do sofá. Em vez de se sentar nele, deu a volta até estar por trás de Herodotus e inclinou-se para lhe murmurar ominosamente ao ouvido: "Sai daqui enquanto podes."
"Como?"
"Ouviste-me bem. Sai daqui antes que seja tarde demais", e afastou-se sem mais explicações.
Herodotus perguntou-se em que toca de coelho tinha caído enquanto via o homem afastar-se. Ele não tinha escolha senão ficar - a menos que quisesse caminhar oitenta quilómetros pelo calor escaldante do deserto.
Pelo meio da multidão andava descontraidamente um gato preto de pelo comprido e olhos dourados brilhantes. Com deliberação felina, veio até ao sofá, examinou Herodotus com atenção, e saltou-lhe para o colo; Herodotus afagou-o levemente. O gato não levantou objecções e começou a ronronar, dando-lhe palmadinhas nas coxas com as patas macias.
Polly regressou nesta altura, desta vez vestida com um body de lantejoulas com riscas verticais vermelhas e brancas e debruado a azul com estrelas também brancas numa fila vertical ao longo do peito e da anca. Os ombros, braços e pernas estavam nus, e nos pés trazia sapatilhas de ballet.
"Ah, encontraste o Midnight", sorriu Polly.
"Acho que ele é que me encontrou a mim", disse Herodotus.
"Estou a ver que estás habituado a ver as coisas de uma perspectiva felina."
"Já tive alguns gatos", admitiu ele.
"Isso agrada-me. Os gatos são a prova viva que Deus estava a brincar quando disse que não devíamos ter mais nenhum deus para além dele." Ela baixou-se e afagou por sua vez o gato, que ronronou ainda mais alto.
Polly saltou para o sofá ao lado dele, deu uns quantos saltos com toda a distinção e boas maneiras de uma criança de dez anos com excesso de energia, e acabou sentada de lado, de pernas cruzadas, a olhar para ele. O gato nem estremeceu. "E agora, do que é que havemos de falar?", perguntou ela.
Herodotus abanou a cabeça. "Não estou com vontade de falar. Só quero arranjar o meu carro e pôr-me a caminho."
A voz de Polly soou compassiva. "Estás com problemas, hein?"
"Eu disse que não queria falar sobre isso", disse ele num tom mais brusco do que tinha sido a sua intenção.
"Tudo bem", disse ela, agora a fazer festas ao gato. "Então podemos falar do meu tema favorito – a minha pessoa. Faz-me perguntas, vejo na tua cara que estás cheio delas. Pergunta-me o que quiseres. Estou muito bem disposta, e assim dou-te uma oportunidade única pela qual alguns homens dariam a própria vida."
Era óbvio que ela não ia deixá-lo em paz, por isso mais valia fazer-lhe a vontade. "Cultivas muitas flores aqui?"
Ela ficou espantada e confusa por alguns segundos. "Tenho de admitir que não me perguntam isso muitas vezes. Normalmente vêm coisas do género ‘qual é o sentido da vida’ ou ‘porque é que isto tinha que me acontecer a mim’. É verdade que tenho um canteiro no jardim das traseiras, mas não é maior do que os jardins de Versailles. Porque perguntas?"
"Bem, quando eu entrei disseste: ‘Bem-vindo à Estufa4 (#litres_trial_promo)’."
Polly riu-se; e o riso dela soava como um espanta-espíritos a tilintar numa brisa suave, um som que enchia a sala de brilho, que era a própria essência da alegria. "Não é ‘Estufa’, é ‘Casa Verde’. Por causa da cor."
"A casa é branca."
"OK, mas ‘Casa Branca’ já está ocupado5 (#litres_trial_promo), topas?"
Herodotus fechou os olhos. Era como se o cérebro dele tivesse acabado de entrar num banco de nevoeiro. "Não sei se isso faz alguma espécie de sentido."
"Sentido? Não havia nada sobre ‘sentido’ no contrato. Népias. Nem sobre ‘justo’, já agora, nem mesmo nas letras miúdas. Eu li-o todo."
