Crimes Esotéricos
Stefano Vignaroli
Stefano Vignaroli
Crimes Esotéricos
Para minha esposa Paola e meus filhos Diego e Debora
Tektime
CRIMES ESOTÉRICOS
Stefano Vignaroli
A primeira investigação da Comissária Caterina Ruggeri
ISBN
Copyright © 2011 – 2018 Stefano Vignaroli
Segunda Edição © 2020 Edizioni Tektime
Tradução de Kharina Kohl Mensen
Todos os direitos reservados
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E-mail para contato stedevigna@gmail.com
STEFANO VIGNAROLI
CRIMES ESOTÉRICOS
A primeira investigação da Comissária
Caterina Ruggeri
ROMANCE
PREFÁCIO
Oque uma série de desaparecimentos misteriosos em Triora, na Ligúria, tem em comum com o assassinato de uma bruxa mais de quatrocentos anos antes? Será possível que os dois eventos, tão distantes no tempo, estejam de alguma forma conectados?
Um verdadeiro mistério que a Comissária de Polícia Caterina Ruggeri deverá esclarecer a todo custo, refazendo uma trilha obscura que parece ter raízes esotéricas.
Assim se apresenta “Crimes Esotéricos”, um romance que tem o gosto de sangue e a cor das noites sem estrelas, um empolgante noir capaz de manter os leitores em suspense, fazendo-os sentir aquele sinistro formigamento na espinha que só a leitura de um bom thriller pode despertar.
Um livro franco, próximo da realidade, mas, ao mesmo tempo, com seu esoterismo, tão distante, como se quisesse fugir dela, levando o leitor consigo e arrastando-o para um mundo de fantasia, imaginação e… arrepios!
Filippo Munaro
PRÓLOGO
Verão de 1989
Fronteira entre o Nepal e a República Popular da China
Quando os sherpas chegaram perto de mais uma ponte suspensa, explicaram às duas mulheres que os haviam contratado em Katmandu, em um inglês deficiente, que nunca iriam além daquele ponto. Eles não tinham permissão para desafiar suas divindades, estavam com muito medo. Nenhum deles jamais havia se aventurado além daquela ponte e aqueles que, no passado, ousaram fazê-lo, nunca mais retornaram. Se as mulheres quisessem continuar, fariam isso por sua própria conta e risco. Eles deixariam para elas o essencial para carregar em suas mochilas, um pouco de comida, algumas barras de chocolate, um pequeno fogão de acampamento e uma leve barraca iglu para duas pessoas. Eles ficariam três dias, não mais, esperando por elas. O dia estava claro, o ar rarefeito dos quase quatro mil metros de altitude conferia ao céu uma cor azul intensa, e os picos das montanhas mais altas da Terra desafiavam este céu límpido com os seus pináculos nevados. Aurora e Larìs tiraram seus quentes casacos de goretex, que até então as haviam protegido das repentinas tempestades de neve que enfrentaram com frequência nos cinco dias anteriores. Seu objetivo certamente não era experimentar a emoção de uma viagem extrema, mas chegar ao Templo do Conhecimento e da Regeneração, para encontrar o Grande Patriarca. Elas poderiam acessar o conhecimento universal preservado no templo e, assim, se tornarem adeptas do mais alto nível da seita. Elas já sabiam que, a partir daí, teriam que continuar por conta própria, confiando na sua intuição e nas suas capacidades. Se falhassem, se tomassem um caminho errado, seria impossível se salvarem. Elas só encontrariam a morte naquelas montanhas. Aurora pagou ao líder sherpa a quantia acordada, dizendo-lhe que, se quisesse, poderia partir imediatamente. Mas o homem de feições asiáticas, segurando as rédeas de uma lhama, balançou a cabeça e repetiu:
‒ Três dias.
Ele aqueceu um chá forte para as duas mulheres e as dispensou, cumprimentando-as com um aceno de mão. A idosa e sua jovem amiga colocaram suas mochilas nos ombros e se aventuraram na ponte, suspensa sobre um abismo de pelo menos oitocentos metros de altura.
CAPÍTULO 1
Caterina Ruggeri
Avoz do comandante da aeronave avisando os passageiros sobre o pouso iminente me trouxe de volta à realidade. Apenas uma hora de voo de Ancona a Gênova, mas minha mente estava ocupada com um turbilhão de pensamentos. Os acontecimentos dos últimos dias levaram minha vida a um ponto de inflexão. Eu estava pensando no meu passado e no meu futuro. Agora eu tinha um trabalho importante, havia sido nomeada Comissária em Imperia, e nunca imaginei que essa nomeação chegaria tão cedo. É claro que, como chefe da Unidade Canina da Polícia Estadual no Aeroporto Raffaello Sanzio, em Ancona, eu tive anos empolgantes. Tive a chance de me realizar naquilo que sempre gostei desde cedo, trabalhando e treinando cães policiais, desde cães farejadores de drogas até cães de resgate em escombros, desde cães patrulha até os cães de busca e salvamento, adequados para a busca de rastros e pessoas desaparecidas. Por outro lado, além de estar envolvida em um trabalho que eu gostava muito, também tive tempo para me dedicar aos meus estudos e me formar em Direito, me especializar em Criminologia e esperar pela cobiçada ascensão na carreira.
Eu certamente nunca abandonaria minha paixão pelos cães, uma paixão que me foi passada por meu primo veterinário, Stefano, agora com cinquenta anos, diretor médico da Clínica Veterinária Aesis. Stefano sempre foi meu amor secreto, desde que eu era uma garotinha. Meu primo de segundo grau, doze anos mais velho que eu, sempre me atraiu de maneira particular. A lembrança de um feriado de Ferragosto, no dia quinze de agosto, vinte e cinco anos antes, esteve sempre viva em minha memória. Na época, eu era pouco mais que uma criança, estava na sétima série e ainda não tinha completado treze anos, enquanto ele tinha acabado de se formar em Medicina Veterinária em Perugia.
Eu estava de férias com minha família, meu pai, minha mãe e meus irmãos gêmeos, Alfonso e Stella, em uma agradável localidade nas montanhas Sibillini, a 1.400 metros acima do nível do mar. Meu pai, fã de férias alternativas, nunca nos levaria para um hotel, então usamos o trailer-reboque novinho em folha que ele tinha acabado de comprar.
Minha família e a de Stefano eram muito próximas. Meu primo se juntou a nós no início da manhã, junto com suas duas irmãs e sua mãe, para passar conosco o feriado. O dia já estava esplêndido, sereno, claro, sem nuvens no céu. O ar fresco da montanha inspirava uma boa caminhada e, por isso, decidimos ir até um refúgio a uma hora e meia de caminhada de onde estávamos acampados. De lá, mais meia hora de subida desafiadora levava a um pico chamado Pizzo Tre Vescovi. Durante todo o percurso, ignorei minha priminha da mesma idade que eu, tentando ficar o mais próxima possível de Stefano e conversar com ele. Ele me contou sobre a universidade, seus planos atuais e futuros, como e por que havia deixado recentemente sua namorada, com quem havia compartilhado mais de cinco anos de vida. Stefano e eu éramos os mais apaixonados pelas montanhas e os mais resistentes ao cansaço físico, por isso, tendo chegado ao refúgio, enquanto os outros decidiram descansar e se dedicar à colheita de mirtilos e framboesas, nós dois estendemos a caminhada até o cume. Meu pai havia combinado de nos encontrar no acampamento para almoçar à uma hora da tarde. Com um gesto um tanto infantil, mas proposital, peguei Stefano pela mão e comecei a subir com ele o caminho íngreme e árduo. O espetáculo no cume compensou o esforço para chegar lá. Em um dia tão claro, era possível correr o olhar das montanhas da Úmbria a oeste, para o Mar Adriático a leste, das montanhas de Pesarese ao norte, para o contorno maciço do Monte Vettore ao sul, que fechava o horizonte e impedia que se olhasse para as montanhas de Laga e Abruzzo.
Eu observava a vista, mas, sobretudo, olhava para os maravilhosos olhos verdes de Stefano, que indicava os nomes das várias montanhas que ele conseguia reconhecer. Quanto mais eu o observava e ouvia, mais me sentia atraída por ele, que tinha um rosto bonito, adornado com uma barba clara, cabelos escuros e espessos e dois olhos que eu gostava de uma maneira incrível. Sendo pouco mais que uma criança, eu não sabia exatamente o que significava me apaixonar, mas naquele momento percebi que estava experimentando novas sensações e que talvez, pela primeira vez, tivesse sido vítima desse estranho sentimento.
Fizemos o caminho de volta descendo, ainda conversando e brincando, e nos juntamos ao resto do grupo, bem a tempo do almoço preparado pela minha mãe, um excelente macarrão à matriciana, acompanhado de linguiça grelhada e, para finalizar, framboesas colhidas pelos meus irmãos e primos durante a caminhada. No final da refeição, propus a Stefano que nos deitássemos ao sol. Eu peguei uma manta e nos afastamos um pouco, fora da vista dos outros. Eu tirei a camiseta e a calça jeans e fiquei com um biquíni rosa, apenas do tamanho suficiente para cobrir meus seios ainda imaturos. Ele também havia tirado a camisa. Deitamos um ao lado do outro, aproveitando o sol da tarde que aquecia nossa pele. A certa altura, eu me virei para ele e pressionei meus seios pequenos contra seu peito.
‒ Me ensine como se beija um garoto!
Ele me olhou interrogativamente, mas eu, nem um pouco intimidada, aproximei meu rosto do dele, semicerrando os olhos. Senti seus lábios se unirem aos meus e, por um momento, fiquei em êxtase. Não sei quanto tempo durou, acho que poucos instantes. Quando Stefano percebeu o que estava fazendo, parou e, embora com delicadeza e talvez com relutância, me afastou de si.
‒ Caterina, isso não pode acontecer entre nós, eu não deveria ter me deixado levar. Você é uma menina muito bonita e se tornará uma linda mulher. Você tem lindos olhos azuis, que se destacam ainda mais sob sua cascata de cabelos escuros. Você não terá nenhuma dificuldade em encontrar um bom rapaz que seja adequado para você. Eu a conheço desde que você usava fraldas e garanto que a amo muito, mas como uma irmã! E, além do mais, doze anos de diferença é um abismo. Você é pouco mais que uma criança e eu já sou um homem quase pronto para se casar. De qualquer forma, em setembro partirei para a escola de especialização em Doenças de Pequenos Animais e ficarei em Pisa por dois anos. Garanto-lhe que escreverei para você e lhe darei meu endereço. Minha amizade e carinho por você sempre existirão, mas vamos considerar o episódio de hoje como uma brincadeira e não vamos mais falar sobre isso.
Corando, assenti com a cabeça, mas aquele beijo permaneceria em minha mente e em meu coração como o mais belo que já recebi.
Naquela época, não existiam telefones celulares, então o contato só podia ser mantido escrevendo cartas e cartões postais ou por meio de telefones fixos. Portanto, por algum tempo, o relacionamento com Stefano foi esporádico e somente dois anos depois pude passar alguns dias com ele novamente.
Eu havia terminado o primeiro ano do ensino médio e tinha passado com notas excelentes, mas o verão prometia ser chato e sem muita perspectiva de férias, pois, na família, as brigas entre meu pai e minha mãe estavam se tornando cada vez mais acaloradas e os dois não conseguiam mais chegar a um acordo sobre nada. Além disso, meu pai passava por crises depressivas cada vez mais frequentes.
Era um dia quente de julho quando minha mãe me chamou, dizendo que meu primo Stefano estava perguntando por mim ao telefone. Corri para o aparelho com o coração na garganta.
‒ Oi Caterina, eu passei no exame do segundo ano de especialização e tenho alguns dias de folga antes de começar meu estágio de dois meses na Clínica Universitária. Depois, em outubro, tenho que apresentar minha dissertação, portanto, este promete ser um verão muito agitado para mim! Por que você não se junta a mim aqui em Pisa e podemos fazer um tour pela Toscana? Umas boas férias farão bem para nós dois, para você, como uma distração da sua situação familiar, e para mim, como uma pequena pausa no cansaço dos estudos!
Depois de pedir permissão aos meus pais, que não causaram nenhum problema, peguei o trem e cheguei a Pisa. Stefano estava me esperando no saguão da estação. Eu lhe dei minha mochila e entrei em seu carro, um Citroen 2CV, com o qual viajaríamos pela Toscana nos dias seguintes, pernoitando em albergues ou na casa de seus amigos da universidade. Visitamos cidades lindas, como a própria Pisa, San Gimignano, Siena e Arezzo. Também nos aventuramos aos Apeninos Toscano-Emilianos para uma breve excursão até as nascentes do Arno, sempre animados por nossa já consolidada paixão pelas montanhas. Finalmente chegamos a Florença, onde fomos hospedados por seu irmão, matriculado na Faculdade de Arquitetura, mas que fazia de tudo, menos estudar. Na última noite, depois do jantar, fazia calor e eu estava cansada. Caminhando ao longo do Rio Lungarno, chegamos a Ponte Vecchio. Era uma noite esplêndida, a lua quase cheia no céu se refletia no rio e o espetáculo era realmente romântico. Aproveitando o cansaço, eu me apoiei em Stefano, passando um braço em volta de seu pescoço. Ele, em resposta, segurou gentilmente minha mão, que estava pendurada em seu ombro, acariciando-a um pouco. Então ele enlaçou minha cintura com o outro braço. Ficamos assim, em silêncio, abraçados lado a lado, olhando a paisagem florentina. Eu esperava um beijo, mas nada aconteceu. Eu queria que aquele momento nunca acabasse, queria ficar ali daquele jeito para sempre, mas, em vez disso, na manhã seguinte, me vi na estação em Florença, pronta para voltar para casa. As curtas férias terminaram, mas eu ainda pensava no abraço da noite anterior, ainda sentia sua mão tocando a minha. Eu estava apaixonada? Talvez.
Ao chegar em casa, encontrei meu pai e minha mãe envolvidos em mais uma discussão, e isso extinguiu toda a poesia criada nos dias anteriores. Como é possível, pensei, que duas pessoas que se amavam, que partilhavam a vida há mais de vinte anos, viessem a se tratar dessa maneira? Naquele momento, percebi que o casamento não era realmente para mim.
Eu tinha quase 19 anos quando, em um dia quente no início do outono, meu pai se matou com um tiro na têmpora. Como ele conseguiu uma arma, eu nunca soube. O fato é que sua vida tinha sido marcada por uma tragédia, ocorrida uns doze anos antes, na qual morreu meu irmãozinho mais novo, com cerca de três anos.
Meu pai gostava de cozinhar aos domingos, acendendo brasas na churrasqueira, onde assava de tudo, espetinhos, linguiças, legumes gratinados, frango no espeto e outras iguarias. No dia do acidente, como era seu costume, ele acendeu o fogo e preparou tudo o que precisava na mesa. Alfonso, por diversão, pegou uma grelha e começou a correr pela sala. Tentando afastar o perigo, meu pai correu atrás dele, então o menino tropeçou e caiu no chão. A grelha voou pelo ar e caiu na sua nuca. Uma ponta de metal se infiltrou justamente no espaço entre duas vértebras cervicais, atingindo a medula espinhal e causando a morte instantânea da criança. Papai nunca se perdoou por esse episódio. Junto com minha mãe, eles decidiram ter outro filho para compensar a perda e, assim, depois de algum tempo, nasceram os gêmeos. O fato de chamar a um dos bebês de Alfonso novamente não foi uma boa ideia, porque cada vez que os meus pais diziam o nome dele lembravam-se da tragédia. Com o passar do tempo, eles brigavam com cada vez mais frequência. Minha mãe sempre atribuiu a culpa pela morte da criança ao marido, que havia entrado em depressão e, para combatê-la, começou a frequentar sessões de psicoterapia. Seu terapeuta, nessa época, o havia enchido de drogas psicotrópicas que, em vez de fazê-lo se sentir melhor, o levaram a um colapso mental e, por fim, ao suicídio.
Eu ouvi um barulho alto vindo do escritório do meu pai e corri naquela direção com um mau pressentimento. Eu o encontrei caído em sua mesa, com um bilhete lacônico ao seu lado, onde ele havia escrito apenas isso: “Perdoem-me”.
Não consegui derramar uma lágrima sequer. Minha mãe nem parecia muito triste com a perda, na verdade, talvez tenha sido uma libertação para ela. Sentia a necessidade de conversar com alguém que não fosse minha mãe, com alguém que me entendesse, e o único que poderia fazer isso era Stefano. Eu o encontrei em sua clínica veterinária nos arredores de Jesi e somente em seus braços pude dar vazão a todas as minhas lágrimas.
‒ Eu sofri demais nos últimos anos, vi muito mal ao meu redor e gostaria de compensar isso me dedicando a um trabalho que seja útil para alguém e, ao mesmo tempo, que me traga satisfação pessoal. Me dê um conselho, por favor!
Ele sorriu para mim, tentando enxugar minhas lágrimas.
‒ Você se formou recentemente com notas máximas, tem bons conhecimentos de psicologia e sociologia, além de adorar animais, principalmente cães. Se for do seu interesse, um cliente meu, superintendente da Polícia Estadual, me contou há poucos dias sobre um projeto para criar uma Unidade Canina dependente da Delegacia de Polícia de Ancona. Enquanto aguarda a chegada de fundos e equipamentos, ele recebeu um pastor alemão para ser usado como cão farejador de drogas no porto. Por que você não tenta uma carreira na Polícia? Acho que você se sairia muito bem! Depois de entrar, você terá a oportunidade de mostrar suas qualidades como especialista em cães. Estou aqui e sempre a ajudarei quando precisar!
Na época, julguei a ideia um pouco bizarra, mas depois, ponderando também que eu não me considerava uma mulher para o casamento, dada a terrível experiência dos meus pais, alguns dias depois eu me apresentei na Delegacia de Polícia em Ancona e preenchi o formulário de admissão para o curso de agentes estagiários.
Depois de concluir o curso, a carreira não seria tão fácil quanto eu pensava. Passou algum tempo até que eu fosse chamada para a polícia e, nesse meio tempo, me matriculei na Faculdade de Direito de Macerata, dedicando-me principalmente à criminologia.
Não tinha nem feito ainda o primeiro exame, quando finalmente chegou a carta de admissão com a qualificação de agente selecionada, lotada na Delegacia de Polícia de Ancona. No início, parecia que ninguém estava interessado nas minhas qualidades como criminologista e nas minhas habilidades em trabalhar com cães. Eu costumava passar longos dias atrás do volante pelas ruas da cidade, parando carros em bloqueios ou prendendo bêbados, viciados em drogas e prostitutas. Certamente não era o trabalho que eu esperava e, além disso, eu estava tão exausta no final do turno que era impensável voltar aos livros e começar a estudar.
Mas eu não baixava a guarda e sempre procurava uma oportunidade de demonstrar minha verdadeira capacidade aos meus superiores. Depois de alguns anos de serviço, a promoção para o cargo de superintendente era automática e, assim, abriu-se a possibilidade de eu acompanhar outros inspetores em algumas investigações.
A ideia de uma equipe de cães empregada pela Sede da Polícia de Ancona foi, no entanto, monopolizada por um colega, o superintendente Carli, destacado para o porto, onde ele não fazia nada além de deixar seu pastor alemão farejar alguns turistas que passavam, para ocasionalmente tirar alguns gramas de drogas das calças do infeliz de plantão. Mas as verdadeiras drogas, aquelas que sabíamos muito bem que estavam transitando pelo porto de Ancona em quilos, nunca haviam sido interceptadas.
Finalmente, um dia, minha grande chance chegou. Junto com o inspetor Ennio Santinelli, um cara inteligente, mas que não tinha aquela vantagem extra que serve para se destacar dos demais, eu estava investigando um tráfico de cães roubados, que acreditávamos estarem sendo transportados para o exterior, depois de serem limpos de qualquer marca de identificação. Segundo o colega, eles eram, em sua maioria, cães de caça que tinham mercado na Grécia, Albânia e Turquia. Na minha opinião, havia mais do que isso, também porque eram cães mestiços e de todas as idades, até mesmo idosos. Eu havia questionado Stefano e também para ele, como veterinário, a coisa não fazia sentido.
‒ Se você quiser especular sobre o tráfico internacional de animais, ou eles seriam cães de caça jovens e de alto pedigree ou cães treinados para combate. Tem mais alguma coisa aqui ‒ ele me disse ao telefone.
Em uma manhã de março, chegou à estação um fax da Grécia. Uma associação de bem-estar animal informou que em Patras, a bordo de uma balsa com destino a Ancona, havia sido embarcada uma carga internacional, que oficialmente transportava cavalos. Mas, entre os equinos, havia pelo menos cem cães transportados em condições desumanas. O superintendente Carli não estava de serviço naquele dia e o inspetor Santinelli, em parte por causa do frio intenso da manhã e em parte porque não queria invadir o campo de seu colega, relutou em ir para o porto.
‒ Não acho que isso seja muito do nosso interesse ‒ disse Santinelli. ‒ Vá você, Caterina, dê uma olhada e, se achar necessário, chame o serviço público veterinário para intervir.
