Atração De Sangue
Victory Storm
Victory Storm
Atração de Sangue
Victory Storm
Copyright ©2019 Victory Storm
Email: victorystorm83@gmail.com
Sito web: www.victorystorm.com
Editore libro tradotto: Tektime
Tradutor (de italiano para português): Silvia Rodriguez
Capa do livro: Festball © ISO K° by Fotolia.com
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do livro pode ser reproduzida ou divulgada por qualquer meio, fotocópia, microfilme ou outro, sem a permissão do autor.
Este livro é um trabalho de fantasia. Personagens e lugares mencionados são invenções do autor e destinamse a conferir veracidade à narrativa. Qualquer analogia com fatos, lugares e pessoas, vivos ou mortos, é absolutamente aleatória.
Atração de Sangue
TRILOGIA DE SANGUE #1
Victory Storm
Tradutor: Silvia Rodriguez
Quando todas as tuas certezas desaparecem e não sabes mais quem és,
só te resta fugir. Fugir deles e da sua sede de sangue…
O teu sangue!
Vera acabou de descobrir a existência de vampiros e agora tem que escapar. Numa fuga entre Dublin e Londres, Vera torna-se a presa de uma espécie sanguinária e feroz, porque no seu sangue esconde-se a arma para destruir a raça vampírica. A persegui-la está Blake, um dos vampiros mais antigos e fortes do mundo, mas um estranho destino lhes está reservado. Aquele que devia ser um confronto entre o bem e o mal resultará numa estranha e explosiva atração que mudará os rumos das suas vidas, revelando os segredos que se escondem no passado de ambos.
PRÓLOGO
16 de novembro de 2018
«Vera Campbell.»
Acenei com a cabeça em concordância.
«Dezassete anos. Cabelos e olhos castanhos, rosto pálido, não particularmente alta, demasiado delgada... Em resumo, insignificante» comentou a madre superiora com um tom carregado de desprezo, fazendo deslizar o olhar sobre o meu corpo em pé, diante dela, tenso como uma corda de violino.
A enésima punhalada nos confrontos do meu físico pouco vistoso. Já o sabia, ouvi-lo dizer tornava a coisa ainda mais óbvia e brutal.
«Das notas do teu último boletim escolar, parece-me que por baixo do aspeto físico também exista muito pouco» continuou a freira com voz severa e maligna, folheando o meu fascículo pessoal que cobria a sua poderosa secretária.
«Verdadeiramente, nunca tive uma insuficiência no boletim escolar e esforço-me...» protestei. Tudo bem que eu era desagradável à vista, mas ignorante não!
Para além disso, não era culpa minha se tinha faltado muitas vezes às aulas por causa da minha saúde.
«Por acaso, disse-te que podias falar?» gritou a mulher cheia de indignação.
Senti-me desfalecer. Há quase vinte minutos que permanecia ali, em pé, em tensão, perante a reitora do colégio católico, onde passarei, de certeza, ao menos os próximos dois meses, longe da minha tia Cecília, o meu único verdadeiro ponto de referência. Sem contar tudo aquilo que passei nos últimos dias, nem com o verdadeiro motivo daquela estadia forçada!
«Órfã de mãe. Pai desconhecido. Confiada à guarda de Cecília Campbell, uma freira que abandonou o hábito para tomar conta da sobrinha. Mmh... Aqui diz também que estás doente... Uma forma muito rara de anemia» Leu a madre superiora numa outra folha com um tom de puro desprezo.
Pareceu-me receber uma bofetada em plena face. Não estava habituada a provocar repugnância quando se falava da minha saúde. Geralmente, era rodeada de carinho e compreensão.
«Tem aqui até mesmo uma recomendação em relação à tua dieta. Rica de proteínas e muita carne de porco ou bovina, mal passada. Nada de aves» comentou a mulher, como se estivesse prestes a vomitar.
Não consegui concordar. Sentia-me o alvo principal daqueles olhos cinzentos, que pareciam querer atravessar-me como punhais.