Herodotus estava a começar a achar que Polly vivia sozinha há demasiado tempo. Estava mesmo para se levantar e dizer que esperava lá fora quando o mordomo se aproximou do sofá. Era um homem alto de smoking, o cabelo a rarear e já branco nas fontes, que mantinha uma pose de superioridade e trazia uma bandeja de prata com canapés na mão direita. Ele baixou a bandeja com elegância para que Herodotus pudesse examinar o seu conteúdo e disse, com um sotaque britânico quase aristocrático: "Aperitivos?"
"Obrigada, James", disse Polly, pegando num canapé de aspecto invulgar e olhando para Herodotus. "Apetece-te alguma coisa?"
Ele olhou para a bandeja. Na maior parte das festas a que ele tinha ido tinha havido batatas fritas, ou Doritos e snacks do género, ou taças de frutos secos e miniaturas, mas nenhum destes canapés lhe era familiar. "Hum, o que é que recomendas?"
"Oh, são todos óptimos", disse Polly. "Eu é que os fiz."
Herodotus escolheu então um que parecia uma pequena flor vermelha e castanha numa bolacha. Experimentou dar uma dentada; combinava um sabor doce com um sabor salgado. "Isto é muito bom!", disse ele, enquanto acabava o resto.
"Bom, não precisas de ficar tão admirado", disse Polly.
"O que é?"
"Depois de semelhante resposta, não me parece que te vá dizer. James, não precisamos de mais nada."
"Com certeza, senhora." O mordomo endireitou-se e continuou a servir os outros convidados.
Polly observou Herodotus enquanto ele acabava de mastigar o resto do canapé e disse: "Onde é que íamos?"
"Acho que não íamos a lado nenhum."
"Já sei, tu estavas a fazer-me perguntas profundas e inteligentes. Vá, mal consigo esperar pela próxima."
Herodotus acabou o vinho para ganhar algum tempo e decidiu, com um suspiro, falar naquilo que estava a incomodá-lo; bem, numa das coisas que estava a incomodá-lo. Polly não parecia ofender-se com perguntas directas.
"Sabias", perguntou ele incisivamente, "que tens um boneco de neve no teu jardim da frente?"
"O McCool? Pensei que estivesse no quintal. Deve ter ido para o jardim para poder ver os carros a passar, ele gosta disso."
Isto deixou-o embasbacado. "Estás a gozar."
Ela fez um grande sorriso, um sorriso que iluminou a sala como um raio de luz. "Claro que estou, tonto", disse ela, esticando o braço e pondo-lhe a mão no joelho num gesto de simpatia. "O McCool não pode ir para lado nenhum, ele não tem pernas! Isso foi sempre o que me fez confusão com o Frosty, aquele boneco da canção, sabes? Como raio é que ele adorava dançar quando bonecos de neve não têm pernas nem pés? Mas a canção é gira6 (#litres_trial_promo)."
O toque dela deu-lhe no joelho um choque de... algo. Não era de calor, embora ele estivesse quente, mesmo com o ar condicionado; não era electricidade, embora ele sentisse todo o corpo num formigueiro. Nem era desejo, embora o que ela trazia vestido o deixasse muito consciente da sua feminilidade. Era... outra coisa qualquer, e era decididamente uma coisa boa.
Ele começou a dizer "Mas como...", quando ela o interrompeu. "Lamento, senhoras e senhores, o tempo para as questões da audiência terminou. Talvez mais tarde, se te portares bem, mas agora já devia estar a fazer exercício, que era o que eu estava para começar a fazer quando tu apareceste. Daí estas roupas. Anda fazer-me companhia para o ginásio."
"E os teus convidados?"
"Não te preocupes com isso, eles ficam bem por um bocadinho. O James e a Fifi encarregam-se deles."
"Eu não faço muito exercício", disse Herodotus, sem acrescentar que, na opinião dele, a única coisa pior do que fazer exercício era ver outra pessoa a fazê-lo. "Vai sem mim, eu fico aqui a fazer festas ao gato à espera que o motorista arranje o meu carro."
"Nem penses nisso!", disse ela, saltando do sofá e agarrando-lhe no braço. Midgnight tomou isto como um sinal para saltar do colo de Herodotus e ir-se embora. "Eu adoro exibir-me", continuou Polly, "e não posso exibir-me se estiveres aqui em baixo." Ela puxou-o para longe do sofá. "Considera isto como retribuição pela minha hospitalidade."