Ao chegar ao cais onde a balsa da Grécia havia atracado, notei imediatamente uma agitação de ativistas dos direitos dos animais, exigindo a apreensão imediata da carga. Por outro lado, o capitão da balsa alegou que as autoridades italianas não poderiam intervir a bordo, de acordo com as convenções internacionais, e que ele havia recebido uma mensagem do armador grego para não desembarcar a carga, que retornaria a Patras. Tudo isso me convenceu cada vez mais de que eu estava presenciando um tráfico obscuro. Solicitei os documentos da carga internacional, o plano de viagem e os documentos de acompanhamento dos animais. O caminhão, trator e reboque, vinham da Turquia e tinham como destino final Hannover. Pelos documentos de transporte, constatamos que o veículo deveria transportar apenas cavalos destinados ao abate. Tentando me comunicar em inglês com o motorista grego, consegui extrair dele a informação de que, entre os cavalos, alguns cães também estavam sendo transportados. Ele me mostrou alguns certificados de saúde, atestando a vacinação antirrábica e outros tratamentos, mas que, escritos em grego, eram muito difíceis de entender. O motorista alegava ter cerca de quarenta cães a bordo, enquanto os ativistas dos direitos dos animais afirmavam que havia pelo menos cem. Eu queria fazer o caminhão desembarcar para verificá-lo com calma, mas o capitão do navio continuava a se opor. Eu precisava de um estratagema. Peguei meu celular e, embora as tarifas de telefonia móvel ainda fossem muito altas naquela época, liguei para Stefano, que me deu a dica.
‒ Se os animais estiverem em viagem por mais de 24 horas, para o bem-estar deles e de acordo com as leis internacionais vigentes, eles devem receber cuidados, água, alimentação e repouso, portanto, imponha-se ao capitão e faça o caminhão desembarcar. Você verá que ele não pode recusar. Na verdade, se não cumprir as regras, ele corre o risco de perder seu emprego bem remunerado.
O capitão ameaçou que, mais tarde, iria protestar oficialmente, mas, no momento, fez desembarcar o caminhão. No interior, de fato, havia poucos cavalos e muitos cães. Chamei imediatamente o inspetor Santinelli e o Magistrado de plantão, pois pretendia apreender toda a carga. Eu consegui fazer isso, superando a relutância de meu colega e do Magistrado, que estavam muito preocupados, pois seria necessário encontrar um local adequado para abrigar todos os animais.
Quando consegui verificar os cães, cento e dois na listagem final, fiquei impressionada com o fato de que todos eram de tamanho médio, todos mestiços e todos com músculos proeminentes nas costas.
Por que não? Pensei comigo mesma. Eles podem ter encontrado uma maneira de contrabandear algo, inserindo sob a pele desses pobres animais! Mas como explicar isso aos meus superiores?
E aqui Stefano mais uma vez interveio com sua inestimável ajuda. Eu havia providenciado que os cavalos ficassem no estábulo de um amigo dele e os cães em um canil moderno e recém-construído, do qual ele cuidava das instalações sanitárias. O canil tinha uma enfermaria bem equipada, onde Stefano realizava operações de primeiros socorros em cães feridos. O equipamento também incluía um aparelho de ultrassom, usado para diagnosticar a gravidez das éguas alojadas.
Era preciso agir rapidamente, pois advogados de renome internacional já estavam se movimentando para obter a soltura dos animais, o que aumentava ainda mais as suspeitas e hipóteses de tráfico ilícito. Meu colega, o Sr. Carli, também estava furioso, porque havíamos invadido seu território. Ele invocou conexões importantes nos escalões superiores, até mesmo no Ministério do Interior, e exigiu que o caso lhe fosse devolvido.
Assim que tosamos o pelo de um cão, notamos que o animal apresentava uma cicatriz linear em cada lado, próximo à coluna lombar.
‒ Vamos tentar fazer alguns exames de ultrassom nas costas desses cães ‒ Stefano me disse, acariciando afetuosamente um dos simpáticos bichinhos.
‒ São cicatrizes perfeitas. Não se parecem com cortes cirúrgicos, pois as marcas transversais dos pontos não são evidentes. Mas um cirurgião que saiba trabalhar bem, realizando uma sutura subcutânea particular, pode obter cicatrizes estéticas como essas. Eu mesmo não saberia fazer melhor.
Então ele colocou a sonda do ultrassom na parte afetada.
‒ Há uma densidade anormal no tecido subcutâneo. Eu diria para levarmos alguns desses cães para a sala de cirurgia para ver o que está escondido sob as cicatrizes.
Ele anestesiou um cão, preparou cirurgicamente a área anatômica identificada e cortou logo acima da cicatriz. Extraiu um invólucro coberto de sangue, hermeticamente fechado, cuja transparência revelava um pó branco. Certamente não era farinha nem açúcar.
‒ Drogas ‒ afirmei. ‒ Muito provavelmente cocaína ou heroína, proveniente do Afeganistão e com destino à Alemanha via Turquia, Grécia, Itália e Áustria. Eles criaram um belo truque, mas, em minha opinião, alguém que conheço lhes sugeriu isso. Os cães farejadores de drogas só sentem o cheiro dos outros cães e as drogas não são detectadas na alfândega. A cirurgia é realizada na origem, então espera-se que as feridas cicatrizem e o pelo do animal volte a crescer. Mas depois, ao chegar, esses animais provavelmente são mutilados, até mesmo mortos, para extrair o seu precioso conteúdo.
Eu havia informado ao Magistrado sobre a descoberta, que ordenou que os animais fossem operados em condições seguras, removendo o conteúdo da droga, e depois fossem tratados adequadamente. Mais tarde, eles poderiam ser adotados por pessoas de bom coração. Stefano, em sua clínica, trabalhou dia e noite para intervir em todos os cães, permitindo-se poucas horas de descanso e sabendo que não veria nem um centavo ao fim do trabalho. Mas, para garantir meu sucesso, ele faria isso e muito mais. No final tínhamos duzentos e quatro sacos, cada um contendo meio quilo de droga, que o laboratório forense confirmou ser heroína pura. Eles valiam cento e trinta bilhões da antiga Lira (aproximadamente sessenta milhões de euros). Também descobrimos que o Superintendente Carli estava envolvido na história até o pescoço e ele foi preso por cumplicidade. Nesse momento, a investigação passou para o encargo da Interpol, que tentaria identificar a rede de narcotráfico, a partir de todos os elementos que havíamos disponibilizado.
Alguns dias depois, o Delegado me chamou ao seu escritório para as congratulações de praxe.
‒ Parabéns, Ruggeri! Graças à sua intuição, fizemos um ótimo trabalho e fomos elogiados no Ministério. Já assinei a proposta da sua promoção para Inspetora Chefe. Além disso, também descobrimos que Carli estava fazendo de tudo para encobrir as propostas e os fundos provenientes do Ministério para o projeto das unidades caninas. Agora que Carli se foi, vou propor que a responsabilidade pelo projeto passe diretamente para sua direção. Você poderá dispor dos recursos como achar melhor, decidir como organizar a estrutura, mas, acima de tudo, escolher os cães e os homens. Minha proposta é deixar o porto para a Guarda de Finanças, que já controla a alfândega, enquanto teremos nosso próprio espaço no aeroporto Raffaello Sanzio, que será modernizado a partir do ano 2000. O que você acha?
‒ Obrigada, Doutor, mas acho que não mereço isso ‒ respondi, baixando o olhar. ‒ Eu apenas cumpri meu dever!
As palavras daquela conversa de tanto tempo atrás ainda ressoavam em minha mente, quando a voz rouca do alto-falante me assustou.
‒ Agradecemos por escolher a empresa Nuova Alitalia! Informamos aos senhores passageiros que dentro de aproximadamente dez minutos estaremos aterrissando no aeroporto Cristoforo Colombo, em Gênova. São nove horas e trinta minutos do dia primeiro de julho de 2009, a temperatura no solo está em torno de 28 graus, há previsão de tempo claro e estável, com temperaturas crescentes e ventos de sudeste. Desejamos-lhes uma boa estadia. Obrigado e até o próximo voo!
É claro que foram necessários mais dois anos para estabelecer o Destacamento Canino no aeroporto Raffaello Sanzio. Em um terreno que havia pertencido à Força Aérea, o assentamento foi construído exatamente como eu imaginava: doze baias cercavam três lados de um grande campo de treinamento. O quarto lado era ocupado pelo prédio de serviços, convertido de um antigo edifício da Força Aérea. No térreo havia uma enfermaria bem equipada para os cães, com equipamentos de radiologia, ultrassom, um armário de remédios bem abastecido, além de uma sala cirúrgica para operações de emergência. Algumas salas estavam reservadas para a administração, enquanto no andar superior eu tinha meu próprio alojamento, um quarto, um banheiro e uma pequena cozinha. Por vários anos, o local foi minha casa e meu teto, bem como meu local de trabalho, também levando em conta que eu estava cada vez mais convencida de que nunca me prenderia a um homem.
Eu havia escolhido pessoalmente os cães no centro canino da Guarda de Finanças em Castiglione del Lago e na Polícia Estadual em Nettuno, perto de Roma, onde, na época, fiz o curso de adestramento. Eu queria cães perfeitamente treinados e queria abranger o máximo de especialidades possível. Por isso, trouxe para a cidade de Falconara Marittima dois pastores alemães, para serem usados como cães farejadores de drogas, e dois outros cães da mesma raça, acompanhados por um rottweiler, como cães de choque e para intervenções de ordem pública. Como cães de busca e de escombros, destinados a operações de defesa civil, optei por um par de labradores retrievers e um samoieda. Selecionei então dois weimaraners para trabalhar com explosivos, enquanto outro pastor alemão, um macho grande, foi escolhido para ataque e defesa pessoal. Uma baia, deixada vazia para quaisquer outras especialidades, seria posteriormente ocupada por meu springer spaniel, Fúria, um cão totalmente impróprio para a caça, mas com um faro excepcional, capaz de seguir um rastro e encontrar pessoas desaparecidas apenas a partir de um simples objeto pertencente a quem ele estiver rastreando. Mas o Fúria chegaria vários anos depois do início das atividades do destacamento.
Os homens também foram escolhidos entre os mais valiosos da força da Policial Estadual nas várias províncias da região de Marche. Cada homem era associado a um cão, como seu adestrador, de modo que ele tinha que ser não apenas um especialista na mesma área do animal, mas também tinha que ter a paciência de treinar e cuidar de seu cão como se fosse um filho ou uma parte de si mesmo. Eu tinha algumas dúvidas sobre propor ao inspetor Santinelli para que fosse meu assistente. Geralmente há alguma dificuldade em aceitar ser subordinado a uma pessoa de quem já se foi superior, mas ele aceitou de bom grado, seja por causa de sua paixão por cães ou talvez por uma paixão por mim também, que eu nunca compartilharia.
No início do verão de 1997, finalmente estávamos prontos para começar. A inauguração do destacamento ocorreu na presença de importantes autoridades, os prefeitos de Ancona e Falconara Marittima e funcionários do Ministério do Interior. Ao final de nossa demonstração do trabalho com os cães, em ações simuladas de busca de drogas, explosivos e ações destinadas a deter criminosos, o dia terminou com uma exibição da Frecce Tricolori. Para meu grande pesar, a única nota triste do dia, fiquei sabendo que esse foi o último evento público do Delegado Ianniello, que estava prestes a se aposentar.
Resumindo, com menos de 26 anos eu já tinha uma posição de responsabilidade e que me trazia grande satisfação. O apoio de Stefano, tanto como médico de nossos cães quanto como amigo habitual, nunca falhou. Todos os cães escolhidos trabalharam de forma excelente. Somente com relação ao rottweiler é que acabei me arrependendo de minha escolha.
‒ Para manter a multidão sob controle ‒ Stefano me alertou, ‒ você precisa de cães que façam uma cena, que instiguem medo naqueles que estão à sua frente, sejam eles os torcedores no estádio ou os manifestantes na praça. Mas os cães nunca devem causar lesões pessoais. O rottweiler é um traidor. Ele parece bonzinho, está sentado olhando para você e nem parece se importar. Mas quando você chega ao alcance dele, sem nem mesmo avisar com um rosnado, ele é capaz de rasgá-lo vivo. A força de suas mandíbulas é superior à de qualquer outra raça de cães. Medida com um dinamômetro, a força de sua mordida chega a 230 kg, em comparação com 80 kg do pastor alemão e 120 kg do mastim napolitano. É basicamente uma máquina de guerra. Nunca confie nele!
Para minha tristeza, depois que Thor, este é o nome que lhe foi dado, foi responsável por algumas brincadeiras desagradáveis no treinamento contra seu treinador, ele teve que ser aposentado. Normalmente, um cão é aposentado no final de sua carreira, quando está velho demais para cumprir suas funções e, na maioria dos casos, o treinador, que tem um relacionamento especial com o cão, o adota e o mantém com ele, tendo em vista que o animal ainda tem alguns anos de vida. Se isso não acontecer, o cão aposentado deve ser submetido à eutanásia, até porque é impensável que cães tão treinados acabem nas mãos de pessoas não confiáveis. Eu estava ciente de que o fim de Thor seria a injeção letal e não conseguia aceitar, mas olhei para o seu treinador, com um braço ainda enfaixado, e não podia assumir a responsabilidade de que isso acontecesse novamente. Thor logo foi substituído por outro pastor alemão, dessa vez escolhido por mim em um canil local. Eu o criei desde filhote e o treinei sozinha até chegar a hora de designá-lo a um adestrador.
Com exceção do episódio desagradável com Thor, os dias passaram rapidamente. Todos os dias a equipe ficava envolvida em treinamentos por pelo menos duas ou três horas, depois havia os serviços, o controle de drogas na alfândega do aeroporto e as buscas em feiras e mercados à procura de possíveis batedores de carteira ou traficantes de drogas. Às vezes, também éramos chamados a locais distantes, para intervenções de proteção civil, durante terremotos ou outras catástrofes naturais, para recuperar quaisquer sobreviventes sob os escombros, ou para procurar pessoas desaparecidas nas montanhas, não só por ocasião de avalanches, mas também porque talvez tivessem se perdido durante uma caminhada. Com o passar do tempo, a reputação da minha equipe ultrapassou as fronteiras da região de Marche e, com frequência, éramos solicitados para serviços longe da nossa base. Faltava à equipe um cão que pudesse farejar uma pista, seguir rastros, enfim, ajudar o policial tanto em uma investigação quanto em uma ação. Ele chegou mais tarde e este era o meu Fúria, um springer spaniel, filho da cadela do inspetor Santinelli.
O fluxo de meus pensamentos foi, a certa altura, interrompido definitivamente pela frenagem do avião na pista e a subsequente abertura da porta. Um capítulo totalmente novo de minha vida estava prestes a começar.
CAPÍTULO 2
Eu estava tentando me orientar no saguão de desembarque do aeroporto para ver onde ficava a esteira rolante em que minhas malas chegariam, quando um homem grande, usando um perfeito uniforme de verão da Polícia Estadual, aproximou-se de mim com determinação. Ele devia ter pelo menos um metro e noventa de altura, com cabelos penteados para trás, olhos azuis e uma barba perfeitamente aparada, com seus bíceps lutando para caber na meia manga da camisa do uniforme. Ele fez uma saudação militar e, depois, pensando melhor, estendeu a mão para mim.
‒ Doutora Ruggeri, presumo! Sou o Inspetor Mauro Giampieri e, a partir deste momento, estou à sua disposição. Tenho instruções peremptórias do comissário de polícia: devemos partir imediatamente para chegar à cena de um crime. Se trata de um assassinato que ocorreu esta noite em Triora, um pequeno vilarejo no interior de Imperia. Já instruí um oficial a recolher sua bagagem e levá-la para a delegacia de polícia. Siga-me, não temos tempo a perder.
Eu estava um pouco atordoada e o segui sem objeção, embora gostaria de ter começado de outra forma, pegando um táxi para Imperia e me adaptando ao meu novo local de trabalho depois de pelo menos ter me refrescado em um hotel. Quando vi o carro azul e branco da Polícia Estadual na vaga de estacionamento reservado, em direção ao qual estávamos indo, não pude deixar de sentir uma emoção: um Lamborghini Gallardo novinho em folha. Eu só sabia da existência daquele carro maravilhoso, capaz de atingir uma velocidade de 320 km/h, equipado com um computador de bordo com várias funções, conectado por um sistema de satélite aos arquivos da Polícia Criminal e da Interpol, porque havia lido sobre ele em nossas revistas.
‒ Pensei que essa joia fosse reservada para a Polícia Rodoviária ‒ eu disse, tentando quebrar o gelo com o inspetor, que mantinha seu ritmo determinado. Quando chegamos a alguns passos do carro, as quatro setas piscaram, emitindo um sinal sonoro.
‒ Este é diferente do usado pela Polícia Rodoviária, não no modelo, mas em termos de equipamento e desempenho. Terei a oportunidade de lhe explicar muitas coisas no caminho, acomode-se!
Quando estávamos no carro, ele inseriu um cartão em uma abertura no painel e digitou um código em um teclado numérico. Ele estava prestes a pressionar o botão de partida do motor, mas parou e começou a mexer em uma caixa.
‒ Seu antebraço direito, Doutora! Vou inserir nele um microchip, contendo algumas informações sobre a senhora, como dados pessoais, tipo sanguíneo, histórico médico, mas que também funcionará como um localizador via satélite, caso seja necessário. Será rápido, não sentirá nenhuma dor. Infelizmente, são ordens. Tive que inserir um em mim também.
Sua disciplina pseudomilitar estava começando a me irritar um pouco e fiz um protesto.
‒ Não sou um cachorro que corre o risco de se perder!
Com movimentos rápidos, ele abriu uma embalagem esterilizada contendo algodão embebido em álcool e, em seguida, de outra, retirou uma seringa com uma agulha de enorme calibre. Apesar de meus protestos, ele agarrou meu braço e realizou o procedimento.
‒ Mantenha o algodão pressionado por alguns instantes e aperte o cinto de segurança. Estamos partindo.
A aceleração colou minhas costas ao banco do carro. O Lamborghini, em poucos segundos, atingiu uma velocidade muito superior à permitida pelo código de trânsito, logo passou pelo pedágio e estava viajando a uma velocidade próxima de 200 km por hora.
‒ O senhor, inspetor, parece mais um militar do que um policial. Não conheço seu currículo, mas acho que vou estudá-lo cuidadosamente. No entanto, como temos de trabalhar juntos e eu sempre detestei formalidades, proponho que nos tratemos pelo primeiro nome: eu sou Caterina.
Ele respondeu, relaxando um pouco.
‒ Mauro. Confesso à senhora… confesso a você que, na verdade, até alguns meses atrás, eu estava no exército. Acompanhei o contingente italiano em várias missões no exterior e até o Natal passado eu estava de serviço no Afeganistão. Eu estava em Nassirya em 2003, durante o massacre de soldados italianos, e escapei sem sofrer um ferimento sequer. Também estive no Iraque e na Bósnia-Herzegovina. Ainda estou muito habituado à disciplina militar. No entanto, sou especialista em explosivos, no combate ao terrorismo e à guerrilha organizada, em dirigir em condições extremas… Acredito que o Delegado nos queria como parceiros para resolver um caso realmente complicado, sobre o qual contarei mais tarde. Enquanto isso, deixe-me falar sobre as características desse carro, que, até o momento, não tem comparação na Itália. Como você pode ver, aqui no centro do painel temos uma tela de doze polegadas, que parece um navegador GPS, mas tem muitas outras funcionalidades. É um verdadeiro computador, que além de ter acesso à internet por meio de uma conexão via satélite, também nos permite consultar bancos de dados da Polícia, não apenas da Itália, mas de todo o mundo. Este é um pequeno scanner, conectado ao sistema, no qual podemos inserir impressões digitais, obtidas em fita adesiva, e iniciar uma busca nos bancos de dados aos quais estamos conectados. À funcionalidade da tela sensível ao toque, que é muito interessante para trabalhar no menu principal, podemos adicionar as funções de um teclado padrão, que temos naquela pequena gaveta ali embaixo. Abra o porta-luvas e você encontrará uma pistola, que já foi atribuída a você, e um palmtop. Tanto você quanto eu temos um palmtop idêntico, conectados ao computador de bordo do carro. O palmtop, assim como o microchip que recebemos, permite que a estação, e quem estiver no carro, identifique nossa localização exata com o sistema de GPS.
‒ Puxa, a julgar por tudo o que você está me dizendo, a investigação que eles nos designaram deve ser bem arriscada. Nem mesmo o lendário Agente 007 tem toda essa tecnologia à sua disposição!