«Como se não bastasse aqui está escrito também que deves beber, pelo menos uma vez por mês, 50 cl de liquido retirado do sistema arteriovenoso de porcos ou bovinos... Onde já se viu! Beber sangue animal? Isto é escandaloso!» deixou escapar a reitora, com o rosto todo vermelho de repulsa, continuando a ler o meu processo, no qual, aparentemente, alguém se tinha dado ao incómodo de escrever sobre mim e sobre a minha vida.
Apetecia-me responder-lhe que aquele era o único modo para manter-me viva e que a minha tia tinha feito mil sacrifícios para salvar-me, depois que lhe fui confiada após a morte da minha mãe, que faleceu pouco depois do parto.
Para além disso, a minha tia dizia sempre que beber sangue não era assim tão chocante, pois em certos países do oriente era habitual beber o sangue quente de cobra para combater os reumatismos logo, não era uma coisa assim tão estranha.
«O teu médico não sabe que hoje em dia existem as transfusões?».
«Sim, mas infelizmente descobriu-se que para haver benefícios mais imediatos e prolongados no tempo, o meu organismo reage melhor quando também está envolvido o aparelho digestivo» sussurrei, tropeçando nas palavras. Nem mesmo eu tinha percebido verdadeiramente o motivo pelo qual as transfusões não me fortaleciam tanto quanto beber a minha “hemodose”, como lhe chamávamos a minha tia e eu.
Às vezes, a anemia conseguia enfraquecer-me a ponto de perder os sentidos. Bastava o meu “remédio” e rapidamente recuperava a minha audição e vista perfeitas e a sensação de fadiga, que sentia anteriormente, desaparecia por completo.
A madre superiora emitiu um longo suspiro, deixando-se afundar na poltrona dura e negra, sobre a qual estava confortavelmente sentada, enquanto eu nem sequer tinha tido a autorização para me sentar.
«Se estás aqui, é só porque o cardeal Siringer me pediu pessoalmente, mas quero deixar bem claro que isto não é um refúgio para desadaptados, mas um ilustre colégio, que segue e respeita a vontade do Senhor».
O padre Dominick já me tinha falado daquele prestigioso colégio, antigo castelo de Melmore, que se erguia sobre as ruínas sagradas da Melmore Abbey, uma das abadias mais antigas e que resistiu às diversas guerras na Irlanda. Sabia que ali estaria segura, mas naquele momento sentia-me numa prisão escura e fria. Até o clima me era adverso. O inverno estava a chegar e sabia que por muito tempo não voltaria a ver o sol. Para além disso, aquela zona era muito propícia a precipitações e muros de neblina.
Se quisesse sobreviver, tinha que encontrar alguma coisa bela, caso contrário enlouqueceria.
«Bem. Podes ir. Encontrarás a Irmã Agatha que te acompanhará ao teu quarto, onde estarão dois uniformes que deves vestir sempre, uma roupa de ginástica e o horário das aulas, que deves começar a frequentar a partir de amanhã de manhã.
Tens uma hora para guardar as tuas coisas e dirigir-te à igreja para a missa. Sê pontual» dispensou-me a madre superiora com um aceno de mão.
Fiz tanto esforço a mover-me e a voltar-me que tive a impressão que tinha criado raízes.
Não disse nada, voltei-me, abri a porta pesada e saí.
Mal cruzei a saída do escritório, aproximou-se nervosamente de mim uma freira de meia-idade, que tinha ficado todo aquele tempo à minha espera no exterior, sentada numa cadeira cor de nogueira escura. «Sou a Irmã Agatha. Tu deves ser a Vera Campbell, a recém-chegada. Vem. Acompanho-te ao teu novo quarto, o qual dividirás com a Maria Kelson, uma tua coetânea. É um pouco tímida, mas muito devota ao Senhor… Não me surpreenderia se no futuro decidisse fazer os votos» explicou a religiosa absorvida pelos seus pensamentos. À minha volta, abriam-se corredores e escadas de pedra frios e húmidos. O silêncio que reinava naquele lugar era arrepiante.