Ele percebeu que ela era o mais parecido com a Força Irresistível que ele alguma vez iria encontrar, e por isso deixou-a guiá-lo para fora do salão e pelo corredor central até à parte de trás da casa. Afinal, pensou ele, havia certamente maneiras piores de passar o tempo do que a olhar para uma rapariga bonita a suar num body justo.
Quando chegaram ao fim do corredor já estava um elevador com a porta aberta à espera deles. Polly carregou no botão para o terceiro andar, e Herodotus viu que havia botões até ao número treze, e ainda um marcado "R".
"Eu ia jurar que a casa só tinha dois andares", disse ele quando as portas do elevador fecharam. Nesse momento, o elevador disparou com uma velocidade a que nenhum elevador bom do juízo se teria atrevido. Herodotus sentiu-se como se os joelhos estivessem prestes a ultrapassar-lhe o queixo e sair pela cabeça, e o estômago parecia ter ficado no rés-do-chão.
"Oh, deves ter visto só a frente", disse Polly sem dar grande importância à pergunta implícita. "As traseiras são muito maiores. Chegámos."
O elevador parou tão abruptamente que deixou o pobre Herodotus a sentir-se como gelatina. Quando as portas se abriram, ele viu o que parecia o corredor de um hotel luxuoso com portas de ambos os lados. Não havia números nas portas nem nenhuma indicação do que estava atrás de cada porta; à excepção de que uma delas era verde.
Despachada e ligeira, Polly seguiu pelo corredor. Desta vez não teve de puxar Herodotus pela mão; aquela viagem de elevador tinha-o deixado com os nervos em franja e ele não tinha vontade nenhuma de ficar para trás, perdido nesta mansão cada vez mais confusa.
Ela parou ao chegar à porta verde. "Não podes entrar aqui", disse.
"Porque é que eu quereria entrar aqui?"
"Porque é proibido", disse ela ominosamente. "Eles querem sempre entrar quando eu digo que é proibido." Ela continuou a andar e parou em frente a uma porta do lado esquerdo mais ou menos a meio do corredor. "Isto é o ginásio", disse ela. "Entra!"
Era um salão grande, tão grande como um ginásio de uma escola, e não era propriamente aquilo que Herodotus estava à espera. Não se via nenhuma passadeira de corrida, nem bicicleta fixa, nem elíptica, nem máquina de musculação, nenhuma da parafernália do costume. Em vez disso via-se uma mesa de salto, barras paralelas, um trapézio, uma corda bamba esticada a dois metros e meio de altura, e muitos tapetes cinzentos de ginástica espalhados pelo chão.
"Então és acrobata?", perguntou Herodotus, com alguma hesitação na voz.
"Só firrosoficamente", disse ela a parodiar um sotaque chinês.
Herodotus estava confuso, e isso via-se claramente na sua expressão.
"Tu tens de ter visto o Tony Randall no ‘As sete faces do Dr. Lao’", disse Polly, em tom de pergunta. Quando Herodotus abanou a cabeça, ela exclamou: "Oh, mas tens de ver! Dirigido por George Pal, com guião de Charles Beaumont, é um filme que merece ser beatificado!" Ela voltou então ao assunto presente. "A ginástica acrobática é um excelente exercício e ajuda-me a manter esta figura jovem e esbelta que tens estado a admirar sempre que pensas que eu não dou conta."
Herodotus corou, mas na voz de Polly só se ouvia orgulho quando disse: "Olha para isto."
Havia uma corda ao lado do trapézio por onde ela trepou até chegar à barra e pendurar-se nela. Começou então a balançar, cada vez mais alto, até que, num movimento fluido, deu um salto mortal no ar, enganchando os joelhos na barra. Ergueu-se então, devagar, primeiro até estar sentada, depois até estar em pé com os pés afastados. Herodotus começou a aplaudir, mas ela interrompeu-o. "Oh, isto não é nada", disse ela com um toque quase imperceptível de impaciência na voz. "Guarda o aplauso para o fim do espectáculo."
Inclinando-se para a frente, deixou-se cair enquanto se curvava pela cintura para agarrar de novo o trapézio com ambas as mãos. O impulso levou-a a dar uma volta completa à barra, no fim da qual ela abriu as pernas no ar e ficou de cabeça para baixo. Aguentou esta posição sem tremer nem deslizar por uns bons quinze segundos, até que subitamente se soltou, caindo em queda livre e, no último segundo, enganchando os tornozelos nos extremos da barra, onde as cordas a prendiam. Movimentou então a perna esquerda lentamente para o lado e ficou com o pé esquerdo suspenso no ar.