‒ De fato, você não está errada. Há vários anos, eventos estranhos vêm ocorrendo em Triora: pessoas desaparecem em circunstâncias misteriosas, aparentemente sem deixar vestígios. Até o momento, os carabinieri[1 - Polícia Militar Italiana (nota da tradução).] investigaram, mas não descobriram nada. Sobre a principal suspeita, uma certa Aurora Della Rosa, a quem o povo da cidade se refere como feiticeira, ou melhor, como bruxa, eles nunca conseguiram reunir provas suficientes e, portanto, a investigação ainda está tateando no escuro. Na noite passada, um incêndio começou na floresta perto de Triora, ameaçando a própria casa de Aurora. No final das operações de combate ao fogo, os bombeiros encontraram o corpo carbonizado de uma mulher. Acredito que o médico legista e a equipe forense já estejam no local. Desta vez, sem os carabinieri nem seu departamento científico, a investigação é nossa. Precisamente por causa de seus estudos sobre esoterismo e seitas, o Delegado Geral de Imperia solicitou sua presença, e esse crime, quem sabe por que coincidência, foi cometido justamente na sua chegada. Agora temos que trabalhar, e não é pouco!
Na verdade, depois de alguns anos de trabalho intenso com as unidades caninas, a equipe se tornou tão bem treinada e eficiente que consegui arranjar algum espaço pessoal e até mesmo voltar a frequentar a Faculdade de Direito de Macerata. Eu sabia que, com meu diploma, poderia aspirar a um importante avanço na carreira, mas não foi isso que me motivou a estudar, e sim minha paixão inata pela criminologia, que só ficava atrás da paixão por cães. Eu estava particularmente interessada nos crimes cometidos por adeptos das chamadas seitas esotéricas. A partir do episódio das Bestas de Satã, ocorrido alguns anos antes, no qual alguns bandidos, para encobrir o assassinato de uma garota e enganar a investigação, encenaram missas negras e ritos satânicos, comecei a estudar as verdadeiras seitas esotéricas. Eu havia tentado me aprofundar para ter uma ideia de suas origens, que se perderam nas brumas do tempo, para entender o que estava por trás de seus rituais e quais crimes seus seguidores haviam cometido, tanto no passado recente quanto no remoto. Na Itália, a Ligúria era um dos lugares onde se sabia que alguns seguidores ainda se reuniam e praticavam secretamente seus rituais, que às vezes envolviam sacrifícios de animais ou pessoas. A Inquisição combateu as seitas até meados do século XVII, condenando os prosélitos à morte sob a acusação de heresia ou bruxaria. Tudo isso era particularmente fascinante para mim, então, com minha monografia intitulada “Seitas esotéricas e crimes perpetrados por seus adeptos”, me formei em julho de 2008 com nota máxima.
E assim, em virtude de meus estudos, agora, menos de um ano depois de me formar, fui chamada para ocupar o cargo de Comissária no Distrito Policial de Imperia, precisamente na área onde ainda havia intensa atividade relacionada a seitas.
Pela janela, pude ver várias cabines de pedágio passando, uma após a outra. Em poucos minutos, já estávamos passando pela saída de Savona, continuando em alta velocidade em direção a Imperia.
‒ Por que os investigadores veem a sombra de seitas em tudo? ‒ perguntei, emergindo de meus pensamentos. ‒ Em suma, se considerarmos as Bestas de Satã, famosas nesses lugares, podemos entender que todas elas são invenções e que o esoterismo não tem nada a ver com isso.
‒ Nesse caso, porém, há elementos bem fundamentados para se pensar em uma seita, embora toda a trama, que começou há vários anos, permaneça obscura. Nenhum corpo foi encontrado até hoje e, com base nesse novo elemento, pode-se começar a pensar que as pessoas anteriormente desaparecidas também foram assassinadas, mas os crimes foram encobertos, na época, de maneira impecável. Nesta noite talvez tenha acontecido algo inesperado e o assassino, ou assassinos, não tenham conseguido esconder o cadáver, como nos outros casos. Talvez tenham tentado atear fogo ao corpo da vítima, mas uma mudança repentina no vento, que não é incomum nessas regiões, provocou um incêndio que não pôde mais ser controlado. Soubemos que foi a própria Aurora quem chamou o socorro porque sua casa estava ameaçada pelo fogo.
‒ Qual é o seu álibi? Sabemos o que ela disse?
‒ Ela disse que voltou muito tarde, depois de jantar em um restaurante mais abaixo no vale, e que, ao se aproximar de sua casa, avistou a luz avermelhada do fogo. Ela ligou para o 193 do seu celular quando ainda estava a alguns quilômetros da casa.
‒ Bem, faremos as verificações apropriadas. Mas antes me fale sobre as pessoas desaparecidas.
‒ Seria preciso muito tempo para contar tudo em detalhes. Tentarei resumir brevemente, depois teremos a oportunidade de examinar todo o material que nos foi enviado pela delegacia e pelo tribunal. Há um belo arquivo para estudar, e ele já está em sua mesa. A primeira pessoa cujo rastro foi perdido foi a que morava na mesma casa que Aurora e se chamava pelo mesmo nome. Em 1989, essa senhora de sessenta anos, conhecida como cartomante, herborista, curandeira, vidente e feiticeira, decidiu ir às montanhas do Nepal para chegar a um templo onde poderia regenerar o seu espírito, o seu corpo e a sua alma. Ela chegou a Katmandu junto com uma de suas seguidoras, uma jovem romena chamada Larìs Dracu. As duas mulheres contrataram sherpas, que as acompanharam até um determinado ponto. Quando elas insistiram em ir para uma área inexplorada, proibida aos sherpas devido às suas crenças religiosas, estes as deixaram continuar sozinhas, dizendo que as esperariam por três dias, após os quais seriam dadas como perdidas. Não se ouviu mais nada sobre as duas, mas depois de alguns meses, uma garota de vinte anos apareceu em Triora dizendo ser a neta de Aurora. Apelando para sua homonímia, ela se arrogou o direito de tomar posse da casa da avó. Essa jovem Aurora também parecia ter dons sobrenaturais, mas muito mais poderosos do que os da sua suposta avó. Os poucos habitantes locais que conheceram Aurora em sua juventude não puderam deixar de notar a extraordinária semelhança entre a jovem e a velha desaparecida, tanto que muitos se convenceram de que a bruxa havia encontrado um elixir da juventude em sua viagem ao Nepal e conseguira rejuvenescer a aparência a ponto de se tornar uma garota novamente. Mas, além disso, episódios estranhos começaram a ocorrer nas florestas ao redor de Triora. Havia rumores na aldeia de que, nas noites de lua cheia, as bruxas haviam voltado a praticar seus Sabbaths, convocadas pela própria jovem Aurora. Fora dos Sabbaths, Aurora recebia muitas visitas em sua casa. Além dos postulantes que solicitavam remédios de ervas para curar doenças ou elixires de vários tipos para resolver problemas amorosos, de vez em quando chegavam determinadas pessoas, que ela recebia como adeptos de uma seita esotérica, cujo nome não me lembro agora. Essas pessoas, principalmente mulheres, vinham ao local para obter conhecimentos na antiga biblioteca, que sempre foi zelosamente preservada na casa pelos ancestrais de Aurora e gradualmente enriquecida por eles ao longo dos séculos. Uma dessas jovens, Mariella Carletti, conhecida como A Ruiva, partiu em 1997 de um pequeno vilarejo em Abruzzo, onde já era conhecida como curandeira e vidente, dizendo que iria a Triora para passar pelos árduos testes que permitiriam que ela se tornasse uma adepta do sétimo nível, um dos mais elevados, e que voltaria com poderes que ninguém jamais imaginaria. Ela nunca mais voltou. Em Triora, essa bela garota, alta, com cabelos esvoaçantes cor de fogo, olhos azuis claros, tez pálida e cheia de sardas, não passou despercebida. Ao anoitecer do dia 21 de junho, data que coincide com o solstício de verão, ela foi para a floresta onde se dizia que os Sabbaths aconteciam e então desapareceu. Um detalhe interessante é que houve um princípio de incêndio naquela noite, ainda que bastante limitado. Aparentemente, um caminhão abandonado há muito tempo havia pegado fogo, mas o incidente não pôde ser relacionado de forma alguma ao desaparecimento da moça. A carcaça queimada do caminhão ainda está lá, nunca foi removida. O caso, na época, foi arquivado como sendo obra de vândalos. Em 2000, três jornalistas, dois homens e uma mulher, de uma conhecida revista mensal nacional com sede e redação em Gênova, quiseram realizar sua própria pequena investigação sobre o desaparecimento da garota, ocorrido três anos antes. Sob o pretexto de uma reportagem sobre bruxas e feitiçaria em Triora, eles montaram uma tenda bem na floresta onde as bruxas se reuniam, perto da Fonte das Nozes, na esperança de testemunhar algum ritual satânico ou algo do gênero. Durante alguns dias, eles reuniram informações sobre o julgamento das bruxas de Triora no final do século XVI. Eles também tentaram obter uma entrevista exclusiva com Aurora, mas ela não concedeu. Na noite de 20 para 21 de agosto, os três jornalistas desapareceram em circunstâncias misteriosas. Dentro da tenda, encontrada vazia na manhã seguinte, estavam alguns cadernos com o material coletado. Esses cadernos foram devolvidos à revista, que, em apoio aos três, publicou um artigo de oito páginas sobre as bruxas de Triora. A última frase escrita no caderno de um dos três jornalistas estava em grandes letras maiúsculas e sublinhadas: “MEU DEUS!” Algo ou alguém definitivamente o assustou até a morte. Não se soube mais nada sobre os jornalistas desaparecidos.
Nesse meio tempo, passamos por Imperia, saímos da rodovia no pedágio de Arma di Taggia e pegamos uma estrada provincial que subia por um estupendo vale, paralelo ao curso de um rio. Era a primeira vez que eu estava vendo lugares que mais tarde se tornariam familiares. Estávamos viajando pelo Vale Argentina, por onde corre o rio de mesmo nome, um vale estreito com poucos habitantes. O verde das florestas exuberantes se destacava contra o azul intenso do céu límpido no dia quente de início de julho e, dentro de mim, a antiga paixão pelas montanhas era reacendida. Eu já estava sonhando em caminhar pelas trilhas que levam àquela floresta. Passamos por um pequeno vilarejo, Molini di Triora, antes de chegar a Triora, uma cidade com características medievais, situada no topo de uma colina. Depois de passar pelo centro, a estrada voltava a descer e, depois de pouco tempo, paramos em uma clareira, onde estavam estacionados dois carros de Polícia, um Jeep do Corpo de Bombeiros e um caminhão da Guarda Florestal equipado para apagar incêndios na mata.
‒ Bem, ‒ eu disse ‒ o que você me contou é muito interessante e, de fato, o cheiro das seitas, assim como o cheiro de queimado, é definitivamente perceptível! Resta agora entender até que ponto o esoterismo tem a ver com isso e quanta responsabilidade os adeptos têm no desaparecimento das pessoas que você mencionou e no assassinato desta noite, isso se for mesmo um assassinato e não um simples acidente.
‒ Caterina, meu conselho é: aqui a prudência nunca é demais. Bruxas à parte, podemos nos deparar com criminosos inescrupulosos no decorrer desta investigação. Pegue a arma e vamos memorizar o número do palmtop um do outro, para que possamos ligar em caso de necessidade. Vamos lá!
Peguei o palmtop, mas deixei a pistola no porta-luvas do carro, pois achei que não precisaria dela naquele momento.
CAPÍTULO 3
Aurora Della Rosa
Larìs não tinha medo de atravessar a ponte suspensa. Ela procurou os olhos azuis-esverdeados de Aurora, que lhe davam toda a força e energia de que precisava. A conhecia há pouco tempo, mas confiava nela e em seus poderes esotéricos.
Larìs Dracu era originária da Transilvânia, uma região da Romênia, que no final da década de 1980 ainda era governada por um ditador comunista. Aos dezoito anos, ela já havia ganhado a fama de bruxa anticomunista e, para não cair nas mãos da polícia secreta do General Ceausescu, com muitas dificuldades chegou à Itália. Ela foi até um pequeno vilarejo na Ligúria, onde sabia viver uma adepta da mesma seita que a sua, que a ajudaria e guiaria em sua jornada para o nível mais alto, aquele além do sétimo, o do conhecimento universal. Quando chegou à casa de Aurora no dia do equinócio da primavera, ao meio-dia, percebeu que sua anfitriã a esperava na soleira, com a porta aberta. Ela não ficou surpresa, pois conhecia os poderes videntes da feiticeira. Sentiu que ela a observava com satisfação. Larìs era uma belíssima garota, com cabelos pretos brilhantes, presos para trás em um rabo de cavalo curto, olhos escuros, quase pretos, e traços faciais delicados. As linhas curvilíneas do seu corpo sugeriam, sob as roupas justas, uma perfeição de seios, nádegas e pernas que era rara de se ver. Na feiticeira, ela viu uma mulher de sessenta anos em excelente forma, com cabelos loiros levemente grisalhos e olhos que mudavam de cor, do azul ao verde, dependendo da luminosidade do ambiente. Seu corpo ainda tinha o vigor dos quarenta anos e sua pele era lisa, firme e sem rugas evidentes. Seu olhar era magnético e, quando seus olhos encontraram os de Aurora, Larìs sentiu um forte desejo sexual pela feiticeira. Aurora pronunciou algumas palavras em um idioma incompreensível para os mortais comuns. Ela não se expressou na língua occitana, típica daquela área fronteiriça entre a Itália e a França, mas a jovem era capaz de compreendê-la, pois havia aprendido aquele idioma quando criança, quando sua mãe a iniciou em práticas mágicas e esotéricas. Semants era a antiga língua dos adeptos, cuja origem se perdeu nos ecos do tempo, um idioma conhecido desde os tempos dos faraós egípcios por mágicos e xamãs, mas que tinha origens ainda mais antigas. Larìs foi convidada por Aurora a entrar na casa e foi conduzida a um salão quadrado. Uma das paredes do salão era inteiramente ocupada por um espelho, o que dava a impressão de que o cômodo era muito maior do que realmente era, enquanto nas outras três paredes havia estantes, que abrigavam muitos livros e manuscritos e alguns vasos de porcelana, do tipo usado antigamente em farmácias e lojas de ervas.
Larìs ficou especialmente encantada pelo piso, em mármore altamente polido de diferentes cores, amarelo, turquesa e verde-esmeralda. Com os azulejos coloridos, como se fosse um mosaico, havia um desenho de um dos principais símbolos esotéricos, um pentáculo, uma estrela de cinco pontas inscrita em um círculo, por sua vez inscrito no perímetro quadrado da sala.
O símbolo do espírito, uma espécie de asterisco, desenhado no ladrilho pentagonal central, delimitado pelas linhas de cuja união se originava a estrela de cinco pontas, indicava o centro exato da sala. Em cada um dos outros setores em que o piso estava dividido pelas linhas e arcos do círculo, podiam ser reconhecidas algumas figuras, cada uma ligada à simbologia esotérica: a lua crescente e minguante, a lua cheia, a conjunção do sol com a lua no eclipse parcial e no eclipse total, e diversas outras. Larìs estava ao mesmo tempo fascinada e envergonhada.
‒ Na casa onde eu morava, na Transilvânia, havia um salão idêntico a este ‒ disse ela, dirigindo-se a Aurora na mesma língua em que a feiticeira havia falado pouco antes. ‒ O ladrilho central indica o local exato onde algo importante aconteceu no passado, algo infinitamente belo ou extremamente terrível. Minha mãe adotiva, Cornelia, costumava contar que, no local onde agora era nossa casa, há muitos séculos, um príncipe que desceu das montanhas dos Cárpatos, em uma noite de lua cheia, amou uma bela donzela e dessa união nasceu a criança que daria origem à nossa progênie. Mas, além dessa lenda, também estou ciente de que, ao pressionar para baixo a peça central, é acionado um mecanismo que revela uma sala secreta escondida atrás do espelho. Cornelia levava no pescoço uma corrente de ouro, na qual havia um anel com uma pedra em forma de pentáculo, que se encaixava perfeitamente em uma fechadura, escondida atrás de uma estante. Então, ela abaixava o ladrilho pentagonal, de modo que o espelho se movia, dando acesso à sala secreta. Ali estavam armazenados livros, manuscritos, pergaminhos, até mesmo muito antigos, que seus ancestrais lhe haviam transmitido e que eram o conhecimento ao qual ela concedia acesso àqueles que aspiravam a se tornar adeptos do sétimo nível.
‒ Pelo modo como você fala e pelo que percebo com meus poderes, sei que você já teve acesso a esses documentos e possui, como eu, os poderes e a sabedoria do sétimo nível, portanto, não é necessário que eu abra a sala secreta para você. Juntas, porém, poderemos trilhar o caminho que nos levará ao nível mais alto, o do Conhecimento Universal.
Enquanto falava, Aurora tirou um pouco de tabaco de um precioso recipiente de porcelana e colocou em dois papéis de seda, a fim de enrolá-los habilmente em dois cigarros. Ofereceu um a Larìs, depois acendeu um fósforo, aproximando-o primeiro do cigarro da jovem e depois do seu.
Respirando fundo a fumaça, Larìs percebeu que ao tabaco haviam sido adicionadas substâncias entorpecentes e estimulantes, mas ela já estava acostumada a fumar esse tipo de mistura. Se não estivesse, ela teria sido vítima da vontade da feiticeira, como em uma hipnose provocada tanto pela droga quanto pelos poderes ocultos de Aurora. Em vez disso, a droga estimulou nela o desejo sexual, e ela se aproximou de Aurora, se deixando beijar e acariciar. Terminados os cigarros, elas se despiram e se deitaram juntas no chão nu, até Larìs atingir o orgasmo.
‒ Agora que unimos nossos corpos, uniremos nossas mentes e nossas almas ‒ disse Aurora à garota ainda ofegante de prazer. ‒ Hoje é um dia especial, único, e devemos usar nossos poderes, unidas, para invocar o espírito de Artemisia, minha ancestral queimada na fogueira há exatos quatro séculos.
Larìs acompanhava o discurso com curiosidade, enquanto observava que a luz que entrava pela janela estava diminuindo e a lua cheia já era evidente no céu ainda azul do final da tarde.
‒ No dia 21 de março de 1589, há exatamente quatrocentos anos, Artemisia foi amarrada à estaca, fincada no chão bem ali, onde agora se vê o ladrilho pentagonal marcado com o símbolo do espírito. Hoje é o equinócio da primavera, e a lua cheia, em poucas horas, será obscurecida pela sombra da Terra em um eclipse total. É uma conjunção astral muito rara de ocorrer. Noite ideal para um Sabbath, mas não é isso que nos interessa. Você chegou aqui nesse momento, porque eu sozinha não teria forças para fazer o que estamos prestes a fazer.
Pegou então uma tesoura muito afiada e cortou cuidadosamente seus louros pelos pubianos até deixar a área genital completamente glabra. Ela os recolheu dentro de um cálice dourado e, depois, realizou a mesma operação em Larìs, coletando pelos muito mais escuros do que os seus. Em seguida, pegou ervas secas de alguns recipientes, incluindo um pouco do tabaco que haviam fumado antes, e misturou tudo, acrescentando um pouco de óleo, e então colocou cuidadosamente o cálice sobre o ladrilho central. Preparou mais dois cigarros, que elas fumaram, ainda nuas, até atingirem um certo grau de entorpecimento, quase ao ponto do transe. Enquanto isso, já havia escurecido e o grande círculo da lua brilhava no céu, sendo lentamente obscurecido pela sombra da Terra, naquele raro momento mágico de alinhamento dos três corpos celestes. No momento em que a lua ficou completamente encoberta e sua posição no céu era evidente apenas como um halo avermelhado, as duas mulheres nuas, sentadas no chão, uniram as mãos e os pés para formar um círculo ao redor e acima do cálice. Aurora pronunciou uma fórmula mágica:
‒ Has Sagadà, Artemisia.
A janela se escancarou, um raio entrou no salão e, depois de ricochetear várias vezes nas paredes, incendiou o conteúdo do cálice. Uma fumaça acinzentada subiu, com o odor fétido de carne queimada, reminiscente do cheiro da bruxa morta na fogueira quatro séculos antes. A fumaça se moldou e tomou a forma de uma mulher que, girando e dançando, chegou até Aurora e se fundiu com seu corpo. Agora Aurora era Artemisia e Artemisia era Aurora. Larìs assistiu impotente a esse fenômeno. Quando o último fio de fumaça desapareceu, absorvido pelo corpo de Aurora, e o conteúdo do cálice sumiu completamente, as duas mulheres caíram em um sono profundo e tiveram uma visão do que havia acontecido quatrocentos anos antes. Aurora vivenciou a cena em primeira pessoa, como Artemisia, enquanto Larìs a observou como espectadora, misturada à multidão que testemunhava a tortura da bruxa.