Escutava apenas o rumor dos nossos passos. Parecia que tinha sido improvisadamente projetada para outra época. Sinceramente, não acreditava que lugares como aquele pudessem ainda ser habitados e, muito menos, usados como colégio para jovens.
Continuava a olhar em meu redor chocada. À direita encontravam-se janelas estreitas e altas, de aspeto gótico, que tornavam a atmosfera ainda mais sinistra. Fiquei tão impressionada com a austeridade daquele lugar, que mal escutava as palavras da freira, que continuava a falar mecanicamente: «Depois das novas leis acerca da integração, também o nosso colégio teve que se adaptar, assim esta instituição é aberta tanto ao sexo masculino, como ao sexo feminino. No rés-do-chão estão as salas de aula, o ginásio e o refeitório, enquanto no segundo piso fica o dormitório. A ala oeste é reservada ao sexo masculino e a ala este às miúdas.
No terceiro piso, como pudeste notar, situam-se os diversos escritórios e os quartos privados dos professores, para além de uma grande biblioteca, à qual poderás aceder apenas com a autorização da Irmã Elizabeth. A capela ocupa a inteira ala a norte, mesmo em frente às hortas e aos estábulos.
Para chegar a estes é necessário sair e dar a volta ao colégio.»
A Irmã Agatha continuava a falar com o seu tom plano mas vigoroso. Também ela não parecia particularmente gentil ou calorosa. Seria possível que ninguém mostrasse um pouco de compaixão perante as novas reclusas?
«Recorda-te também que nos corredores não se grita, não se corre e deve-se respeitar os horários. O pequeno-almoço é às 7h00, o almoço às 12h00 e o jantar às 19h00, depois da missa das 18h00. Lembra-te de usar sempre o uniforme da escola quando saíres do quarto e de nunca deixar os teus pertences pessoais espalhados pelo quarto ou te serão apreendidos e jogados fora».
Aquela não era uma prisão, mas pior!
Descemos as escadas, percorremos um longo corredor para depois virar à esquerda e metermo-nos num outro corredor sombrio com paredes húmidas e escuras. Sentia a humidade penetrar-me nos ossos e um cheiro a mofo enchia-me os pulmões, fazendo-me sentir náuseas.
«Este é o dormitório. O teu quarto é a terceira porta à direita. O banho fica ao fundo. Prepara-te que daqui a cinquenta minutos vamos rezar» concluiu a irmã, antes de ir embora.
«Obrigada» sussurrei, mas da minha boca saiu apenas um pequeno sopro inconsistente.
Percorri sozinha os últimos metros e abri aquela terrível porta de madeira escura com a maçaneta preta, que escondia o meu quarto. Bastou-me uma rápida olhadela: duas camas, duas mesinhas de cabeceira, dois armários para conter o mínimo indispensável, duas pequenas mesas com duas cadeiras e um enorme crucifixo ao centro.
A minha mala e algumas roupas estavam sobre a cama da esquerda, enquanto na cadeira ao lado da cama da direita, estava sentada uma rapariga atenta a ler o livro “Nas mãos de Deus”.
«Olá, sou a Vera Campbell, a tua nova companheira de quarto. Tu deves ser a Maria?» tentei dialogar.
A rapariga levantou os olhos do livro e acenou com a cabeça sorridente.
Tinha o rosto redondo e sardento. Os cabelos castanho claros estavam apanhados em uma cauda de cavalo e os olhos verdes pareciam gentis.
Usava o uniforme que, brevemente, também eu teria que vestir: um fato azul de corte muito sóbrio e com o desenho da abadia bordado no bolso do peito e uma camisa branca.
O meu primeiro pensamento foi que o azul não me ficava bem, mas estava demasiado cansada para preocupar-me com isso.
Lentamente, abri a mala. Continha apenas o mínimo indispensável que consegui trazer de casa, antes da fuga inesperada que tive que fazer.
Por cima do monte de vestidos, coloquei uma foto minha e da tia Cecília abraçadas em frente à cancela da quinta.