Manteve esta posição por alguns segundos, só para provar que não era por acaso que estava pendurada apenas pelo tornozelo direito numa barra de trapézio, após o que se dobrou sobre a cintura sem qualquer esforço para novamente se agarrar com ambas as mãos. Inclinando-se para a frente e para trás, fez o trapézio balançar, cada vez mais alto com cada arco desenhado. Ao atingir o ponto mais alto de um dos lados, largou então o trapézio e atirou-se em voo pelo ar, enrolou-se sobre si própria e deu dois saltos mortais antes de se esticar de novo e aterrar, em perfeito equilíbrio, no centro da corda bamba.
"Nada de aplausos, por favor", lembrou ela, "mas não tenho nada contra um pequeno suspiro de admiração nesta altura." Mas sem esperar por ele, começou a andar para um lado e outro ao longo da corda, tão segura como se estivesse a andar no chão. Ao aproximar-se do centro da corda, dobrou os joelhos e deu um salto mortal para trás, e outro, e um terceiro, aterrando de cada vez de pé em perfeita segurança.
"Agora chegou a altura de a audiência participar nos jogos", disse ela. "Está ali um monociclo. Podes passar-mo, por favor?"
Herodotus foi buscar o monociclo e passou-lho. Sem se preocupar a agradecer-lhe, ela equilibrou a roda na corda e montou com cuidado, começando então a pedalar ao longo do fio, para um lado e para o outro.
Uma vez chegando de novo ao centro da corda, ela parou, continuando a equilibrar-se no monociclo, e pediu: "Chega-me aquela vara e o prato." Herodotus obedeceu.
A vara tinha quase um metro de comprimento e cerca de centímetro e meio de diâmetro. Ela pegou-lhe pelo meio, equilibrou o prato na ponta e fê-lo girar com força; e, dando ainda mais impulso com a mão, fê-lo girar cada vez mais depressa. Quando ficou satisfeita com a velocidade do prato, pegou na vara com as duas mãos, inclinou a cabaça para trás e equilibrou a ponta livre na testa. Afastou então as mãos até os braços estarem esticados na perpendicular ao corpo e começou a pedalar para a frente e para trás em cima da corda.
"É agora que eu te conto o grande segredo do Universo", disse ela, sem tirar os olhos do prato. "Toda a sabedoria das civilizações condensada numa única palavra: equilíbrio. Mantém-te em equilíbrio e o mundo é a tua ostra. Assumindo que gostas de ostras, bem entendido, senão a metáfora não funciona."
Ela continuou a equilibrar a vara na testa por mais um minuto inteiro. Pegou então nesta com a mão direita, tirou-a da testa e deixou-a cair ao chão. Apanhando no mesmo movimento o prato com a mão esquerda, olhou para Herodotus, dizendo: "Apanha!", enquanto lho atirava, mas permanecendo no monociclo em cima da corda, pedalando para a frente e para trás completamente à vontade.
Finalmente, ela desmontou do monociclo com tanta facilidade como tinha montado, e devolveu-o a Herodotus. Curvando-se pela cintura, agarrou a corda, deu uma cambalhota, deixou cair as pernas até ficar pendurada só pelas mãos, e saltou graciosamente para o tapete no chão, os braços ainda erguidos em triunfo.
"OK, agora já podes aplaudir", disse ela.
Herodotus já tinha passado a fase do aplauso há muito. Apesar do seu mau humor geral, disse entusiasmado: "Isto foi absolutamente fabuloso! És acrobata profissional?"
Polly baixou os braços e fez uma vénia. "Nunca me pagaram para isto, portanto acho que não passo de uma amadora cheia de talento. Mas gosto de praticar na mesma. Tens fome? Fico sempre esfomeada depois de um exercício funambulesco."
O pequeno-almoço já lá ia há muito tempo, e não se podia dizer que aquele canapé tivesse propriamente saciado Herodotus, mas ele não quis pedir mais nada directamente. "Odeio incomodar assim, já fizeste tanto..."
"Não há problema. Vou pôr o Mario a preparar-nos qualquer coisa."