Artemisia foi amarrada ao poste; sob seus pés foram colocados feixes obtidos da poda de oliveiras e, em seguida, toras maiores de madeira resinosa de pinheiro e abeto. A base também foi aspergida com óleo de lamparina. Nos outros quatro postes, dispostos em um semicírculo atrás de si, em relação aos espectadores, estavam amarradas suas quatro companheiras: Viola, Emanuela, Alessandra e Teresa. Esta última, também conhecida como “O Moleque”, por ter sido flagrada várias vezes se deitando com outras mulheres, chegou a ser taxada de hermafrodita, pessoa em que coexistem órgãos sexuais masculinos e femininos. Ela era uma mulher com um clitóris tão desenvolvido que simulava um pequeno pênis, capaz até de atingir a ereção. Essas quatro mulheres não seriam queimadas, embora alguns feixes tenham sido colocados aos seus pés. Elas confessaram seus pecados e indicaram Artemisia como sua “guia espiritual”, por isso foram amarradas às estacas, tanto como alerta à população local quanto para assistir de perto à tortura de sua inspiradora. Por que razão se ia realizar essa execução, uma vez que o Doge de Gênova havia vetado os inquisidores da Igreja, assegurando às mulheres que não permitiria, naqueles tempos modernos, uma sentença de morte tão atroz? O Doge se orgulhava do fato de um dos seus concidadãos ter descoberto, menos de um século antes, uma nova terra, a América, pondo fim ao período sombrio que havia sido a Idade Média. Ele nunca teria permitido, portanto, que a Igreja, por meio da Inquisição, mandasse queimar vivas essas mulheres, mesmo que tivessem sido consideradas culpadas de bruxaria, heresia, associação com o diabo, crimes contra Deus, contra a Igreja e contra os homens. Tudo começou um ano e meio antes, no outono de 1587, quando o Podestà, Stefano Carrega, e o parlamento local apontaram as bruxas que viviam em Ca Botina como as principais culpadas pela grave fome que assolava toda a região há algum tempo e pediram ao Bispo de Albenga que instituísse um julgamento para as supostas bruxas, para que seus delitos pudessem ser levados a termo com uma punição exemplar: a condenação à fogueira. Dois inquisidores chegaram à cidade, dois frades dominicanos vestidos de preto: um era o Vigário do Bispo e o outro era o Vigário do Inquisidor de Gênova. Os “corvos”, como os locais os chamavam, mandaram prender as cinco bruxas que viviam em Ca Botina, que, sob tortura, acusaram muitas outras mulheres da vila, não apenas de origem camponesa, mas também pertencentes às famílias mais nobres. A certa altura os inquisidores tinham detido cerca de duzentas supostas bruxas e o Conselho de Anciãos, considerando também que duas mulheres já tinham morrido, uma pelas torturas infligidas e a outra por ter caído de uma janela após uma tentativa de fuga, decidiu apelar ao Doge de Gênova para que pusesse fim ao julgamento e garantisse que apenas as verdadeiras bruxas fossem condenadas, as de Ca Botina, o grupo ligado a Artemisia, ao todo treze mulheres e uma menina de treze anos. O governo genovês, portanto, não totalmente convencido da regularidade do julgamento de Triora, decidiu se interessar mais de perto. Vários meses se passaram e, enquanto o Doge de Gênova e o Bispo de Albenga não chegavam a um acordo sobre a jurisdição para proceder, as mulheres permaneceram na prisão à mercê de carcereiros que não as pouparam de humilhações e de abusos, até mesmo sexuais. No mês de maio seguinte, o Inquisidor Chefe chegou a Triora para visitar as mulheres presas e averiguar a situação. Depois de submetê-las novamente à tortura pelo fogo, ele confirmou as acusações contra as treze mulheres e libertou a menina. As mulheres foram julgadas sob a acusação de crimes contra Deus, relações com o demônio e assassinato de mulheres e crianças. Em agosto, o julgamento chegou ao fim, com a sentença de morte para Artemisia e as outras quatro mulheres mais próximas a ela: Emanuela Giauni, conhecida como Emanuela, A Caprichosa, Viola e Alessandra Stella, e Teresa Borelli, conhecida como Teresa, O Moleque, por seu hábito de usar cabelos curtos, vestir roupas masculinas e deitar-se com outras mulheres. Quando parecia iminente a execução da sentença das cinco mulheres, por enforcamento e incineração dos restos mortais, o Padre Inquisidor de Gênova interveio, exigindo que seu cargo, até então excluído do julgamento, fosse respeitado. Cabia a ele, de fato, como representante da Inquisição de Roma, julgar os crimes das bruxas. Assim, as cinco condenadas foram transportadas para Imperia e, de lá, a bordo de um navio, para Gênova, onde foram trancafiadas nas prisões do governo, já que a Inquisição não tinha espaço suficiente, se juntando a outras alegadas bruxas de outras cidades da região. Tudo parecia estar indo bem, pois o Doge havia prometido que faria questão, agora que estavam sob sua proteção, de salvar suas vidas. Ele as manteria na prisão por algum tempo e, depois, quando a população se tivesse esquecido delas, as libertaria, com o acordo de não retornarem à sua cidade de origem. Mas o Maligno, sob os disfarces mortais do Podestà e do chefe do Conselho de Anciãos de Triora, colocou seu dedo nisso. Não foi difícil, para os capangas contratados pelas duas figuras ilustres, subornar os carcereiros com algumas moedas de prata, substituir as cinco bruxas por cadáveres de mulheres pobres, mortas por doenças ou pelas agruras da fome que ainda grassava nas montanhas do alto Vale Argentina, e trazer as cinco bruxas de volta a Triora para uma execução pública exemplar.
Amarrada ao poste, Artemisia percorreu em sua mente as principais etapas de sua vida, a partir de sua iniciação, quando, com pouco mais de treze anos, se viu no centro do círculo mágico, criado por sua mãe, sua avó e outras adeptas da seita, perto da Fonte das Nozes, uma fonte localizada sob uma grande nogueira. Já naquela época, ela havia percebido a forte presença do Maligno, uma força negativa fora do círculo, que queria assimilar os poderes de suas vítimas e se tornar incomparável em seu potencial malévolo. Os ensinamentos transmitidos pela mãe e pela avó, a aquisição dos poderes da clarividência e o uso do tato e da visão para perceber e curar os males do corpo e da alma, foram por ela sempre utilizados para o bem. Ela aprendeu os poderes curativos das ervas, tornando-se hábil em fazer poções que baixavam a febre, aliviavam as dores e ajudavam as mulheres em trabalho de parto. Aprendeu a usar, nas doses certas, esporos de cogumelos venenosos, para serem aplicados em feridas infectadas e fazer regredir as secreções purulentas. Ela aprendeu a fazer talismãs, a recitar fórmulas mágicas rituais, a realizar feitiços de invisibilidade e a formar círculos mágicos de proteção. Mas ela nunca usou seus poderes para propósitos malignos, nunca. No entanto, no final, ela foi exposta como bruxa e, junto com suas quatro companheiras mais fiéis, Emanuela, Viola, Alessandra e Teresa, foi presa e torturada com corda, com fogo e com água. No início do verão de 1588, o Podestà, Stefano Carrega, que foi quem iniciou a caça às bruxas, tinha chegado até sua cela e, naquele momento, Artemisia percebeu que era ele quem representava o mal, a grande ameaça que pairava sobre ela e suas amigas. Já enfraquecida pela tortura, ela foi despida e teve as mãos e os pés amarrados a dois postes de madeira dispostos formando uma cruz de Santo André, de modo que seus braços e pernas ficassem afastados. Os carcereiros rasparam os pelos de sua área genital, depois a deixaram sozinha com o Podestà, que se aproximou dela, levantando sua túnica e mostrando um grande membro já ereto. Não havia possibilidade de Artemisia, amarrada como estava, escapar da violência sexual, mas ela sabia que precisava ser forte naquela situação, que não podia sentir nenhum tipo de prazer, caso contrário, com o ato sexual, o homem tiraria todos os seus poderes e conhecimentos dela e os tomaria para si. Ela saiu vitoriosa. Ao sentir o calor da ejaculação penetrar em suas entranhas, ela preparou sua mente para estar o mais longe possível dali, vagando pela floresta que amava, e seu corpo para não sentir nem um tremor, nem mesmo um suspiro. O Podestà, não tendo conseguido atingir seus objetivos, ficou furioso.
‒ Pior para você, bruxa! Você morrerá na fogueira, você e suas companheiras, e a força das chamas transferirá seus poderes para mim.
Vencer aquela batalha deu-lhe um vislumbre de esperança e, quando, apesar da condenação dos inquisidores, ela e suas quatro companheiras foram transferidas para Gênova, ela pensou que o perigo havia diminuído. Bem, depois da relação com o Podestá, ela não teve mais o ciclo mensal. Era evidente que ela carregava no ventre um filho, ou melhor, como podia sentir, uma filha. Se recusava a admitir que fosse filha do Maligno. De qualquer forma, ela a iniciaria em práticas mágicas e esotéricas, assim como havia sido feito com ela por sua mãe e sua avó; de fato, ela sentia em seu coração que aquela filha teria poderes sobrenaturais realmente fortes, capazes de neutralizar qualquer poder maligno e dar continuidade à sua linhagem para o bem. Mas, após alguns meses, o Maligno voltou à ativa, aliou-se ao Conselho dos Anciãos e enviou homens encapuzados a Gênova para trazer a ela e suas quatro companheiras de volta a Triora, onde seriam executadas. Em março, Artemisia estava quase no fim da gestação. Quando chegou a Triora, o chefe do Conselho de Anciãos, Giulio Scribani, quis averiguar pessoalmente o seu estado, pois não podia permitir que, junto com a bruxa, fosse queimada na fogueira uma criatura inocente. Artemísia usou todos os seus poderes para penetrar na mente do ancião, na qual inculcou a ideia de que se sacrificaria na fogueira, desde que seu sacrifício servisse para salvar sua filha e suas companheiras. O Podestà havia montado as cinco piras e já estava ansioso pelo espetáculo daquela noite, quando, por uma rara conjunção astral, naquele dia do equinócio da primavera, um dia de lua cheia, ocorreria um eclipse total da lua. Mas Giulio impôs sua vontade.
‒ Não quero testemunhar um massacre bárbaro. Enviei uma parteira para Artemisia, ela conhece as maneiras de antecipar o parto. O bebê será confiado a uma ama. Somente Artemisia, que é a mais poderosa das bruxas, será queimada. As outras, amarradas em seus postes, assistirão à sua execução e serão marcadas de tal forma que qualquer um que as encontrar as reconhecerá como bruxas e as evitará. Cada uma delas já tem uma tatuagem estranha na perna direita, na parte interna da panturrilha. Três tomos são retratados, representando os livros que elas consultaram e estudaram para se tornarem adeptas de sua seita. Completaremos a tatuagem com chamas envolvendo os livros e a mesma tatuagem será feita em todas as primogênitas da linhagem dessas bruxas!
O Podestà lançou lampejos de ódio contra o ancião, mas não podia contradizê-lo. Pelo menos ele poderia assumir a parte dos poderes de Artemisia. Mas esta, amarrada ao poste, esperando que as chamas fossem acesas em sua pilha, manteve-se concentrada e formou uma barreira protetora sobre suas amigas, que estavam em contato telepático com ela. A posição semicircular das outras estacas atrás da sua favorecia a proteção. Assim, quando da multidão de espectadores surgiram gritos: “Não as poupem, queimem todas!” e um homem, com uma tocha acesa na mão, conseguiu passar pela barreira dos guardas e aproximar a chama da estaca de Teresa, dois soldados o pegaram pelo braço e o mandaram de volta para a plateia com um chute certeiro no traseiro. O homem rolou para o chão e parou bem aos pés de Larìs, que lhe lançou um olhar de desaprovação.
Poucos momentos depois, o carrasco tirou uma tocha de um braseiro, primeiro ergueu-a bem alto para mostrar a todos as chamas e depois a aproximou da pilha de lenha aos pés de Artemisia, que se incendiou.
Artemisia, antes que as chamas começassem a envolver seu corpo, voltou seu olhar para a lua, que naquele momento estava encoberta pelo fenômeno do eclipse e era perceptível apenas como uma esfera avermelhada cercada por um halo, e deixou seu espírito ir. Ela tinha que evitar que seus poderes e sabedoria fossem transferidos para Carrega, direcionando-os, em vez disso, com a ajuda telepática de suas companheiras, cujas vidas seu sacrifício havia salvado, para a menina que ela havia dado à luz algumas horas antes, que se chamaria Aurora, a primeira luz da manhã. Em pouco tempo, as chamas tomaram conta do corpo de Artemisia e o envolveram, a mulher se transformou em uma tocha humana, seus cabelos queimaram, suas roupas foram incineradas, deixando exposta sua carne, que primeiro ficou vermelha, depois enegrecida. A silhueta de Artemisia, ainda se contorcendo, agora mal era visível em meio à parede de fogo, que ardia ruidosamente. Por fim, Artemisia, com um último e prolongado grito de dor, expirou, enquanto as chamas continuavam a realizar o seu trabalho cruel. No final, restou no chão apenas uma pequena pilha de cinzas.
Quando Aurora e Larìs voltaram à realidade, ainda estavam nuas, deitadas no frio chão de mármore, com os corpos cobertos de suor devido à tensão da experiência que tinham acabado de vivenciar. Aurora, ainda atordoada, pegou um quimono de seda, vestiu-o e ofereceu um semelhante à garota, que estava tremendo e ficou feliz em vesti-lo. Em seguida, Aurora foi à cozinha preparar um chá de ervas relaxante, voltando poucos minutos depois com duas xícaras fumegantes, que espalharam um aroma de menta pelo salão.
‒ Por que tivemos essa visão? Qual é o significado? ‒ perguntou Larìs, começando a se recuperar.
‒ Acredito ter entendido que o Maligno, que permaneceu adormecido durante quatro séculos, está recuperando as forças e quer sacrificar vítimas para aumentar seu vigor e poder. Precisamos ter cuidado, pois essas vítimas podem ser eu, você ou nossas outras irmãs, descendentes daquelas que há quatrocentos anos escaparam da morte nas chamas.
‒ Como podemos nos preparar para enfrentá-lo? Temos força suficiente para fazer isso?
‒ Minha querida Larìs, você e eu teremos que enfrentar uma longa e perigosa jornada até o templo onde vive o Grande Patriarca, que nos oferecerá acesso ao conhecimento universal, do qual ele é o guardião. Ele nos dará a força e a sabedoria necessárias.
Passo a passo, agarradas às cordas laterais, elas chegaram a meio caminho da ponte, que balançava a cada movimento que faziam, quando uma rajada de vento mais forte fez o coração de Larìs gelar, e ela novamente buscou os olhos de Aurora para se tranquilizar. Cautelosamente, as duas tiraram as mochilas dos ombros, vestiram os casacos e continuaram até chegarem à clareira gramada além da ponte. A partir daí, começavam pelo menos cinco caminhos, seguindo em direções diferentes. Qual poderia ser o certo a seguir? Aurora viu dois galhos cruzados com terra solta em volta, procurou um galho comprido e, tomando cuidado para não pisar na terra mexida, destruiu a cruz e então, com o mesmo galho, desenhou um círculo no chão, recitando palavras que Larìs reconheceu como as de um contrafeitiço. Alguém havia lançado um feitiço para dificultar o caminho a seguir. Mas Aurora era muito experiente. Uma vez completado o círculo e voltando as palavras para o céu, ficou evidente que apenas um caminho começava na clareira, que era o único a ser seguido. Depois de atravessar a ponta de uma geleira, o caminho descia a colina, até que os prados das terras altas deram lugar a uma floresta, cada vez mais densa à medida que se descia. Em cada encruzilhada, em cada bifurcação do caminho, as duas, instintivamente, sempre sabiam qual direção tomar.
A floresta oferecia frutas e bagas comestíveis e, de vez em quando, era possível encontrar uma fonte de água fresca, de modo que, mesmo que os suprimentos começassem a se tornar escassos, não havia como passar fome ou sede. As temperaturas também ficaram mais agradáveis e não havia mais necessidade de usar os casacos. No quinto dia de caminhada, saindo da densa floresta, elas se encontraram em um vale agradável, no fim do qual viram seu destino.
O templo era uma construção antiquíssima que permaneceu intacta ao longo dos séculos e milênios, construído sobre uma rocha sólida em um local inacessível a meros mortais. O que despertou o espanto das duas mulheres foi a usina hidrelétrica que podia ser vislumbrada na parte de trás do templo. Uma cachoeira, com a força de uma queda de várias centenas de metros, alimentava as turbinas que forneciam eletricidade ao antigo edifício. Ao lado das turbinas, uma série de painéis solares garantiam o fornecimento de água quente e também ajudavam a gerar eletricidade. Um sistema fotovoltaico precursor, ainda não em operação, completava a usina de energia, tornando aquele oásis totalmente autossuficiente do ponto de vista energético.
Ao chegarem à entrada do templo, foram recebidas por dois homens de aparência física escultural.
‒ Bem-vindas ao Templo do Conhecimento e Regeneração. O Grande Patriarca está esperando por vocês e as receberá assim que possível. Enquanto isso, seremos seus guias, as levaremos às suas acomodações e faremos questão de tornar agradável a sua visita a este lugar encantador. Seja qual for a sua necessidade, basta solicitar e tentaremos atendê-las. Eu sou Ero e meu parceiro é Dusai.
Os dois homens, vestidos apenas com curtas túnicas coloridas, eram altos e poderosos, seus músculos evidentes pareciam esculpidos, lembrando antigas estátuas gregas. Ero tinha cabelos loiros, encaracolados e bastante longos, pele clara, embora ligeiramente bronzeada, e olhos azuis da cor do céu, enquanto Dusai era moreno, com cabelos pretos curtos, olhos escuros e pele cor de ébano. Enquanto Dusai cuidava de Aurora, Ero se curvou diante de Larìs e pegou sua bagagem. Os quatro atravessaram um pátio quadrado, entraram no edifício e caminharam por corredores ornamentados. Os afrescos alternavam cenas de caça com cenas de guerra e de acasalamento entre animais. Finalmente chegaram a um claustro, no centro do qual havia uma piscina. Sob os pórticos, se abriam as portas dos quartos de hóspedes. Ali, as decorações retratavam uniões entre homens e mulheres, em todas as posições possíveis e imagináveis, extraídas dos mais impensáveis manuais do Kama Sutra. As duas mulheres foram convidadas por seus cicerones a entrar cada uma em uma sala, onde foram ajudadas a se despir e relaxar com uma longa e completa massagem revigorante. Depois de algumas horas, as duas mulheres e os dois homens se encontraram juntos dentro da piscina para desfrutar dos prazeres de um bom banho na água morna e do sexo oferecido de forma espontânea e sensual por Ero e Dusai. Exaustas pelos dias de caminhada, mas regeneradas em espírito, Aurora e Larìs estavam revigoradas. A mesa posta oferecia carneiro assado com acompanhamentos de saborosos legumes e uma incrível variedade de frutas suculentas. No final do banquete, retiraram-se para os seus quartos e mergulharam em um merecido sono reparador.
Na manhã seguinte, bem cedo, os cicerones trouxeram para cada uma das duas mulheres uma xícara de chá muito perfumado, acompanhado de doces feitos de uvas sultanas e mostos, dizendo-lhes que se preparassem para serem recebidas pelo Grande Patriarca. Seus companheiros do dia anterior as conduziram até o pé de uma escada que levava aos andares superiores. A partir de então, elas seriam acompanhadas por um guia muito mais velho e muito menos atraente, já que Ero e Dusai não tinham permissão para subir na presença do Patriarca. Hiamalè, como se chamava o novo guia, era uma pessoa que aparentava ter pelo menos oitenta anos, mas dizia-se que era muito mais velho. Uma longa barba cinza adornava seu rosto e seus longos cabelos prateados estavam presos atrás da nuca em uma comprida trança. Ele cumprimentou as mulheres no idioma antigo e as convidou para subir. Apesar da idade, o ancião subiu a escada agilmente, piso por piso, até chegar ao quinto nível. Aurora e Larìs perceberam que estavam em uma espécie de torre com vista para o templo e que, das janelas, se podia admirar a construção em toda a sua magnificência. O idoso Hiamalè se ajoelhou diante de uma porta de madeira, decorada com belas incrustações, e convidou as duas mulheres a fazerem o mesmo. Como se alguém tivesse sentido a sua presença, mesmo sem serem anunciados, a porta se abriu e as duas mulheres se encontraram na presença do Grande Patriarca.