Ver aquela imagem fez-me coçar os olhos.
Quanto me fazia falta!
Gostava que tivesse estado ali comigo!
Seguramente nunca teria permitido que alguém se dirigisse a mim da forma como tinha apenas acabado de o fazer a madre superiora.
Posei a foto sobre a mesa-de-cabeceira. Queria-a por perto, na medida do possível.
«Desculpa, mas é melhor que guardes aquela foto na gaveta da mesa-de-cabeceira, caso contrário, amanhã será deitada fora» disse-me a Maria, aproximando-se de mim.
«Mas eu...».
«Eu sei, eu sei. Também me aconteceu o mesmo... e na manhã seguinte a foto da minha avó não estava mais aqui. Acredita em mim» assegurou-me com voz cândida.
Com um suspiro desconsolado, guardei a foto. Era demasiado preciosa para permitir que alguém a jogasse no lixo.
Ordenei os vestidos e os objetos pessoais.
Estava prestes a guardar a mala, quando me dei conta que faltava alguma coisa.
O estojo de maquilhagem.
«O meu batom, a minha máscara, as minhas sombras... desapareceram!» gritei indignada.
Olhei a Maria.
Ela limitou-se a encolher os ombros e explicou-me: “Perdidos! As freiras controlaram-te a bolsa, como fazem sempre às recém-chegadas e deitaram-te fora aquilo que aqui não te serve».
Queria gritar! Não tanto pelos cosméticos deitados fora, mas porque detestava as pessoas que vasculhavam nas minhas coisas privadas!
Praticamente no limite das minhas forças, mudei de roupa perante o olhar embaraçado da Maria, que voltou a ler sentada na sua cadeira.
Tinha razão: o azul não me ficava particularmente bem!
Olhei para o relógio. Tinha ainda vinte minutos antes da missa. Dei mais uma olhadela ao quarto.
Tinha as paredes acinzentadas e os móveis cor de nogueira escura.
Resumindo, deprimente. Como tudo o resto.
Atirei a mala ao chão e joguei-me sobre a cama.
Queria apenas esquecer. Fechei os olhos.
A imagem de dois olhos cor de gelo que me atravessavam surgiu imediatamente na minha mente.
Uma série de arrepios percorreu-me toda a coluna.
Vacilei de medo.
Ele outra vez! Era um tormento. Era culpa sua se me encontrava ali.
Estava tão cansada! Queria tanto ouvir a voz da minha tia Cecília que me tranquilizava, como fazia sempre que alguma coisa corria mal.
Tentei pensar nela e visualizar mentalmente o seu rosto sorridente, mas não consegui afastar aqueles terríveis olhos azuis.
Finalmente, sem aperceber-me, adormeci.
Estava exausta e incapaz de ver o meu futuro.
Há apenas um mês, a minha vida tinha sido interrompida e agora não sabia mais quem era nem para onde ir.
Tudo tinha mudado.
VISITAS
4 de outubro de 2018
Quatro em biologia.
Não podia mostrar aquela má nota à tia Cecília.
Há um mês que continuava a repetir-lhe que ia recuperar da insuficiência que tive na outra vez e em vez disso...
Sabia que não se ia zangar, mas não queria dar-lhe um desgosto, uma vez que ela me ajudou a estudar para o teste.
O autocarro parou em frente à quinta, pouco antes do fim do Caminho das Quatro Cruzes, que ficava ao pé do espesso pinhal de Landskare.
«Terminal» gritou-me do lugar do condutor Joshua, o motorista, distraindo-me das minhas preocupações.
«Obrigada. Vemo-nos amanhã» cumprimentei-o distraída.
«Até amanhã, Vera».
Poucos metros e cruzei o portão da quinta.
Vi Ahmed, o nosso velho faz-tudo tunisino, tentando reunir as galinhas na capoeira.
«Ahmed, olá! Como foi o teu dia?» perguntei-lhe amavelmente.
O homem soltou um grunhido.
«Frio húmido e dor de costas» respondeu Ahmed.