"Hum, importavas-te que eu usasse a casa de banho para me refrescar antes de comermos?"
"Ora essa! Antes isso do que usares um dos cantos da sala. Anda daí." Ela conduziu-o de novo para o corredor: "É a segunda porta à esquerda daquele lado, mas não entres na porta verde! Quando acabares, apanha o elevador para o rés-do-chão, encontramo-nos lá."
Ele chegou à casa de banho, entrou, fechou a porta, encostou-se a ela e fechou os olhos. Era bom ter pelo menos uns minutos de privacidade. Polly era muito bonita e muito simpática, mas também muito... intensa. Sim, era essa a palavra. Intensa.
Deu um suspiro profundo, abriu os olhos... e voltou a fechá-los. Não o surpreendia que Polly não tivesse uma casa de banho normal, mas esta ultrapassava tudo aquilo que ele podia ter imaginado.
Abriu os olhos de novo para apreciar o espectáculo. O papel de parede e o tecto formavam uma ilusão de óptica do que parecia ser uma enorme catedral, talvez até a Abadia de Westminster. A divisão já era, em si, maior do que uma casa de banho normal, o que ajudava ao efeito.
A sanita era, literalmente, um trono - uma peça elaborada esculpida em madeira escura de carvalho com embutidos de marfim e pedras preciosas. Os apoios de braços terminavam em esculturas de cabeças de leão e os quatro pés eram garras fincadas em esferas. As costas estavam estofadas com veludo cor-de-vinho e havia um raio de luz a incidir na tampa que parecia vir de um vitral algures no tecto. Havia um rolo de papel higiénico num suporte discreto num dos lados da escultura.
Ele foi até ao trono e levantou cuidadosamente a tampa, constatando com alívio que o interior era o de uma sanita normal. Aliviou-se então, após o que, como a mulher - em breve ex-mulher, pensou ele - o tinha treinado, fechou de novo a tampa. Ao curvar-se para o fazer, reparou que o papel higiénico era fora do vulgar, e esticou-se para lhe tocar.
Não era papel. Era seda.
Ele foi até ao lavatório, que se parecia muito com uma pia baptismal octogonal que ele tinha visto durante uma visita guiada de igrejas antigas. O ralo e as torneiras eram feitos de ouro maciço e, quando as abriu, a água que jorrou tinha um aroma ligeiro a rosas. Os sabonetes tinham a forma de pequenos cisnes, e as toalhas individuais para as mãos eram de linho e dobradas em origami com a forma de cisnes.
Ele olhou para o próprio reflexo no espelho enquanto lavava as mãos. "Em que é que me meti?", perguntou-lhe ele em voz baixa. "Será que isto é uma versão ainda mais surreal do ‘Hotel California’? Quem é esta rapariga, o que é este lugar?" Mas o seu reflexo não tinha respostas, e por isso ele secou as mãos e saiu para o corredor.
O elevador estava à espera dele de portas abertas quando ele chegou ao fundo do corredor. Carregou no "R/C" com algum receio, e o elevador disparou pelo poço abaixo como se o cabo tivesse rebentado, parando depois súbita mas gentilmente. "Isto dava uma atracção fantástica num parque de diversões", murmurou de si para si. Saiu então para o corredor do rés-do-chão, mas não havia sinal de Polly, e portanto ele ficou à espera.
Foi quando de uma das portas entrou, no corredor, num passo descontraído, um leão, grande e com uma enorme e bela juba. Herodotus gelou por dentro; e começou a recuar lentamente, afastando-se do animal. As portas do elevador tinham-se fechado nas suas costas, mas ele encostou-se a elas com tanta força quanto pode. O leão olhou de relance para ele, e ele reparou que ele era ligeiramente vesgo. Ignorando-o então, afastou-se e entrou noutra porta mais à frente.
Após alguns segundos Herodotus apercebeu-se de que se tinha esquecido de respirar. Começou então a inspirar profundamente para tentar acalmar os nervos.
Polly apareceu vinda de outra porta. Tinha mudado de roupa de novo, e trazia agora umas calças de ganga justas, sapatilhas e uma T-shirt branca que dizia ‘I believe in me!’ em grandes letras azuis na frente. Mesmo com um conjunto tão simples ela ficava imensamente sexy.
"Hã…", disse ele hesitante, "tens um leão a passear pela tua casa."