‒ Não há necessidade de se prostrarem diante de mim ‒ disse ele, dispensando o ancião e convidando as duas mulheres a entrarem em sua sala. ‒ Sejam bem-vindas. Eu estava esperando por vocês há muito tempo, a percepção de sua chegada era forte dentro de mim. Apresento-me a vocês, fiéis seguidoras, que aspiram ao conhecimento universal. Desde que cheguei a este lugar, embora este não seja meu verdadeiro nome, sou chamado de Roboão, em homenagem ao filho do rei Salomão, que tinha esse nome. A tradição diz que esse mesmo templo foi construído pelo sábio Rei nestes lugares inacessíveis, entre estas que são as montanhas mais altas da Terra, para servir como um baú de tesouro e proteção para o mais antigo e preciso livro de magia, escrito por seu próprio punho, “A Chave de Salomão”. Reza a lenda que esse livro foi encontrado, alguns séculos após a morte do famoso Rei, dentro de sua tumba, preservado em um recipiente de marfim junto com um anel com seu selo. Muitos tentaram traduzir esses escritos, primeiro para o latim, depois para o francês, mas ninguém conseguiu plenamente, pois era apenas uma falsificação e o Rei Salomão havia se certificado de torná-lo incompreensível. “A Chave de Salomão” original, no entanto, é mantida no Sancta Sanctorum desse templo e apenas algumas pessoas sábias, ao longo dos milênios, tiveram acesso a ela. Talvez você, Aurora, possa fazer parte desses poucos escolhidos, mas não vamos nos precipitar. Vocês estão aqui para acessar o conhecimento preservado neste local, assim como, antes de vocês, vieram pessoas ávidas por consultar textos importantes, aqui recolhidos desde tempos imemoriais. Vieram sacerdotes de todo tipo de religião, mas também importantes homens da ciência, graças aos quais esta construção foi dotada de confortos modernos. Vocês mesmas viram a usina de energia elétrica. Não é simples fazer chegar aqui as matérias-primas necessárias para esta obra. O último cientista a nos visitar foi um italiano, cuja ideia era transformar a energia dos raios solares, mas também a energia inerente à própria luz, em energia elétrica, por meio de micro células, que ele chamou de células fotovoltaicas, em homenagem ao seu compatriota Alessandro Volta. Mas, embora eu veja auras positivas em vocês, ao redor dele pairava uma aura escura, quase negra, indicativa de maldade e perfídia de espírito.
‒ Como ele se chamava? ‒ perguntou Aurora, intrigada e temerosa. ‒ Ele teve acesso ao conhecimento, mesmo que você tenha duvidado dele?
‒ Minha cara Aurora, você tem uma aura de um azul intenso, como o céu claro, porque tem um coração puro, mas é muito sensível a influências externas, porque confia em todos. E é por isso que você está acompanhada de Larìs, que tem uma aura vermelha como o fogo e que revela seu caráter impulsivo e determinado, pronto a sacrificar até mesmo sua própria vida para ajudar quem lhe é próximo. Não posso revelar o nome dessa pessoa. Qualquer pessoa que chegue aqui tem acesso aos textos e manuscritos armazenados. Cabe então a ela decidir como utilizar o conhecimento adquirido, seja para o bem ou para o mal. Veja, toda religião tende a identificar o bem com Deus e o mal com uma divindade oposta. Se Deus é então chamado de Javé, Vishnu, Odin ou Alá e o demônio de Satanás, Lúcifer, Seth ou Sehuet é irrelevante. O bem e o mal estão dentro de cada um de nós e a eterna luta entre eles se consuma em nossas almas. Em alguns prevalece o bem, em outros o mal.
‒ Grande Patriarca, revele-nos o caminho para acessar o Conhecimento Universal ‒ continuou Aurora ‒ e nós lhe seremos gratas e o honraremos pelo resto de nossas vidas mortais.
‒ Veja, há duas maneiras de alcançar o objetivo, uma mais rápida e outra mais lenta. Larìs, que é jovem, seguirá esse segundo caminho, terá tempo de sobra para consultar os textos, assimilar o que está contido neles e aprender a usar, com a ajuda dos Mestres, seu Terceiro Olho, o da sabedoria, aquele com o qual ela poderá perceber a aura das pessoas ao seu redor e penetrar em seus pensamentos, entrando em contato com suas mentes. É uma longa jornada que eu mesmo empreendi em meu tempo e que exige perseverança, concentração e aplicação. Para você, Aurora, que, por outro lado, está ansiosa para assimilar tudo rapidamente e retornar à sua terra natal para combater as forças do mal, tenho reservado um caminho mais curto.
Batendo palmas, ele chamou Hiamalè, que conduziu Larìs para fora da sala, enquanto por outra porta entraram duas jovens criadas com um fumegante chá de ervas para o idoso patriarca. Roboão bebeu cuidadosamente e, então, de uma bandeja trazida a ele por uma das duas servas, pegou um estojo e tirou uma seringa.
‒ Papaverina. Injetada no pênis, permite uma ereção duradoura para relações sexuais satisfatórias, mesmo em uma pessoa idosa como eu. Transmitirei a você todo o meu conhecimento e a minha ciência através de uma conjunção carnal, após a qual você terá acesso ao Sancta Sanctorum.
As criadas ajudaram Aurora a se despir e a se deitar sobre as almofadas colocadas no chão para esse fim, depois cuidaram do velho, o libertaram das vestes, aplicaram-lhe a injeção, fizeram-lhe uma boa massagem e, quando perceberam que ele estava pronto para consumar a relação com a recém-chegada, retiraram-se para um canto da sala. O relacionamento com o ancião deu a Aurora um imenso prazer. Ela fechou os olhos e abandonou-se aos movimentos de Roboão. No auge da excitação, tendo alcançado um prazer intenso, ela percebeu que, com o fluxo do líquido, estava penetrando nela um calor que a percorria da ponta dos pés até o último fio de cabelo. Ela estava assimilando de uma só vez todo o conhecimento que o idoso havia acumulado ao longo de décadas de permanência naquele lugar inacessível. A certa altura, Aurora percebeu que Roboão estava deitado imóvel sobre ela. Seu membro ainda estava túrgido, devido ao efeito da papaverina, mas ele não respirava mais, havia expirado. Com um movimento suave, ela moveu o corpo de Roboão para o lado e, com dificuldade, se desvencilhou dele. Enquanto as servas cuidavam do falecido, Aurora se vestiu e foi assaltada pelo temor: como ela poderia chegar ao Sancta Sanctorum sem a orientação de Roboão? Mas então, ao se concentrar, percebeu que, além do conhecimento, havia assimilado tudo o que estava conservado em sua memória e, portanto, já sabia o caminho a seguir para alcançar seu objetivo. Mas havia mais: a relação que acabara de consumar a havia transformado, sua pele estava mais lisa, seus seios mais firmes, suas pernas mais esguias, seus cabelos mais sedosos; enfim, se sentia rejuvenescida. Ela se olhou em um espelho, que lhe devolveu a imagem de uma jovem de vinte anos, a imagem de si mesma, mas com quarenta anos a menos. Com as mãos, ela tocou o rosto, como se quisesse ter certeza de que o que estava vendo era real e não uma visão. Suas rugas haviam desaparecido, seus olhos verdes brilhavam, não havia sombra de opacidade no cristalino e seu cabelo havia voltado à cor natural de castanho claro. Mas não era hora de ficar pensando em coisas fúteis. Ela tinha que encontrar “A Chave de Salomão”.
Tentando seguir as lembranças impressas na mente de Roboão, ela desceu as escadas até o andar térreo. Em um salão com paredes ornamentadas, procurou uma estátua dourada de um gato. No pescoço deste, notou um medalhão em forma de pentáculo. Ela o girou e viu se abrir uma passagem na parede dos fundos, a única em que não havia janelas. Entrou em um corredor longo e semiescuro, iluminado eventualmente pela luz fraca de antigas lamparinas a óleo. No final do corredor, uma escada em espiral descia para o porão, até outro salão ricamente decorado. Caminhou em direção a uma enorme porta dourada, adornada com baixos-relevos em ouro puro, retratando episódios da vida do Rei Salomão. Não havia fechadura para abrir essa porta, nem qualquer outro dispositivo. O acesso ao Sancta Sanctorum exigia um comando de voz, que variava de acordo com os dias da semana e as horas do dia. Aurora, calculando que naquele momento ela deveria invocar a lua, pronunciou em voz alta:
‒ Levanah!
A enorme porta dourada começou a deslizar para dentro da parede dupla, dando livre acesso ao mais secreto dos cômodos do templo. No centro dela, sobre uma coluna de cerca de um metro e vinte de altura, uma caixa de marfim deveria abrigar o livro e o anel com o selo de Salomão, o talismã mais poderoso de todos os tempos. Não sem emoção, ela abriu o baú. O livro estava em seu lugar, mas o anel não. Quem chegou lá antes dela conseguiu roubá-lo, garantindo para si um poder considerável que seria difícil de combater se usado para fins malignos. Mas agora a feiticeira não tinha tempo para pensar, ela tinha a noite inteira para assimilar o que Salomão havia escrito tantos séculos antes, algo que ela não recebeu da memória de Roboão, já que ele, embora tivesse acesso ao Sancta Sanctorum, nunca teve coragem de encarar o texto sagrado. Quando teve certeza de que havia memorizado todas as fórmulas e invocações, ela colocou o livro de volta na caixa e saiu, refazendo o caminho que havia seguido para chegar até ali. Saindo para o salão, notou que as primeiras luzes do amanhecer já começavam a entrar pelas janelas. Ela girou o medalhão na estátua do gato, retornando-o à sua posição original, e a passagem pela qual ela acabara de sair se fechou novamente.
Era hora de voltar para casa, para a Ligúria, e dessa vez a viagem seria curta. Ela usaria o teletransporte, que era uma das novas magias que acabara de aprender. Mas primeiro devia se despedir de Larìs. Ela voltou para o claustro, onde ficavam os quartos de hóspedes, e notou que Ero e Dusai já estavam de pé, conversando à beira da piscina. De ambos escapou uma apreciação sobre a nova aparência de Aurora.
‒ Uau! Se estivesse assim no outro dia! ‒ comentou Dusai.
A feiticeira evitou responder e bateu à porta de Larìs, que ainda estava imersa no mundo dos sonhos. Ela a viu abrir a porta, sonolenta, olhando para ela com ar de interrogação. Quando Larìs percebeu que a pessoa à sua frente era a sua companheira de viagem, esfregou os olhos, pensando que talvez ainda estivesse sonhando.
‒ Sim, sou eu! ‒ afirmou Aurora. ‒ Estou indo embora, mas permaneceremos em comunicação telepática. Quando eu precisar de você, você saberá, e terá uma forma de me contatar o mais rapidamente possível.
Então ela aproximou os seus lábios dos de Larìs e a beijou.
‒ Até logo!
Aurora saiu do templo e chegou a uma clareira isolada, onde se sentou no chão, tomando cuidado para não cruzar as pernas, concentrou-se no local para onde tinha de ir e pronunciou a fórmula mágica. Como se fosse capturada por um vórtice, uma espécie de redemoinho, seu corpo desapareceu para reaparecer em Triora, dentro de sua morada.
‒ Aqui estou, em casa!
CAPÍTULO 4
Seguimos a pé em direção à cena do crime, que já havia sido isolada com faixas de plástico branco e vermelho com a inscrição “Polícia Estadual”. O local estava enegrecido pelo fogo e encharcado pela água usada para apagá-lo, mas o mais impressionante era o fedor nauseante que éramos obrigados a respirar. O cheiro de carne humana queimada, que ainda pairava no ar, era verdadeiramente insuportável. Quando vi o corpo, mal consegui conter uma ânsia de vômito. À primeira vista, parecia um manequim, curvado sobre si mesmo, encostado em um portão de metal que fechava uma espécie de caverna, com sua forma humana enegrecida pelas chamas. Não havia mais nenhum vestígio de cabelo e, em algumas áreas, era possível vislumbrar os ossos em meio a alguns pedaços de pele enrugada. Dava para deduzir que era o corpo de uma mulher pelo contorno dos seios. Nos pulsos e tornozelos podiam ser vistos filamentos de plástico derretido, indicando algo que deve ter sido usado para amarrar a vítima ao portão. O médico legista estava realizando os primeiros exames no corpo, enquanto os homens da perícia esperavam pacientemente que ele terminasse para começar seu trabalho. Pedindo a Mauro para me esperar, me aproximei, passando pela barreira de tiras de plástico. Quando percebeu minha presença, o médico levantou a cabeça e tirou as luvas de látex, fazendo um aceno. A pessoa que estava estendendo a mão para mim era uma mulher pequena, na casa dos trinta, com cabelos curtos e castanhos, olhos escuros e um pequeno piercing dourado no nariz.
‒ Doutora Ruggeri, imagino! Prazer em conhecê-la, sou a Doutora Ilaria Banzi, médica legista.
‒ O que você pode me dizer sobre essa pobre mulher?
‒ Realmente assombroso! Em minha carreira, embora curta, nunca vi nada parecido com isso. Não posso afirmar agora se estava viva ou morta quando foi incendiada, mas como parece óbvio que ela estava com as mãos e os pés amarrados ao portão com fita adesiva, acho mesmo que ela foi queimada viva. A autópsia nos informará esse detalhe. No momento, posso dizer que estamos diante de um indivíduo do sexo feminino, com cerca de trinta e cinco, quarenta anos no máximo, a julgar pelos dentes, mas também não posso ser precisa quanto a isso, pois o fogo alterou tudo. Assim que a equipe forense tiver feito suas descobertas, providenciarei a transferência do corpo para o necrotério e enviarei o relatório da necropsia o mais rápido possível. Em breve, o Magistrado também estará aqui. Desejo-lhe sorte, não será uma investigação fácil!
Despedi-me dela e caminhei em direção aos homens de uniforme.
‒ Há alguma informação sobre a identidade da vítima? ‒ perguntei.
‒ Certamente não havia documentos com ela! ‒ foi a resposta sarcástica de um superintendente, a quem fulminei com o olhar. ‒ Sinto muito, foi uma piada infeliz. O que sabemos é que a vítima foi presa à grade de metal com fita adesiva larga, do tipo usado em embalagens, e então foi ateado fogo. Esse tipo de caverna é, na verdade, um antigo depósito de lenha, dentro da qual havia madeira seca e outros materiais inflamáveis. Como se fala tanto em bruxas nessa área, achamos que alguém queria simular a execução de uma bruxa na fogueira. Talvez um jogo sádico entre dois amantes, por que não? Ela consente em ser amarrada, ele acende uma pequena fogueira para dar mais vida ao jogo, mas aí a situação sai de controle, o vento aumenta, o incêndio se alastra e a mulher, amarrada, não tem como escapar. Foi o que imaginamos.
‒ Muito fantasioso, eu diria, e pouco apoiado por evidências. Você gosta de fazer jogos como esse com sua parceira?
Talvez atingido em sua intimidade, ele corou, pigarreou e procurou uma maneira de se retirar.
‒ O Magistrado está chegando. Agora será ele quem formulará as hipóteses corretas. Perdoe-me, as minhas eram apenas conjecturas.
O Magistrado era um homem de uns cinquenta anos, cabelos grisalhos, quase tão alto quanto Mauro, magro. Olhando para ele, parecia uma ave de rapina, com nariz adunco, lábios estreitos e óculos de leitura erguidos na testa. Ele se aproximou de Mauro, que apertou sua mão e me apresentou.
‒ Doutor Leone, Doutora Ruggeri. A minha colega acaba de chegar de Ancona e já se encontra em plena atividade.
‒ Sim, estou vendo! Bem, acho que não há muito para eu fazer aqui no momento. Mantenha-me atualizado sobre a investigação e tente encerrar esse caso o mais breve possível. Não estamos acostumados a crimes tão hediondos nesta área e não quero problemas com jornalistas.
Tentei intervir, perguntando se ele gostaria de ir conosco entrevistar a proprietária da casa vizinha, a famosa Aurora, mas ele se despediu com um leve aperto de mão, dizendo:
‒ Bom trabalho!
Não sei por quê, sempre detestei pessoas que, quando lhe dão a mão, não a apertam, mas mesmo assim sorri entredentes e respondi:
‒ Obrigada.
Quando ele se afastou, virei-me para Mauro.
‒ Se o Delegado Geral de Imperia também chegasse agora e fosse igualmente simpático, eu correria o risco de perder o cargo que acabei de ocupar. Você me entende, não é? Bem, enquanto a equipe forense faz seu trabalho aqui, vamos conhecer essa bruxa.
Mauro sorriu para mim com um ar de cumplicidade e me seguiu de bom grado. No geral, eu estava começando a gostar dele e logo descobriria que, por trás do ar de Rambo musculoso, ele escondia uma inteligência aguçada e era um bom observador, elementos que faziam dele um ótimo policial e um bom colaborador.
Um caminho atravessava a vegetação, chegava à estrada de terra por onde tínhamos vindo e levava a uma construção isolada, uma espécie de casa de fazenda, de aparência antiga, mas em muito boas condições.
No pátio em frente, estava exposto o carro da proprietária, um Porsche Carrera cinza metálico. Fomos recebidos por uma bela mulher de uns quarenta anos, loira, com olhos de um raro azul esverdeado, mais alta do que eu, com a pele clara, suave, sem uma ruga visível. Ela vestia um quimono escuro com desenhos estranhos, no qual reconheci alguns símbolos esotéricos, fechado na frente apenas por um cinto. A cada passo, se entrevia na fenda frontal uma longa coxa rosada. O decote dava boa visibilidade aos seios volumosos e não deixava muito para a imaginação. Vi o olhar de Mauro pousar com interesse sobre eles, talvez na esperança de que, mais cedo ou mais tarde, o roupão insípido caísse no chão, revelando aos seus olhos todas as graças de sua dona.
‒ Entrem, fiquem à vontade, eu sou Aurora Della Rosa e esta é minha humilde residência. Desculpem-me, ainda estou me recuperando do susto! Eu estava com medo de que tudo aqui pegasse fogo ontem à noite. Dentro desta casa, tenho um patrimônio de livros e manuscritos, alguns deles muito antigos, alguns únicos no mundo, e, além de minha própria segurança, eu tive muito medo de perder tudo nas chamas.
Sentamo-nos em um salão quadrado, onde notei prateleiras cheias de livros e pergaminhos. Uma parede inteira era ocupada por um espelho e o piso era de mármore altamente polido de várias cores que, como um mosaico, representava a figura de um pentáculo. Eu não conseguia acreditar em meus olhos. Encontrei ali resumido tudo o que eu já havia estudado sobre esoterismo e seitas.
‒ Della Rosa ‒ eu disse, repetindo seu sobrenome. ‒ De La Rose era o nome de uma linhagem francesa de famosos Templários, os cavaleiros guardiões do templo e do Santo Graal.
‒ Dizem que eles existem desde antes do advento do cristianismo. Os Templários eram os guardiões do Templo de Salomão em Jerusalém, de cujas ruínas resta apenas o Muro das Lamentações, sagrado para os judeus. Depois, eles passaram a ser identificados como guardiões do Santo Sepulcro. Na Idade Média, na França, foram declarados hereges, talvez porque se pensava que eles mantinham o Santo Graal escondido e não permitiam que nem mesmo o Papa tivesse acesso ao seu esconderijo, ou talvez porque conheciam segredos importantes que a Igreja não queria que se tornassem públicos. Eles foram torturados, muitos queimados vivos, mas nunca foram completamente aniquilados. Sim, você tem razão, minha família é originária da França, da região de Avignon. Os De La Rose, que tinham posses nesses lugares, lutaram contra os britânicos na Guerra dos Cem Anos, sofrendo muitas perdas. No final do século XIII, alguns membros da família se estabeleceram nesta zona fronteiriça entre a Itália e a França, um lugar tranquilo no meio das montanhas. Mas parece que a Inquisição, mesmo aqui, não deu trégua a uma de minhas antepassadas, que no final do século XVI foi julgada sob a acusação de bruxaria.
Enquanto falava, tirou do bolso do quimono uma cigarreira prateada, dentro da qual havia alguns cigarros que pareciam enrolados à mão. Ela escolheu um, levou-o à boca e estendeu a cigarreira em nossa direção.
‒ Obrigada, eu não fumo ‒ eu disse. ‒ E agradeceria se você também se abstivesse. O fumo me incomoda.
Sem nem mesmo considerar o que eu havia dito, ela acendeu o cigarro, direcionando para mim, quase como um desafio, a primeira nuvem densa de fumaça que exalou. Não sei como contive minha raiva, mas consegui.
‒ Chega de conversa, Aurora Della Rosa! Onde você estava ontem à noite quando o incêndio começou?
Ela sugou novamente e respondeu soprando fumaça junto com as palavras.
‒ Ontem à noite jantei em um restaurante mais abaixo no vale, o Da Luigi. Não estava com vontade de cozinhar e saí. Eu estava voltando para casa quando vi o brilho do fogo e eu mesma chamei o socorro pelo meu celular.
‒ Vamos verificar o que você está dizendo. E, diga-me, imagino que você receba seus clientes aqui em sua casa. Me disseram que você é uma feiticeira, que pessoas de todas as origens e classes sociais vêm aqui para pedir conselhos, comprar poções e assim por diante. A julgar pelo seu carro, é um trabalho que compensa. Não quero expressar minha opinião sobre seu trabalho, só quero perguntar se você recebeu nos últimos dias uma cliente em particular, uma mulher, que poderia ser a vítima cujo corpo encontramos.
‒ Meu Deus! ‒ interrompeu Aurora, mostrando surpresa. ‒ O incêndio causou uma vítima? Quem poderia estar na floresta àquela hora da noite?
‒ Esperávamos que você nos dissesse isso! Vamos lá, faça um esforço, não acho que seja difícil para você.