Foi sempre um homem de poucas palavras. Depois de dez anos de convivência, já tinha percebido que adorava estar comigo e com a tia, mas detestava o clima chuvoso irlandês, que lhe causava frequentemente qualquer dor nos ossos.
«Vamos lá, digo à tia para preparar-te a habitual compressa, que te dá sempre tanto alívio» consolei-o.
Ahmed sorriu-me com gratidão.
Sem dizer mais nada, atravessei a porta da entrada de casa.
Perfume de tarte de maçã. A minha preferida.
Isto significava duas coisas: a primeira, que eu não podia contar à minha tia acerca da minha má avaliação para não estragar o dia e a segunda, que em casa estava o padre Dominick, o padre mais simpático e generoso do mundo.
Ele também adorava tarte de maçã por isso, a tia Cecília preparava-a sempre que ele nos fazia uma visita.
Tirei os sapatos, o casaco e a mochila à entrada e dirigi-me ao salão, onde a minha tia conversava divertida com o padre Dominick.
«Olá.»
«Vera, tesouro, vem. Esperávamos por ti para o chá» convidou-me a tia com a sua voz mórbida e doce, que ponha sempre todos à vontade.
«Vera, olá. Passou apenas um mês desde a última vez que te vi, mas parece-me que estás mais crescida» cumprimentou-me o padre.
«Se crescesse pelo menos um centímetro todas as vezes que mo diz, agora teria quase três metros de altura» respondi rindo.
Também Dominick soltou uma estrondosa risada.
Ele nunca se ofendia perante as minhas piadas e a tia já não lhes dava importância.
Depois chegou o lanche. A tia serviu o chá e a tarte de maçã.
Mal afundei os dentes no doce perfumado, senti-me logo melhor, até que me engasguei por causa da pergunta da minha tia.
«Como correu a escola?» perguntou-me.
«Bem».
«O professor Hupper entregou-te o teste de biologia?».
Será possível que a minha tia nunca se esqueça de nada?
Como fazia para ter sempre a mínima coisa sob controlo?
«Não» menti, procurando concentrar-me no aroma do chá.
Ainda estávamos a acabar de lanchar, quando tocou o telefone.
«Eu vou lá. Será seguramente o Duncan McDowell acerca da história do gado que comprei antes de ontem» pensou a tia em voz alta.
Apenas a tia se afastou (era mesmo o Duncan McDowell ao telefone), o padre Dominick dedicou-me toda a sua atenção.
«E então, como estás?» perguntou-me com um olhar sério.
«Bem».
«Pensaste naquilo que te disse da última vez acerca do amor de Deus?».
«Sim, mas já te disse que tenho dúvidas acerca da justiça do Senhor. Neste mundo existem muitas coisas erradas. Eu não vejo todo esse amor de que fala».
«Está dentro de nós».
«Sim, mas então porque tantas pessoas cometem pecados? Sem contar que muitas vezes os mais afortunados são aqueles que menos merecem» me enervei.
O padre rendido sacudiu a cabeça. Há já alguns meses que me falava de amor, misericórdia e justiça divina e eu continuava a trazer à baila episódios de injustiça quotidiana ou de guerras.
«Então, tu nunca cometes pecados?».
Aqui está, tinha chegado o momento da confissão.
«Não, nunca» desafiei-o.
«É já pecado dizer uma frase deste género» repreendeu-me.
«Pois. Ao menos agora posso dizer-te que menti, logo pequei» fiz troça dele.
O padre olhou-me confuso por um instante.
«É tudo?».
«Na verdade, também roubei dinheiro à minha tia para comprar cigarros, depois bati numa colega minha e por fim, também copiei no teste de biologia» concluí divertida ao ver a expressão chocada sobre o rosto do Dominick.
Não consegui controlar o riso e isto tranquilizou muito o velho padre.
«Fizeste isto tudo?» murmurou hesitante.
«Mas achas que eu posso fumar com todos os problemas que tenho devido à minha anemia? Para além disso, nunca poderia roubar dinheiro à minha tia, que já faz mil sacrifícios para manter-nos. A renda que recebe mensalmente mal chega para nós e estamos com um atraso de duas semanas relativamente ao pagamento de Ahmed» esclareci com voz firme.