"Oh, é o Bert. Não lhe ligues. Ele tem mais medo de ti do que tu dele."
Mas para Herodotus tinha acabado o tempo das subtilezas. Encarou-a, olhos nos olhos, e disse: "Mas quem és tu, exactamente?"
Ela respondeu com uma expressão algo confusa: "Já te disse isso. Sou a Polly."
"Polly quê?"
"Polly Quê o quê?"
"Qual é o teu apelido."
"Não, Qual não é o meu apelido."
"Muito engraçado", disse ele irritado. "Diz-me o teu último nome."
"Preciso absolutamente de ter um?"
"Toda a gente tem um apelido."
"Cher. Madonna. Prince."
"Isso são nomes artísticos. Eles têm um nome legal, com apelido."
"Talvez Polly seja o meu nome artístico."
"Estás em palco, então?"
"Constantemente", disse ela, agora a começar a soar aborrecida.
"O que eu quis dizer..."
"Pois podes meter a viola no saco!" Os olhos dela brilharam subitamente de fúria. "Como é que te atreves a entrar por aqui adentro como se tivesses o rei na barriga e interrogar-me como se eu fosse uma criminosa? Tens uma lanterna no bolso ou estás contente por me ver? O que é que te interessa qual é o meu apelido, ou se eu tenho sequer um? Já não és bem vindo aqui. Sai da minha casa imediatamente!"
Herodotus foi apanhado de surpresa por esta mudança súbita de disposição. "Mas..."
"Nada de ‘mas’. Sai. Imediatamente!" E apontou zangada para a porta da frente da casa.
E depois bateu o pé. O chão tremeu.
Há um jogo muito popular entre os californianos: adivinhar o grau da escala de Richter de um terramoto sempre que sentem um. Quase inconscientemente, ele avaliou este como um pequeno terramoto, algures entre o três e o quatro da escala.
Mas ele não teve tempo para pensamento consciente, porque Polly avançou em direcção a ele, os olhos acesos com ira. Ele virou-se então e foi em passo rápido até à entrada, abriu a porta e saiu para o alpendre. Polly foi atrás dele e atirou com a porta da rua, fechando-a com um estrondo.
"Bem, isto podia ter corrido melhor", murmurou ele de si para si.
Ali, de pé, no meio do calor ardente do deserto, olhou para a estrada onde o carro dele tinha avariado. Por um momento esperou ver o motorista de Polly a trabalhar nele, com o chão cheio de peças desmontadas do motor. Mas não havia nada: nem carro, nem motorista, nem peças.
Herodotus olhou primeiro para a estrada, incrédulo, depois para a porta da mansão atrás dele, subitamente intimidante. Abanando vigorosamente a cabeça, desceu lentamente os degraus da entrada e aproximou-se do boneco de neve, que ainda não mostrava nenhum sinal de derreter ao sol.
"Olá, McCool", disse ele. "O meu nome é Herodotus, mas podes chamar-me Rod. O que é que se passa com a Polly? Parecia tão simpática, e depois atira-se a mim e expulsa-me de casa dela. E é tão bonita que não consigo tirar os olhos dela. Mas é tão esquisita. Vê-se que tem dinheiro, que tem talento, mas não parece querer ou reivindicar absolutamente nada, excepto aquilo do apelido. Pergunto-me o que estará por detrás dessa história..."
"E é tão misteriosa. Tantas coisas estranhas acontecem à volta dela e ela não parece dar conta de nada. Tu, por exemplo. Sem ofensa, McCool, mas, por todas as leis naturais, tu nem devias estar aqui. E, no entanto, aqui estás. Ou uma casa maior nas traseiras do que na frente. Eu vi a casa quando me aproximei a primeira vez - toda a casa tem dois andares! Leões a passear pelos corredores... E agora estou aqui abandonado: não tenho carro e não posso andar quilómetros pelo deserto. Só me resta falar com bonecos de neve."

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Polly! Stephen Goldin

Stephen Goldin

Тип: электронная книга

Жанр: Юмор и сатира

Язык: на португальском языке

Издательство: TEKTIME S.R.L.S. UNIPERSONALE

Дата публикации: 16.04.2024

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О книге: Polly!, электронная книга автора Stephen Goldin на португальском языке, в жанре юмор и сатира

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