Com um ar pensativo, ela sugou o cigarro novamente.
‒ O que você pensa do meu trabalho, Doutora…?
‒ Ruggeri, Caterina Ruggeri.
E jogou outra nuvem de fumaça em minha direção.
‒ Veja, o trabalho que nós, magos, fazemos é muito respeitável. Pago meus impostos e também faço parte do sindicato dos magos, e não vendo fumo, como este cigarro. As pessoas vêm porque confiam em mim, e eu também devo respeitar um código de ética e proteger o direito à privacidade dos meus clientes.
‒ Gostaria de invocar o sigilo profissional, por acaso?
Casualmente, ela apagou a bituca em um cinzeiro e continuou.
‒ Não estou aqui vendendo amuletos ou enganando meus clientes sobre seu possível futuro. Tenho bons conhecimentos como herbalista e sei quais doenças podem ser curadas com ervas medicinais e quais devem ser tratadas de forma convencional. Muitas pessoas vêm aqui pedindo bons conselhos e eu os dou, com base na minha ciência e na minha experiência. Ninguém nunca se queixou de ter sido enganado por mim, eu sempre digo o que a pessoa espera, e todos saem felizes e com o coração enriquecido.
‒ Sim, mas com a carteira empobrecida. Vamos lá, eu conheço bem sua categoria, você é capaz de fazer as pessoas acreditarem que seus enganos são grandes remédios. Posso concordar sobre a medicina natural, mas sobre o resto…
‒ Dra. Ruggeri, não seja preconceituosa! Todos nós somos levados a acreditar que aquilo que vemos, ouvimos e tocamos é a verdade, que não há nada além do que é perceptível pelos nossos cinco sentidos, mas às vezes não é assim. Dentro desta sala, podem ser criados efeitos ópticos e acústicos que fazem o que é real parecer falso e o que é falso parecer real. Tente me tocar, colocar sua mão em meu ombro e se apoiar em mim!
Aproximei-me e tentei tocá-la, mas minha mão sentiu o vazio onde eu realmente podia ver sua imagem.
‒ É um jogo de espelhos ‒ eu disse. ‒ Algum tipo de truque mágico!
‒ E agora vá ao centro do pentáculo, no ladrilho central, e fale. Você ouvirá a sua voz soando em seus ouvidos como se viesse de um poderoso sistema estéreo.
‒ Claro, efeito da acústica da sala! Era assim também nos anfiteatros romanos. Uma questão de arquitetura! Você está desviando a conversa, tentando me distrair dos meus objetivos. Disseram-me que, entre seus visitantes, há uma categoria particular, adeptos de uma seita que lhe reconhecem como uma santa. Estes vêm aqui para obter acesso à biblioteca e completar o processo para alcançar vários níveis de conhecimento nas artes esotéricas. Você recebeu essas visitas recentemente?
‒ A seita de que fala chama-se Oamolas ed sovres, e não é uma seita satânica. Seus adeptos, através dos diversos níveis, adquirem conhecimentos ignorados pelos mortais comuns. Há séculos, aqueles que chegam aqui, ou em três ou quatro outros lugares espalhados pelo mundo semelhantes a este, aspiram atingir um dos níveis mais elevados de conhecimento, o sétimo, para o qual existe um caminho difícil. Por gerações, minha família tem sido guardiã de textos que só podem ser acessados por aqueles que concluíram os níveis anteriores. Aqueles que querem ir além, para alcançar o Conhecimento Universal, devem fazer a peregrinação ao Templo do Conhecimento e da Regeneração, que está localizado em um vale remoto entre o Nepal e o Tibete, de muito difícil acesso.
‒ Imagino que você já tenha feito essa peregrinação, mas não é isso que quero saber. Repito a pergunta: você recebeu a visita de algum desses adeptos nos últimos dias?
‒ Já contei isso a outros policiais e carabinieri que me interrogaram. A última visita desse tipo foi em 1997, quando veio uma feiticeira originária de um pequeno vilarejo em Abruzzo, Sant’Egidio alla Val Vibrata. Ela se chamava Mariella, A Ruiva. Ela me disse que, antes de enfrentar as provas a que eu a submeteria, queria visitar os lugares mágicos nos bosques e ao redor de Triora, a Fonte de Campomavùe e a Fonte das Nozes, a Rua Atrás da Igreja e o Lago Degnu. Era o dia do solstício de verão, uma das datas típicas em que as bruxas e os bruxos se reúnem, também nestes locais, para o ritual do Sabbath. Mariella saiu ao pôr do sol e nunca mais voltou.
‒ E você certamente não participou do Sabbath e nem imagina o que aconteceu com Mariella! Vamos lá, sabemos muito bem que esses chamados Sabbaths são a ocasião para realizar rituais satânicos, às vezes violência sexual, outras vezes sacrifícios de animais ou de pessoas. Com sua lavagem cerebral, vocês convencem algumas pessoas, as psicologicamente mais fracas, a serem purificadas, a renascerem para uma nova vida e assim por diante, desde que se submetam à violência proposta durante os ritos. Sem mencionar todos aqueles que você engana para obter lucro. Não são incomuns os casos em que alguém perdeu todos os seus bens para seguir um Guru.
‒ Eu já lhe disse que nossa seita não é satânica. Aqueles que se juntam à nossa organização o fazem por livre escolha e pelo desejo de alcançar elevados níveis de conhecimento. Repito que não sou uma vendedora de fumo, e tudo o que digo ou prego sempre se tornou realidade. Mostre-me sua mão esquerda e me olhe nos olhos, Dra. Ruggeri. Como você sabe que não é uma de nós, talvez sem se dar conta disso? Vejo que sofreu quando menina, vejo os lutos familiares que a marcaram, vejo uma vida amorosa complicada, mas que recentemente foi resolvida de forma positiva. Você tem poderes além do normal, tem percepções notáveis, tem uma aura muito forte, vermelha como fogo, nada lhe escapa naqueles que estão à sua frente, nem mesmo um único detalhe. E agora vá, Dra. Caterina Ruggeri, já sei tudo o que há para saber sobre você.
Sem nem perceber, me vi do lado de fora da casa de Aurora, no pátio, seguida por Mauro que, com um sorriso irônico, comentou o que havia presenciado.
‒ Essa mulher tem poderes hipnóticos. Ela fez você fazer tudo o que ela queria. Ela basicamente nos expulsou à sua maneira e, como todos os outros que vieram antes de nós, também estamos saindo com o rabo entre as pernas.
‒ Sim, mas a bruxa está certa, nada me escapa, nem um único detalhe. Voltaremos com uma estratégia diferente. Eu só preciso pensar e vir aqui preparada. Vamos voltar para verificar se a equipe forense terminou seu trabalho e depois damos uma olhada nos arredores. Quais eram os nomes dos lugares que essa maléfica mencionou relacionados com Mariella, A Ruiva?
‒ Fonte de Campomavùe, Fonte das Nozes, Rua Atrás da Igreja e Lago Degnu.
‒ Puxa, parabéns, você tem uma boa memória! Com você não há necessidade de gravadores ou cadernos!
‒ Sim, no entanto, lembre-se de que o palmtop pode ser útil para gravar conversas. É um modelo muito sensível e, mesmo que você o guarde no bolso, ele consegue gravar.
‒ Ah, obrigada por me dizer. Certamente também será útil para tirar fotos!
Os homens de macacão branco e luvas de látex estavam terminando seu trabalho na cena do crime. Enquanto um tirava fotos, outro coletava o solo ao redor da vítima e colocava as amostras dentro de sacos plásticos, e ainda outro espalhava Luminol para procurar vestígios ocultos de sangue.
‒ Encontraram algo interessante? ‒ perguntei.
‒ Parece que o incêndio foi iniciado com um líquido inflamável, não gasolina, mas outra coisa que tentaremos identificar no laboratório. Também encontramos vestígios de cera, talvez provenientes de uma tocha feita de papel prensado e cera, daquelas usadas em procissões e cortejos, por exemplo ‒ respondeu-me um dos três.
‒ Você encontrou a tocha?
‒ Não, Doutora. Mas também estamos recolhendo os detritos carbonizados, talvez possamos encontrar algo útil. Assim que o trabalho no laboratório for concluído, nós lhe enviaremos um relatório detalhado. Por enquanto, terminamos aqui. O carro do IML chegou e podemos transferir o cadáver para o necrotério.
No caminho de volta para a praça onde nosso carro estava estacionado, uma placa de madeira indicando a Fonte das Nozes chamou minha atenção.
‒ Vamos dar uma olhada? ‒ disse para Mauro e, sem esperar sua resposta, tomei o caminho que levava a uma área de floresta densa. Avançamos um pouco e chegamos a uma clareira dominada por uma grande nogueira, perto da qual jorrava uma convidativa fonte de água. Dado o calor e o cansaço do dia, Mauro e eu tomamos alguns goles de água bem fresca e então começamos a olhar em volta em busca de algo particular, algum sinal, alguma pista. À primeira vista, não parecia haver nada de interessante. Enquanto lamentava não ter comigo o meu fiel Fúria, um rastreador incomparável, meu olhar caiu bem ao lado da grande árvore, onde notei um pouco de terra solta.
‒ Foi feito um desenho no chão com um objeto pontiagudo, uma faca ou uma vara. Geralmente, os membros das seitas realizam rituais em determinados locais, desenhando símbolos, pentáculos ou qualquer outra coisa, que acabam sendo removidos. Parece que aqui o desenho foi apagado às pressas, pois algumas partes dele ainda podem ser vistas. Também é possível distinguir algumas inscrições. Talvez a cerimônia tenha sido interrompida ou perturbada e os adeptos tiveram que fugir, caso contrário, eles teriam tido muito mais cuidado em apagar todos os vestígios.
‒ Você está pensando em uma Missa Negra, talvez com o sacrifício de, sei lá, um animal, uma virgem ou um dos próprios seguidores?
‒ Por enquanto, não penso em nada, me limito a observar e absorvo o que vejo e ouço. Há muitos elementos, mas ainda não sei quais podem ser úteis e quais não. O caminho segue naquela direção. Vamos continuar?
Depois de alguns passos, a vegetação ficou tão emaranhada que parecia que o caminho tinha acabado. Eu estava prestes a voltar por onde vim quando vislumbrei, a uns trinta metros de distância, uma estrutura enferrujada.
‒ Deve ser a carcaça do veículo de lenha que pegou fogo anos atrás. Ninguém se preocupou em removê-la, até porque o proprietário já havia falecido há muito tempo. Com essa mata fechada, eu acho que nunca conseguiremos chegar até lá ‒ comentou Mauro.
‒ Sim, teremos que trazer algum equipamento adequado para limpar a vegetação e então dar uma olhada ‒ respondi. ‒ Vamos voltar para o carro agora!
Partimos em um ritmo moderado pelas curvas fechadas que levavam de volta ao fundo do vale, percorrendo o encantador Vale Argentina. Depois de passar pelo vilarejo de Molini di Triora, a estrada descia novamente. Uma placa indicava que, a poucas centenas de metros dali, encontraríamos o restaurante Da Luigi.
‒ Vamos checar o álibi da bruxa? ‒ propus a Mauro.
‒ Sim, com prazer ‒ foi sua resposta. ‒ E como já é fim da tarde e ainda não comemos nada, eu proponho aproveitar a ida ao restaurante para isso.
O lugar estava deserto àquela hora. Sentamos em uma das mesas e esperamos alguém aparecer. O proprietário do estabelecimento, um homem de uns quarenta e cinco anos, acima do peso, com o rosto corado e suado, não demorou a aparecer.
‒ Posso ajudá-los, senhores? Infelizmente, a esta hora não temos muita coisa na cozinha.
‒ Polícia ‒ falou Mauro. ‒ Poderia responder a algumas de nossas perguntas?
‒ Presumo que seja pelo crime de ontem à noite. O local é bem longe daqui. Como posso ser útil?
‒ Você conhece Aurora Della Rosa, certo? ‒ perguntei.
‒ Claro, é uma cliente fiel, ela vem aqui de vez em quando e eu aproveito para pedir alguns conselhos. Eu sofro de dor no ciático e ela tem remédios paliativos à base de ervas, muito melhores do que a medicina convencional.
‒ Ela esteve aqui ontem à noite?
‒ Sim, chegou por volta das 21h30 e saiu tarde, mais de meia-noite. Ela estava estranha, mais taciturna do que o normal. Pediu uma refeição, mas acho que não tocou na comida. Também tive que chamar sua atenção porque, sentada à mesa, ela acendeu um cigarro e estava fumando na sala. Não havia muitos clientes presentes, e ninguém reclamou, mas sendo proibido por lei, você sabe, eu tive que intervir!
‒ Ela estava sozinha?
‒ Sim, sozinha.
‒ E ela costuma vir sozinha ou acompanhada?
‒ Depende. Às vezes, vem sozinha, mas muitas vezes está na companhia de uma amiga morena, uma bela mulher com sotaque estrangeiro. Parece que as duas são um casal, aqui na região dizem que elas são sapatonas.
Para pronunciar essas últimas palavras, ele se aproximou de nós, baixando o tom de sua voz.
‒ Lésbicas ‒ eu o corrigi.
‒ Sim, é isso mesmo. Hoje em dia, nas grandes cidades, ninguém mais se incomoda com isso, mas aqui não estamos muito acostumados com certos comportamentos.
‒ Bem, meu caro Luigi, já é suficiente! Agora o inspetor Giampieri e eu gostaríamos de comer alguma coisa. O que você nos propõe?
‒ Bem, como eu lhes disse antes, não há muita escolha a essa hora. Posso recomendar um belo prato de massa trofie da Ligúria ao pesto genovês com feijão verde e batatas, um prato único que certamente os deixará satisfeitos.
‒ Traga-nos duas porções grandes.
Já era quase noite quando chegamos a Imperia e estacionamos em frente ao Distrito de Polícia.
‒ Aqui estamos ‒ disse Mauro. ‒ Você chegou ao seu novo local de trabalho. Ficamos em uma área afastada da cidade, enquanto a Sede da Polícia fica bem no centro, na Piazza del Duomo. Acho que amanhã de manhã, antes de iniciar qualquer atividade, devemos passar por lá. O Delegado Geral se preocupa muito com formalidades e por isso você deve se apresentar a ele!
Mauro me conduziu por um labirinto de corredores e escritórios até chegar àquela que seria minha sala.
‒ Certo, mas antes de ir até a Sede da Polícia, gostaria de conhecer o pessoal em serviço aqui. Você acha que é possível encontrar os homens de manhã cedo?
‒ Vou me certificar de que todos, salvo exceções justificáveis, estejam aqui às oito. Por enquanto, acho que você quer descansar. Lá nos fundos há um quarto com uma cama e o banheiro fica no corredor. Você encontrará sua bagagem e, se precisar de qualquer coisa, saiba que passarei a noite na guarita.
‒ Bem, até que eu encontre uma acomodação melhor, vou me adaptar e depois veremos. Agora estou cansada demais para procurar outro lugar para ficar. Além disso, de qualquer forma, estou acostumada a morar onde trabalho!
Dei uma olhada na minha mesa, onde já havia uma caixa contendo todos os registros das investigações sobre as pessoas desaparecidas em Triora. Eu certamente não queria colocar minhas mãos nisso naquele momento, até porque temia que qualquer coisa que encontrasse ali pudesse mudar as ideias que eu havia formado durante o dia. É melhor primeiro raciocinar instintivamente e não se deixar influenciar pelo trabalho dos outros! De qualquer forma, meus olhos pousaram em um exemplar de uma revista mensal. Peguei, folheei e me detive no artigo sobre os mistérios de Triora, publicado por ocasião do desaparecimento dos três jornalistas que faziam parte da equipe editorial da revista: Stefano Carrega, Giovanna Borelli e Dario Vuoli. Em um quadro, aparecia um trecho retirado das anotações do caderno de Vuoli, encontrado dentro da tenda abandonada dos três.
Qual é o sentido de procurar por bruxas? Acima de tudo, quem são e como podemos reconhecer as bruxas hoje? Não há mais a Inquisição para apontá-las para nós. Talvez elas ainda existam, talvez apenas tenham uma aparência diferente. Em 1587, era mais fácil reconhecê-las: “Vê-las-eis colocando imagens de cera e substâncias aromáticas sob o retábulo. Elas recebem a Comunhão do Senhor não acima, mas debaixo da língua, porque podem facilmente tirar o corpo de Cristo da boca para usá-lo em suas práticas odiosas. Além disso, o que distingue uma bruxa de uma pecadora, ou de uma prostituta, é a capacidade de voar durante a noite…”
Sim, talvez no final do século XVI, as pessoas comuns ainda não soubessem reconhecer os truques e as ilusões desses charlatães e os tomavam por magia ou bruxaria. Mas no século XXI, vamos lá! Esses três jornalistas tinham ido à procura de bruxas no seu território, e talvez as tivessem encontrado! E eles se deixaram sequestrar por elas? Mas vá! Tudo isso foi uma armação, mas com que propósito? Ocultar um crime, querer apagar seus rastros ou por qual outro motivo? E o que tinha a ver com isso a seita, como diabos se chamava? Oamolas ed sovres. O que isso poderia significar?
Com a mente ocupada por essas perguntas, fui me lavar e me retirei para o quarto que Mauro me indicou. Os dias eram longos e, embora fossem quase nove da noite, ainda havia luz lá fora. Deitei-me na cama sem sequer puxar as cobertas. Eu estava cochilando quando ouvi uma batida na porta. Era Mauro, carregando um copo de papel com uma bebida fumegante.
‒ Não é o melhor, é um chá da máquina de venda automática, mas pensei que poderia ser bom antes de dormir. Você quer algo para comer?
‒ Não, obrigado, ainda tenho que digerir o trofie.
‒ Bem, de qualquer forma, tenho novidades para você. Seu cão, Fúria, estará aqui no máximo até amanhã à tarde. Mandei limpar a baia no pátio, onde seu antecessor mantinha o seu pastor alemão. Acho que pode ser um bom arranjo por enquanto.
‒ Obrigada por tudo, Mauro! Mas agora deixe-me descansar. Estou muito cansada e amanhã teremos que enfrentar mais um dia muito intenso! Boa noite.
Procurei em minha mala uma camisola leve, tirei a roupa e fui para a cama. Adormeci e sonhei com bruxas voando em suas vassouras, reunindo-se para invocar Satanás, participando de Sabbaths sob grandes nogueiras. E depois inquisidores as capturavam, torturavam, julgavam e mandavam queimá-las na fogueira. Mas o fogo não conseguia consumir seus corpos e elas riam e zombavam, apesar de suas roupas e cabelos estarem em chamas. E, no final, as bruxas se afastavam do local de tormento, balançando entre elas crianças envoltas em panos.
CAPÍTULO 5
No dia seguinte, levantei bem cedo e comecei a arrumar meu escritório. Por volta das sete e meia, percebi que o Distrito estava começando a ganhar vida. As salas se enchiam, alguém tomava um café na máquina, outros brincavam e trocavam piadas antes de se dedicarem ao trabalho. Era uma atmosfera que me lembrava meus anos de serviço na Sede da Polícia em Ancona. Comecei a andar pelos corredores e cumprimentar a cada um que encontrava. Todos eram muito afáveis e retribuíam minha saudação com um sorriso ou um aperto de mão amigável. Bem, meu novo local de trabalho não era ruim! Reconheci o superintendente com quem havia falado na manhã anterior em Triora.
‒ Bom dia, superintendente…?
‒ D’Aloia, Doutora, meu nome é Walter D’Aloia, às suas ordens!
‒ Bem, D’Aloia, você poderia me arranjar um daqueles quadros brancos e alguns marcadores grandes de várias cores? Preciso fazer um balanço da investigação e desenhar um esquema me ajuda a não perder nada de vista.
‒ Em alguns minutos consigo tudo o que pediu.
‒ Obrigada. Espero todos vocês às oito em ponto para as apresentações necessárias.
Na hora marcada, cerca de vinte pessoas, incluindo quatro mulheres, foram alinhadas à minha frente, enquanto Mauro ficou ao meu lado e as apresentou a mim, listando os nomes, os cargos e as aptidões de cada uma.
‒ Uma excelente equipe! ‒ comentei. ‒ O inspetor Giampieri e eu estaremos bastante ocupados investigando o homicídio de Triora, portanto, no que diz respeito às atividades normais, elas serão coordenadas pelo inspetor Gramaglia, que é o mais graduado entre vocês. Por outro lado, a superintendente Laura Gigli, que é especialista em TI, nos auxiliará. Não creio que o inspetor Giampieri e eu conseguiríamos concluir sozinhos uma investigação que parece tão complexa. Na medida do possível e quando chegar a hora, ainda contarei com a colaboração de todos vocês, portanto, estejam preparados. Agora voltem às suas atividades. Mauro, Laura! Vocês não, permaneçam aqui comigo.
Quando fiquei sozinha com os dois, peguei um marcador e comecei a transformar meu raciocínio em diagramas, que fui escrevendo aos poucos no quadro branco.
‒ Desde ontem temos uma vítima, mas acho que deveríamos partir de vinte anos atrás e tentar entender como e por que algumas pessoas desapareceram em Triora, enquanto outras apareceram. Temos Aurora, de sessenta anos, que, se estivesse viva agora, teria oitenta. Ela partiu para o Nepal com uma garota romena, Larìs Dracu, no final da década de 1980, e todos os vestígios das duas mulheres foram perdidos. Partindo do Aeroporto Internacional de Fiumicino em junho de 1989, não há registros de seu retorno à Itália. Depois de alguns meses, no entanto, apareceu uma garota de vinte anos com o mesmo nome, a Aurora Della Rosa que conhecemos ontem, que se fez passar por suposta neta da bruxa e foi morar na sua casa. A diferença de idade entre as duas poderia nos levar a crer que ela é filha e não neta da velha Aurora, mas alguns no vilarejo chegam a afirmar que a velha e a jovem são a mesma pessoa, porque, na viagem ao Nepal, a bruxa teria encontrado uma maneira de rejuvenescer. A primeira tarefa para você, Laura, é verificar os arquivos de registro de Triora. E chegamos a Larìs Dracu. Desapareceu do nada no Nepal? Retornou à Romênia ou está aqui em Triora? Quem é a morena com sotaque estrangeiro que às vezes acompanha Aurora ao restaurante Da Luigi? Quero uma pesquisa no banco de dados de pessoas desaparecidas, Laura, quero saber tudo o que há para saber sobre Larìs.
Em um canto do grande quadro branco, escrevi em letras maiúsculas “AURORA” e “LARÌS” e fechei os dois nomes em um círculo.
‒ A segunda pessoa desaparecida é Mariella, A Ruiva. Em 1997, ela deixou Abruzzo e veio para Triora, visitou alguns lugares importantes para nossas bruxas, a Fonte das Nozes, a Fonte de Campomavùe, a Rua Atrás da Igreja e o Lago Degnu, entrou na floresta, em uma noite de lua cheia, e desapareceu no ar. Excluindo, a priori, que Satanás a tenha sequestrado, o que aconteceu com ela? Será que ficou escondida por anos na floresta de Triora? Ou foi assassinada e seu corpo escondido em algum lugar? E que relação há com o caminhão incendiado, na mesma noite, por supostos arruaceiros? Se hoje temos uma mulher morta queimada, o mesmo fim pode ter sido reservado, na época, para Mariella, A Ruiva. O assassino, na ocasião, talvez tenha tido tempo e maneira de fazer o cadáver desaparecer! Portanto, outra busca se concentrará nessa Mariella e no caminhão que pegou fogo há doze anos.
Escrevi “MARIELLA” e “CAMINHÃO” em outro canto do quadro e circulei.
‒ No ano 2000, três jornalistas desapareceram no ar, dois homens e uma mulher: Stefano Carrega, Dario Vuoli e Giovanna Borelli. Temos muitos elementos sobre eles e sua história, a julgar pelo conteúdo dessa caixa…
‒ Um momento ‒ Laura me interrompeu. ‒ Sou natural desses lugares, moro em Molini di Triora e conheço bem a história das bruxas que passaram pela Inquisição em 1587. Dois dos sobrenomes que você acabou de mencionar são recorrentes na história das bruxas de Triora. De fato, Stefano Carrega é homônimo do Podestà de Triora na época do julgamento, enquanto Teresa Borelli era uma das cinco bruxas de Ca Botina, as principais sob investigação. Borelli era a bruxa chamada pelos habitantes locais de “Teresa, O Moleque”.
‒ Mais homônimos! Bem, a essa altura, acho que preciso me informar melhor sobre esse julgamento das bruxas. Quem sabe, talvez o hipotético assassino se inspire nessa história!
Escrevi em um terceiro canto do quadro “CARREGA”, “BORELLI” e “VUOLI” dentro de outro círculo.
‒ Há uma versão oficial do julgamento e uma versão transmitida oralmente pelos idosos de Triora, que é bem diferente, mas é muito difícil de interpretar porque é contada apenas no idioma occitano ‒ interveio Laura. ‒ Vou tentar obter as duas versões.
‒ Muito bem, Laura! E chegamos a ontem, o dia em que foi encontrado o cadáver carbonizado de uma mulher, cuja identidade não conhecemos. Teremos que aguardar os resultados da autópsia e as conclusões forenses para começar a pensar sobre isso. Ainda temos poucos elementos.
No último canto do quadro escrevi “VÍTIMA”, circulei também essa última palavra e, depois, no centro do quadro, em letras grandes, incluí o nome da seita, “OAMOLAS ED SOVRES”. Por fim, conectei com setas cada um dos quatro círculos desenhados antes ao nome escrito no centro.
‒ Tudo parece girar em torno desta seita. Precisamos entender o significado desse nome estranho, a quais atividades os adeptos se dedicam e quem está no comando. Em outras palavras, precisamos saber quem é o homem santo, ou guru, dessa seita. Em minha opinião, Aurora Della Rosa está envolvida nisso, e não é pouco. E ela não conta tudo o que sabe, é muito hábil em desviar a conversa e criar álibis confiáveis. Mauro, você acha que o Coruja-de-Igreja pode autorizar uma busca na casa da bruxa?
‒ Ah, você quer dizer o Dr. Leone? Mas, como você o chamou? O Coruja-de-Igreja? Fantástico! Ele é um Magistrado muito exigente e, sem elementos suficientes, nunca autorizará uma busca. Ele é alguém que não gosta de ter problemas.
‒ Bom, então teremos que agir com astúcia, e já tenho algo em mente. E agora vamos ao trabalho. Você, Laura, dedique-se à pesquisa que lhe pedi, e você, Mauro, prepare o carro, vamos voltar a Triora!
‒ Lá se vai minha disciplina militar! ‒ exclamou Mauro. ‒ Lembro-lhe que não iremos a lugar algum antes de passarmos pela Sede da Polícia. Nossas cabeças dependem disso.
‒ Muito bem, vamos torcer para que o Delegado Geral não nos reserve horas na espera. Aguarde por mim lá embaixo no carro, descerei em alguns minutos.
Certamente Mauro pensou que eu iria retocar minha maquiagem, conforme o padrão de vaidade das mulheres, mas não foi o caso. Eu fui me trocar, colocando roupas esportivas confortáveis e tênis. Na verdade, não adiantava voltar para o meio da floresta e caminhar por trilhas nas montanhas e estradas de terra com tailleur e sapatos brilhantes. Depois de cinco minutos, eu estava no carro ao lado de Mauro, que me olhou com espanto.
‒ Você é inacreditável, Caterina! Você quer se apresentar ao Delegado Geral vestida assim?
‒ A roupa não é em função do Delegado Geral, mas da investigação. Você vai ficar me olhando ou vai ligar o maldito carro?
Ele partiu cantando pneus e, graças a costuradas no trânsito, insanos tráfegos na contramão, invasões de faixas preferenciais reservadas a ônibus e táxis, sem nunca ficar abaixo de noventa quilômetros por hora, em quatro minutos e vinte e cinco segundos chegamos à Piazza del Duomo. Com uma inacreditável guinada, obtida com a ajuda do freio de mão, ele escorregou milimetricamente entre outras duas viaturas da Polícia Estadual, em uma das vagas reservadas à Sede da Polícia.
‒ Se não for necessário, peço que evite todas essas cenas! ‒ disse a ele, saindo do carro e tentando me recompor. Minha cabeça girava um pouco, parecia que eu ia cair, mas mantive a calma, apesar de sentir que minhas forças estavam prestes a me abandonar.
Sempre com Mauro como guia, seguimos até a entrada do prédio e pegamos um elevador para o terceiro andar. Depois de caminhar por um longo corredor com piso muito polido, finalmente chegamos ao gabinete do Delegado Geral. O Dr. Perugini nos recebeu imediatamente, e isso me deixou agradavelmente surpresa. Ele era um homem baixo, ligeiramente rechonchudo, com rosto redondo e cabelo bagunçado, quase lembrando o ator americano Denny De Vito. Ele se levantou de sua mesa e apertou minha mão vigorosamente. Em pé diante de mim, notei ainda mais sua baixa estatura. Sua cabeça alcançava mais ou menos a altura do meu ombro, enquanto Mauro, comparado a ele, parecia um gigante. No entanto, ele inspirava simpatia, e mais tarde eu viria a descobrir nele uma inteligência notável e uma excelente capacidade de gestão dos seus funcionários.
Depois de concluir o preâmbulo habitual, ele retornou ao seu lugar atrás da mesa.
‒ Tenho muita confiança em você, Dra. Ruggeri, e sei que não me decepcionará. Colocarei à sua disposição todos os meios que desejar para chegar a uma conclusão dessa investigação. Eu recomendo prioridade máxima. E se você tiver problemas com o Magistrado, não tenha medo de recorrer a mim. Vá agora e me mantenha informado.
De volta ao carro, aconselhei Mauro a dirigir em um ritmo moderado e a parar assim que visse uma loja de ferragens. Tendo identificado o local pretendido, entrei para comprar uma grande tesoura de jardinagem. De fato, minha intenção era chegar a todo custo ao caminhão queimado e vê-lo de perto.
‒ Hoje eu gostaria de examinar minuciosamente a cena do crime, sem pessoas por perto, e depois chegar à carcaça do caminhão de lenha. Será útil dar uma olhada lá dentro, embora, depois de tanto tempo, eu duvide que encontremos algo interessante. Gostaria de visitar também os outros lugares, a outra fonte e o lago, e também voltar à casa de Aurora. Quando estivermos na casa da bruxa, tentarei distraí-la o máximo possível, para que você possa dar uma espiada e, se possível, coletar algumas pistas, não sei, algumas impressões digitais, algum elemento que possa nos ajudar a incriminá-la ou exonerá-la.
‒ Você quer que eu plante algumas escutas?
‒ Não, não neste momento. Para estas interceptações, teríamos que obter a autorização do Magistrado!
Quando chegamos ao local, estacionamos no mesmo lugar do dia anterior e continuamos a pé. Eu queria dar uma boa olhada na grade à qual a vítima havia sido amarrada. As barras foram oxidadas pelas chamas, mas ficou evidente que a partir dali não havia possibilidade de acesso à caverna, que devia ter servido como depósito de lenha. A grade de metal estava fincada no chão e nas paredes de rocha e, dentro da caverna, só se viam detritos incinerados umedecidos pela água utilizada pelos bombeiros.
‒ Nenhum dos nossos tentou entrar aqui! ‒ refleti em voz alta, fazendo Mauro participar do meu raciocínio.
‒ Talvez eles tenham pensado que não havia nada de interessante. Além disso, não há possibilidade de acesso, a não ser serrando essas grossas barras ‒ foi a resposta do meu assistente.
‒ Se isto é uma caverna usada como depósito de lenha, para utilização da residência vizinha, de que adianta não poder entrar lá para pegar lenha? Um primeiro raciocínio poderia sugerir que a caverna não é um fim em si mesma, mas que, de alguma forma, ela se comunica com a casa através de um túnel, por exemplo, uma espécie de passagem secreta. Ou poderia haver outra entrada, talvez escondida entre a vegetação. Você tem uma lanterna, Mauro? Vamos tentar lançar alguma luz lá dentro!
‒ Não é uma lanterna, mas podemos usar a tela do palmtop! Não, não é possível ver o fundo, há muitos detritos.
‒ Droga, mas eu voltarei aqui com o meu cão e tenho certeza de que descobrirei algo interessante. Vamos para o caminhão agora!
Depois de passarmos pela Fonte das Nozes, tomamos a direção que levava à carcaça do veículo e, com a tesoura, começamos a abrir caminho por entre a vegetação. Algumas plantas espinhosas, como amoreiras, rosas silvestres e espinheiros, ainda conseguiram causar arranhões superficiais em meus braços e mãos. De vez em quando, Mauro e eu trocávamos de mãos a pesada ferramenta e, finalmente, depois de uma boa meia hora, chegamos às proximidades do veículo. Era um daqueles pequenos caminhões basculantes usados na década de 1960. No capô, ainda se podia ler a marca, OM, e o modelo, Lupetto, que era identificado por uma inscrição metálica em itálico, fixada obliquamente na parte frontal da carroceria. Tudo o que restou do caminhão foram as partes metálicas oxidadas, em sua maioria cobertas por vegetação trepadeira que se originava do solo abaixo. Tentei abrir a porta do lado do motorista, mas estava trancada. Como o vidro da janela estava completamente ausente, resolvi subir para dar uma olhada no interior. No núcleo metálico do volante, pude notar alguns pedaços de arame.
‒ Dê-me um empurrão, Mauro, quero entrar na cabine.
Senti que estava sendo levantada tão facilmente como um galho e me vi dentro da carcaça. Na verdade, os pedaços de arame presos ao volante poderiam ter sido utilizados na época para imobilizar uma possível vítima dentro do veículo. Notei algo na parte inferior, perto dos pedais, como uma massa de plástico derretido, que tentei desprender com a ajuda de uma pequena faca. Saí da carcaça com as roupas imundas, mas com um troféu nas mãos.
‒ O que é? ‒ perguntou Mauro.
‒ Ainda não sei. Acho que é um material derretido, mas certamente não pertence a um tapete de borracha. Coloque-o em um saco e pediremos à perícia para identificar sua natureza. A ideia de que um crime foi cometido aqui é cada vez mais evidente. A vítima, talvez inconsciente, é amarrada ao volante com arame e, então, o veículo é incendiado. Em seguida, o assassino, ou assassinos, conseguem remover o cadáver e escondê-lo em algum lugar, deixando para trás apenas a carcaça de um velho caminhão devorado pelas chamas.
‒ Portanto, outra execução pelo fogo!
‒ Sim, provavelmente Mariella, A Ruiva, teve uma morte horrível dentro do caminhão, mas quem conduziu a investigação na época foi superficial e não vinculou, ou não quis vincular, o incêndio do caminhão ao desaparecimento da mulher. Vamos voltar à Fonte das Nozes. Quero tentar entender os desenhos ainda visíveis no chão.
Quando chegamos à fonte, matamos a sede e depois tentei interpretar os símbolos desenhados no chão. Pelo que me lembrava das pesquisas que fiz para minha monografia, um pentáculo, desenhado próximo a uma fonte sagrada para os seguidores das seitas, com uma faca ou um instrumento pontiagudo consagrado, sempre indica um local dedicado a um ritual. Dependendo dos desenhos e inscrições utilizados, os ritos podem ser de natureza diversa. Se forem gravados no chão os quatro nomes poderosos pelos quais Deus era chamado na antiguidade, o sacerdote invocará os espíritos e os chamará para pedir ajuda. Às vezes, para agradar aos espíritos e garantir seu favor, pode-se recorrer a sacrifícios, de animais, por exemplo, ou outras vezes, mas mais raramente, de seres humanos. Com o sangue da vítima, escreve-se o pedido aos espíritos invocados, geralmente na forma de metáforas, incompreensíveis para quem não faz parte da seita. No nosso caso, ainda era possível visualizar, no chão, uma das cinco pontas do pentáculo e, ao lado dela, um sinal indicando o símbolo da terra.
‒ O pentagrama é a representação do microcosmo e do macrocosmo. Ou seja, ele combina, em um único símbolo, todo o misticismo da criação, todos os processos em que se baseia o cosmos. As cinco pontas do pentagrama simbolizam os cinco elementos metafísicos: água, ar, fogo, terra e espírito. Há uma abertura entre dois mundos, o mundo dos feiticeiros e o das pessoas comuns. Há um lugar onde os dois mundos se encontram. A abertura está lá, ela abre e fecha como uma porta ao vento ‒ declamei, recitando de memória o que havia lido em um texto de esoterismo.
Mauro me olhou surpreso.
‒ E você acredita nessas coisas?
‒ Claro que não. Isso é o que o xamã, o guru, o homem santo da seita, quer que seus adeptos creiam, para poder tê-los em suas mãos, para poder convencer seus submissos de que, mesmo que se peça um sacrifício, as eventuais vítimas sacrificiais devem simplesmente ficar contentes por ir de encontro à morte.
‒ Então, na sua opinião, foi realizado aqui um ritual no qual foi exigido um sacrifício humano? A vítima foi capturada, levada um pouco mais longe, amarrada à grade e sacrificada com fogo?
‒ Sim, e talvez, sob a influência das drogas que devem ter lhe dado, ela também estava feliz por ser queimada viva.
‒ Em sua opinião, Caterina, poderia Aurora ser a mulher sagrada da seita, a artífice de tudo isso?
‒ Não sei, ainda não temos elementos suficientes. Mas, como a hora do almoço já passou há muito tempo e ainda não comemos nada, vamos tentar fazer com que a bruxa nos convide para almoçar? Ou você prefere voltar para o Luigi?
‒ Eu não gostaria de ser vítima de alguma iguaria envenenada preparada por Aurora para a ocasião. Melhor trofie ao pesto!
No restaurante, perguntei a Luigi qual era a maneira mais fácil de chegar a Lago Degnu.
‒ O Lago Digno é um lugar excepcional, mas é preciso estar bem equipado para chegar até lá. Há duas maneiras. Uma trilha parte de Molini e sobe o Riacho Argentina até o lago. Você vai precisar de botas, pois terá de caminhar por alguns trechos dentro do leito do córrego, onde ele fica encravado em um estreito desfiladeiro. O lago é formado pelo Rio Grugnardo, que deságua no Riacho Argentina com uma queda de quinze metros. Portanto, quando chegar lá, poderá admirar uma esplêndida cascata que cai no lago abaixo. Este, apesar de ser um pequeno corpo d’água, é bastante profundo em alguns pontos. A outra rota é uma trilha que desce de Triora, mas para percorrê-la é necessário estar equipado com cordas, arreios e mosquetões. Há alguns trechos em que a trilha se perde e é preciso descer paredes rochosas. Até a cachoeira, há algumas paredes equipadas com via ferrata, mas é aconselhável não confiar demais e se proteger com uma corda de qualquer maneira. E então, se você quiser descer da cachoeira até o lago, ainda terá que fazer rapel com equipamento de escalada, caso contrário, só verá o lago de cima.
‒ Você o chamou de Lago Digno. Por que é que em Triora o chamam de Lago Degnu? ‒ perguntei a Luigi.
‒ Ah, é a expressão do dialeto. Embora essas terras tenham sido parte do Reino da Sardenha no passado, o fato de as expressões dialetais usarem muito a letra “u” não deriva do sardo. As expressões da Ligúria também são ricas nesta vogal. Por isso, nesta região, o liguriano se mistura ao occitano e quem não é local corre o risco de não entender nada ao nos ouvir falar.
Eu sorri para ele, pensando que até mesmo no dialeto do interior de Marche a mesma vogal era encontrada com frequência. Paguei a conta e saímos.
‒ Bem, eu diria que, neste momento, deveríamos retornar à nossa cara Aurora. Vou tentar distraí-la, fazê-la falar, talvez mantendo a conversa vaga, sem entrar no assunto do crime. Você, discretamente, tente coletar algo útil. Precisamos levar algumas pistas, Mauro, para convencer o Dr. Leone da necessidade de revistar a casa da bruxa de cima a baixo!
Estacionamos o carro ao lado do Porsche Carrera e caminhamos em direção à entrada da casa Della Rosa. Não havia campainha elétrica, apenas uma corda amarrada a um sininho. Não cheguei a tempo de puxar a corda, porque a porta se abriu e a loira Aurora apareceu com roupas minúsculas, uma regata rosa e uma saia jeans muito curta.
‒ Eu senti sua chegada ‒ disse ela. ‒ Entrem, hoje está um dia lindo e claro, e se vocês me seguirem até o terraço, poderão admirar a maravilhosa vista panorâmica do Vale Argentina e das montanhas que marcam a fronteira com a França.
‒ Excelente! ‒ eu disse, dando uma piscadela para Mauro. ‒ Sou uma entusiasta das montanhas e adoro belas paisagens!
Ela nos levou até o terraço, de onde havia de fato uma vista esplêndida.
‒ Posso oferecer-lhes um dos meus chás de ervas relaxantes? Eu realmente acho que vocês precisam!
‒ Aceitamos o chá, desde que não seja relaxante demais ‒ respondi. ‒ Podemos voltar ao salão para saborear a bebida, Sra. Della Rosa?
‒ Claro, acomodem-se. Voltarei em alguns instantes.
Ela desapareceu na cozinha. Não poderia haver oportunidade melhor, mas teríamos que ser rápidos para não sermos surpreendidos. Enquanto eu dava uma olhada nos livros e na porcelana nas estantes, Mauro se ocupava com maçanetas e objetos, como cinzeiros e bibelôs, para tirar algumas impressões digitais. Minha atenção recaiu sobre um antigo vaso de porcelana azul e branca com uma inscrição em letras góticas que dizia “Red Shepenn”. Levantei a tampa e vi que continha algum tipo de tabaco. Peguei uma pitada e coloquei em um saco plástico transparente.
‒ Pode ser droga ‒ sussurrei para Mauro. ‒ Por esse nome, no Oriente, nos tempos antigos, era chamada a papoula do ópio.
Quando Aurora voltou com três xícaras de chá de ervas fumegante com um forte cheiro de menta, tanto Mauro quanto eu observávamos com curiosidade o conteúdo das estantes. O chá de ervas era muito suave e tinha realmente um efeito relaxante. Depois de terminar de beber sua xícara, a bruxa decidiu acender um de seus cigarros. É estranho dizer, mas o aroma da fumaça do cigarro não me incomodou, na verdade, me atraiu.
‒ Você vai ver, Dra. Ruggeri, que um dia desses vai fumar um comigo.
‒ Acho que não, nunca fumei em minha vida e não acho que vou começar aos quase quarenta anos. Em vez disso, gostaria de lhe perguntar sobre o significado do pentáculo desenhado nesse piso fabuloso. Estudei simbolismo e símbolos esotéricos, mas aqui vejo alguns com os quais não estou familiarizada. Reconheço o símbolo do espírito, no centro, e as oito linhas que se originam de um ponto e irradiam em direção aos pontos cardeais, os mesmos indicados pela rosa dos ventos.
‒ Muito bem, Doutora. Sei que você é bem versada no assunto. Veja, ainda deve pairar por ali o espírito de minha ancestral Artemisia, queimada na fogueira em um certo dia de 1589. O poste ao qual ela estava amarrada parece ter sido cravado no chão naquele exato local. Os outros símbolos indicam o que aconteceu do ponto de vista astral naquele dia. Era o equinócio da primavera, 21 de março, noite de lua cheia e, naquela noite, houve um eclipse total da lua.
‒ Sim, começo a interpretar os símbolos. Entretanto, pelo que aprendi, as bruxas de Triora não foram queimadas. Elas foram presas, torturadas, julgadas, condenadas, mas a execução nunca ocorreu, pois o Doge de Gênova se opôs.
‒ E esta é a versão oficial, segundo a qual minha ancestral e suas quatro devotadas seguidoras morreram na prisão em Gênova. Mas talvez não tenha sido bem assim. Você é habilidosa e descobrirá a verdade. Não serei eu quem vai lhe contar.
Ela aproximou o rosto e os olhos do meu rosto e soprou a fumaça na minha face. Baixei o olhar, para não olhá-la diretamente nos olhos, e me vi admirando suas pernas perfeitas, esbeltas, alongadas, sem sombra de celulite. Naquele momento, para minha surpresa, senti um forte desejo sexual por ela. Observei seus lábios se aproximarem dos meus e tive vontade de me unir a ela em um beijo apaixonado. Tentei banir os pensamentos que estavam me perturbando e dei um passo para trás para me afastar dela.
Bruxa sedutora, pensei comigo mesma. Mas como ela tem esses poderes?
Nos despedimos dela e voltamos para o carro. O dia estava chegando ao fim da tarde e era hora de voltar para a sede.
‒ Tenho a impressão de que perdi alguma coisa. Olhando para o relógio, vejo que passou um pouco mais de tempo do que eu tive percepção! ‒ eu disse a Mauro assim que saímos.
‒ Só um pouco? Aquela bruxa encantou você novamente. Ela falou com você em um idioma incompreensível, enquanto você a admirava da cabeça aos pés. A certa altura pensei que vocês iriam se beijar. Mas aproveitei a situação para coletar mais alguns itens, que mostrarei a você mais tarde. A bruxa estava tão concentrada em você e nas palavras que recitava que não prestou atenção em mim. Eu poderia ter desabotoado aquela insípida saia jeans, deixando-a só de calcinha, e ela nem teria notado. Agora você dirige, quero começar imediatamente uma pequena pesquisa no computador de bordo.
Assim que soltei a embreagem e pisei no pedal do acelerador, o Lamborghini saltou para a frente como um cavalo empinado, preso pelas rédeas por um cavaleiro inexperiente. Mauro, focado na tela do computador, parecia não fazer caso do meu estilo de dirigir, que, depois de alguns instantes, adaptei às características do carro. Percebi que precisava adotar um ritmo moderado, mantendo o pé direito apenas levemente apoiado no pedal do acelerador, para não causar um aumento brusco de velocidade. Depois de alguns minutos de silêncio, em que Mauro estava concentrado no computador e eu nas curvas da maldita estrada, meu colega soltou uma exclamação.
‒ Bingo! Encontramos algo. A maioria das impressões digitais que recolhi pertencem à anfitriã da casa. Para fins de comparação, obtive sua impressão digital da xícara em que bebi o chá de ervas. Nas bases de dados não há correspondência entre as impressões digitais de Aurora e as de criminosos registrados. E até aqui, eu diria, nada de novo. No entanto, tenho uma impressão digital no vaso de porcelana que contém tabaco e outra na maçaneta da porta da frente que correspondem a indivíduos registrados. E adivinhe só! A primeira é de Larìs Dracu, a mulher romena cujo rastro foi perdido há vinte anos. Na época, a polícia romena havia prendido a jovem como suspeita de sedição e a fichou. Após a queda do regime comunista, os bancos de dados da polícia secreta também se tornaram acessíveis e, portanto, tive acesso a eles. De qualquer forma, o arquivo foi atualizado mais tarde, pois foi relatado que essa mulher havia fugido do país, descrita como uma criminosa perigosa, até mesmo uma assassina em potencial, e fotos dela foram enviadas a todos os postos de controle de fronteira na Europa. As últimas notícias sobre ela remontam ao verão de 1989, quando conseguiu passar debaixo do nariz de um funcionário da alfândega italiana, no aeroporto internacional de Fiumicino, sob o nome falso de Clarissa Draghi. Com um passaporte italiano falso, ela embarcou em um voo para Katmandu. Depois de alguns dias, o funcionário da alfândega, olhando para a foto fixada à sua frente, notou a forte semelhança com a jovem de vinte anos que havia passado por ali e alertou a polícia nepalesa, que iniciou uma busca. No Nepal, foram localizados os sherpas que guiaram ela e sua companheira de viagem até a fronteira chinesa, nos limites da região do Tibete. Os sherpas disseram que esperaram em vão por três dias pelo seu retorno. Portanto, se as duas mulheres não fossem presas pela polícia de fronteira chinesa, elas teriam se perdido nas montanhas, encontrando a morte quase certa.
Distraindo-me um pouco da direção, mas sem permitir que o Lamborghini tomasse as rédeas, soltei uma exclamação.
‒ E, no entanto, morta ela não está, se temos suas impressões digitais aqui depois de vinte anos!
‒ Sim. Mas vamos à outra impressão, que corresponde a um certo Stefano Carrega, o jornalista genovês que desapareceu em 2000 aqui em Triora junto com dois de seus colegas. Nascido em 1949, na década de 1970 ele se matriculou na Faculdade de Letras e Filosofia de Bolonha. Foi preso durante uma manifestação estudantil. Acusado de agressão, violência contra uma colega de universidade, resistência a oficiais e posse ilegal de armas, naquela ocasião ele foi autuado. Ele não tem outros precedentes.
‒ Bem, esses foram os chamados anos de chumbo. Portanto, ele também está na região e mantém contato próximo com a Sra. Della Rosa! Mas temos certeza de que são impressões recentes? E você acha que esses elementos são suficientes para convencer o Dr. Leone a autorizar uma busca na casa de Aurora?
‒ Certamente as impressões não datam de vinte anos atrás, pois já não seriam detectáveis. Duvido que essas pistas sejam suficientes para autorizar uma busca, mas estamos seguindo por um caminho que deve nos levar a algum lugar. Além disso, com meu palmtop, tirei uma foto de uma das estantes, onde há algo que me deixou intrigado. Agora, vou baixar a foto para o meu computador via Bluetooth e a ampliar para observar os detalhes. Há ali uma fresta que sugere algum tipo de porta oculta, talvez uma passagem secreta. Tentei puxar ou empurrar a estante, mas nada aconteceu.
‒ Deve haver um mecanismo que somente Aurora conhece! Imagine se pudesse ser assim tão simples!
‒ Sim, talvez, ou talvez não haja nada e seja apenas minha impressão. A última coisa que notei, enquanto você estava em transe na frente dela, foi um notebook ligado. Tive que me segurar para não colocar um pen drive USB nele para baixar os dados. Não realizei minha intenção apenas por medo de que, a qualquer momento, Aurora se virasse e me surpreendesse. Mas consegui descobrir que o computador está conectado à rede por meio de uma linha ADSL da Telecom e consegui memorizar tanto o endereço IP quanto a ID do computador, então não deve ser difícil acessar os dados através de um computador remoto.
‒ Antes de avançar sobre Aurora, o que pode ser prematuro, quero concluir meu exame de todos os elementos que temos à nossa disposição, mas, acima de tudo, quero visitar os três outros lugares que ainda não tivemos a chance de observar: o Lago Digno, a Fonte de Campomavùe e a Rua Atrás da Igreja. Tenho certeza de que poderemos encontrar algumas surpresas.
Continuei dirigindo com cautela o bólido, que, nas mãos de Mauro, por outro lado, disparava como um raio, até chegar ao distrito. Quando vi a van da Polícia Canina de Ancona estacionada em frente, meu coração deu um pulo. Estacionei e saí correndo do carro, procurei o motorista do veículo e finalmente encontrei seu rosto sorridente.
‒ Agente Bernardini! Você me trouxe o Fúria? Finalmente! Onde está? Ainda dentro da van?
‒ Boa noite, Doutora, e parabéns, embora eu veja que você está ainda pior do que quando trabalhava com nossos cães. Mas de onde está vindo, de uma jornada de guerra, de um teste de sobrevivência? Não, o seu Fúria não está na van, eu o coloquei na baia no pátio, já o alimentei e deixei água disponível. Você o encontrará em perfeita forma! Agora, se você não se importa, vou descansar um pouco antes de pegar a estrada de volta.
‒ Eu lhe agradeço, oficial, e mande lembranças a todos em Ancona.
‒ Claro! Sentimos muito sua falta, Doutora. Até logo!
Eu me lembrava bem do dia em que o inspetor Santinelli, que também era caçador, trouxe consigo um filhote de springer spaniel, filho de uma de suas cadelas.
‒ Eu testei esse cão, ele tem um faro excepcional, mas tem um grande defeito: tem medo de tiros, portanto não é adequado para a caça. Você, Caterina, não tem seu próprio cachorro. Ele tem seis meses, é um macho, está em perfeito estado de saúde e regularmente vacinado. Eu o chamei de Fúria, porque ele está sempre ativo, nunca se acalma, enfim, é um verdadeiro terremoto. Fique com ele, tenho certeza de que, com suas habilidades, você transformará esse cão em um verdadeiro fenômeno!
Aceitei o desafio e coloquei Fúria na única baia vazia. Eu sabia que trabalhar com um cão assim não seria fácil, mas, depois de alguns meses, consegui domar sua exuberância. Eu o ensinei a obedecer a comandos simples, que ele aprendeu sem dificuldade, e depois me dediquei a trabalhar em seu olfato.
Também levei Fúria para ser examinado por Stefano, que confirmou que ele era um cão perfeitamente saudável, resistente ao esforço físico e com um faro excepcional.
‒ Você verá que ele lhe dará enorme satisfação! Esse deve ser o seu cão, não o confie a mais ninguém e você verá como ele se tornará um campeão!
E, de fato, Fúria me daria grande satisfação e eu jamais me separaria dele por qualquer motivo. Foi por isso que, antes da partida, como eu não tinha intenção de fazê-lo viajar dentro do porão de um avião, eu tinha organizado uma viagem separada para ele, com a cumplicidade de um dos meus colaboradores de confiança da unidade canina.
Naquele momento, não pude deixar de correr direto para o pátio e sofrer as comemorações e lambidas afetuosas de Fúria. Eu me joguei no chão e deixei que ele subisse em cima de mim, abraçando-o e rolando com ele na brincadeira, o que me deixou ainda mais suja do que já estava.
Ao subir as escadas, ao longo dos corredores, recebi vários olhares, espantados com a minha aparência. Laura me veio ao encontro, com um maço de papéis na mão, que continha o resultado de sua pesquisa. Mauro, por outro lado, me informou que os primeiros resultados da autópsia já estavam prontos, que a legista precisava falar comigo sobre isso e que também estavam disponíveis os resultados dos exames forenses.
‒ Deem-me um momento para me arrumar. Vejo vocês em dez minutos no meu escritório.
Eu me refresquei rapidamente, troquei as roupas imundas e entrei no meu quarto ainda com a intenção de terminar a maquiagem, observando meu rosto no espelho do estojo de blush. Em um determinado momento, notei, refletida no espelho, a escrita que eu havia traçado no grande quadro branco naquela manhã.
‒ É claro, como eu não pensei nisso antes? ‒ foi minha reflexão. ‒ OAMOLAS ED SOVRES, lido da direita para a esquerda, torna-se SERVOS DE SALOMÃO. Portanto, a seita se refere ao Rei Salomão, um dos pilares da religião judaica.
A bruxa havia deixado escapar algo sobre Salomão durante a primeira de nossas conversas, mas eu não aprofundei o assunto, porque achei que ela estava me enganando. Talvez eu devesse ter deixado ela falar. Lembro-me bem de que um dos textos mais importantes citados pelas seitas esotéricas é “A Chave de Salomão”. Naquele momento, o telefone tocou. Era a Dra. Banzi, a médica legista, que estava procurando por mim.
‒ Desculpe-me, Comissária, mas devido ao adiantado da hora e ao fato de que, apesar das minhas mensagens, você não me ligou de volta, pensei em tentar novamente antes de ir para casa. Eu lhe enviei um relatório inicial da autópsia, mas queria falar diretamente com você.
‒ Então me diga. O que você descobriu interessante?
‒ A vítima era uma mulher entre trinta e cinco e quarenta anos e morreu em decorrência do fogo. A fuligem em seus pulmões prova que ela estava viva quando seu corpo foi incendiado.
‒ Resumindo, ela foi queimada viva. Que fim horrível!
‒ Não foram encontrados outros ferimentos no corpo, então presumi que ela foi atordoada com sedativos ou drogas, e saberemos isso nos próximos dias, se conseguirmos detectar algum resíduo no exame dos rins e do fígado. O fato de o cadáver estar carbonizado torna tudo mais difícil. Mas temos um elemento, talvez o único, que pode nos levar à identidade da vítima. Embora a pele tenha sido muito alterada pelo fogo, na perna direita, na parte interna da panturrilha, logo acima do tornozelo, é possível notar a presença de uma tatuagem. Liguei para seus colegas forenses para ver se era possível, com seus métodos, visualizar o desenho original. Eles tiraram algumas fotos e me disseram que iriam trabalhar nisso. Então eles vão avisar você. Isso é algo que você não vai encontrar em meu relatório, mas eu queria lhe contar. Até breve, Doutora, e boa noite!
‒ Obrigada por tudo e tenha um bom descanso.
Um depois do outro, Mauro e Laura entraram em meu escritório.
‒ Mauro, já conheço os resultados da autópsia e falei com a legista. Alguma coisa interessante sobre as descobertas forenses?
‒ Diria que sim. O líquido inflamável com que o incêndio foi iniciado é óleo de lamparina, uma substância incomum, não muito utilizada. Para estas lamparinas, antigamente se usava azeite como combustível, hoje se utiliza um derivado do petróleo de baixa densidade, que produz menos fumaça. São poucas as empresas que o produzem e será fácil verificar se alguma delas vendeu uma certa quantidade aqui na região. O outro elemento interessante é a tatuagem. Usando a espectrografia computadorizada, a equipe forense conseguiu visualizar uma tatuagem na perna direita da vítima. Ela retrata três livros dispostos lado a lado, envoltos em chamas. Uma peculiaridade? Sabemos que Mariella, A Ruiva, a garota que desapareceu em 1997, tinha uma tatuagem idêntica na mesma área de sua perna direita!
‒ Portanto, como eu imaginava, há uma conexão entre as duas. E você, Laura, o que tem a relatar?
‒ Trabalhei muito e encontrei algo interessante. Fui a Triora, primeiro ao cartório e depois ao Museu das Bruxas. Infelizmente, não consegui obter muitas informações no cartório, pois ele só foi informatizado há alguns anos e os antigos arquivos em papel foram destruídos mais de uma vez por incêndios ou outros desastres, naturais ou não. Sabe-se que a velha Aurora Della Rosa nasceu em 21 de março de 1929. Os arquivos daquele ano foram destruídos por esquadrões fascistas que atacaram o oficial de registro da época, pois este se declarou antifascista e se recusou a aderir ao partido de Mussolini. O expurgo para ele foi inevitável, e até mesmo seu escritório foi destruído. O que não está escrito, mas que todos em Triora sabem, é que Aurora tinha o mesmo nome e sobrenome de sua ancestral, a filha de Artemisia De La Rose, bruxa que foi julgada no final do século XVI junto com suas companheiras de Ca Botina. De geração em geração, as primogênitas da família receberam o nome da avó e, assim, o nome Artemisia se alternou com o de Aurora. Mas o mais incrível é que essas mulheres, ao longo do tempo, sempre mantiveram o sobrenome da mãe, porque nunca houve um pai que as reconhecesse. Teoricamente, em 1949 deveria ter nascido uma Artemisia Della Rosa, da qual nada se sabe. Naquele ano, coincidentemente, eclodiu um incêndio na floresta ao redor de Triora, destruindo algumas casas da vila e, mais uma vez, o arquivo municipal também foi perdido. Em 1969, ou por volta disso, de acordo com meus cálculos, deve ter nascido a Aurora Della Rosa que conhecemos. Os arquivos de registro civil de 1969, 1970 e 1971 desapareceram e o atual oficial do registro civil explica que 1971 foi um ano particularmente chuvoso, algumas salas do município foram inundadas e muitos documentos não puderam ser recuperados de forma alguma. Os idosos do vilarejo se lembram de Aurora com uma barriga de gravidez entre o final de 1948 e o início de 1949. Havia rumores de que a bruxa havia tido relações com o demônio durante um dos Sabbaths noturnos. O fato é que, no final da gravidez, ela se retirou para uma caverna na floresta. Ela só reapareceu na aldeia depois de alguns meses e sem nenhum filho consigo, tanto que se dizia que ela havia tido um filho homem e, conforme a tradição familiar exigia, havia sacrificado o menino ao seu deus antes que ele atingisse o sexto mês de vida. Em 1989, aos sessenta anos, Aurora desapareceu e, algum tempo depois, apareceu sua neta homônima. A incrível semelhança com a avó fez com que os mais imaginativos pensassem que Aurora havia encontrado uma maneira, por meio de alguma magia, de rejuvenescer, e que a pessoa que se apresentava como sua neta era, na verdade, ela mesma. Outros aventaram a hipótese de que, quarenta anos antes, a bruxa não havia matado o fruto de seu ventre, mas o mantivera escondido ou o mandara para viver longe de Triora, até porque o cadáver da criança nunca foi encontrado. O hipotético filho, ou filha, de Aurora teria então gerado a Aurora que apareceu em 1989. O fato de uma garota de vinte anos ter chegado da Romênia na mesma época, e depois ter partido com a Aurora de sessenta anos, fez alguém pensar em uma hipótese muito bizarra, que não foi confirmada por nenhuma evidência. Alguns dizem que a filha da velha Aurora, se respeitarmos a tradição e dissermos que ela era uma menina e talvez se chamasse Artemisia, de alguma forma, com a ajuda de alguém, chegou à Romênia e se estabeleceu na Transilvânia. Aos vinte anos, ela deu à luz gêmeas, Aurora e Larìs, que no final da década de 1980 decidiram retornar à Itália, livrando-se de sua velha avó. Primeiro veio Larìs, que a velha bruxa não poderia reconhecer como sua própria neta, pois ela tinha cabelos escuros e características físicas muito diferentes dos membros de sua família. A garota convenceu a idosa a fazer a peregrinação ao Tibete, onde ela perdeu a vida. Assim, a jovem Aurora teria recebido luz verde para tomar posse da casa da família. Depois de muito tempo, evitando regressar à Itália de avião e enfrentando uma longa viagem por terra, Larìs também retornou discretamente a Triora e se reuniu com sua irmã gêmea. O fato é que a loira Aurora já foi vista diversas vezes na companhia de sua atraente colega morena. Mas, repito, esses são rumores, contados na aldeia por alguns aldeões imaginativos.
‒ Bem, Laura. Essa história das gêmeas, na verdade, não é muito crível em minha opinião. E o que você pode me dizer sobre os julgamentos das bruxas?
Eu havia lido resumidamente a versão oficial do julgamento, conforme relatado nos quadros expostos ao público dentro do Museu das Bruxas de Triora. Na prática, o julgamento terminou com a condenação das cinco bruxas, Artemisia e as outras quatro, que haviam sido salvas pelo Doge de Gênova, mas que morreram de fome durante o seu encarceramento nas prisões genovesas. Mas eu estava mais interessada na versão não oficial, contada pela minha inteligente colaboradora.
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Polícia Militar Italiana (nota da tradução).