«Mas bateste realmente numa colega tua?».
«Nem de perto, apesar de não te negar que gostaria de o fazer. Patty Shue é a pessoa mais repugnante do mundo. Só porque é bela e simpática acredita que é superior aos outros» deixei escapar.
«Já te disse que deves ignorar aquela rapariga».
«Sim, mas não o consigo fazer, pois chateia-me sempre. Diz que sou cadavérica. Imagina o comportamento dos meus companheiros masculinos quando me veem na sua presença. Um fantasma meteria menos nojo!».
«Esquece-a».
Soltei um grande suspiro irritada. Bastava-me falar de Patty Shue para ficar de mau humor.
«Pelo menos diz-me se é verdade que copiaste no teste» perguntou-me, tentando mudar de discurso.
«Não, na realidade tive um quatro» confessei aflita.
«A tia já sabe?»
«Não sei como dizê-lo. Penso que desta vez, vou fazer de conta que não aconteceu nada» planeei.
«Vera» voltou a olhar para mim com o olhar carregado de crítica.
«Estou a brincar».
«Fizeste mais alguma coisa, por acaso?».
«Na realidade, sim» sussurrei com um fio de voz.
«Que coisa?».
«Anteontem, fiz uma hemodose às escondidas».
O padre Dominick permaneceu petrificado pelo choque.
«Já não te chega uma dose a cada vinte dias?» perguntou-me preocupadíssimo.
«Sim, mas ultimamente esforcei demasiado o meu organismo e dei por mim com as energias baixas. Na escola tivemos um substituto de motora, que não conhece o meu problema, por isso fez-me fazer um monte de exercícios cansativos».
«Mas porque não lhe disseste?».
«Ia dizer-lhe, mas depois aquela idiota da Patty Shue começou a gritar para a professora que a “doentinha”, ou seja, eu não podia fazer isto e aquilo e fiquei irritada.
Queria mostrar que podia fazê-los!»
«Fizeste asneira!».
«Tu não compreendes! De qualquer forma, a culpa do meu enfraquecimento também foi minha, porque anteontem de manhã perdi o autocarro e, uma vez que a tia já tinha saído com o Ahmed para a quinta dos McDowell comprar gado, andei cerca de cinco quilómetros a pé. Cheguei à escola com uma hora de atraso, mas não me arranjaram problemas porque contei que não me senti bem pelo caminho».
«Imagino que a tia não saiba nada de toda esta história» comentou o padre consternado.
«Não. Só o Ahmed sabe, porque viu que eu estava mal e contei-lhe o que me aconteceu» terminei.
Entretanto a tia voltou ao salão com um grande sorriso estampado no rosto.
«Do que estavam a falar?».
«Nada» exclamamos em coro.
«Bem, ao contrário eu tenho uma esplêndida notícia para a Vera. Ao falar com o senhor McDowell, soube que o seu filho Ron, é muito bom em ciências, por isso, perguntei-lhe se estava disposto a dar-te explicações» revelou satisfeita a tia.
«Fizeste o quê?» explodi furiosa. Ron era um verdadeiro cérebro da matemática e das ciências, mas era presunçoso e intratável por causa do seu hálito com cheiro a ratos mortos.
«Ouviste muito bem e ao que parece precisas muito delas, uma vez que me contou que, depois do teste de ontem, ficaste com uma média de três e meio» sussurrou a tia.
Presunçoso, intratável e traidor! Maldito.
Como se permite revelar a minha nota à minha tia?
Eu não disse ao seu pai que o filho tinha uma necessidade extrema de rebuçados para refrescar o hálito.
Estava furiosa.
«Quando pensavas dizer-me que o último teste também tinha corrido mal?»
«Não sei. Talvez numa outra vida» procurei brincar, mas a minha tia não parecia estar com muito sentido de humor.
Não resisti a olhar o padre Dominick, que se ria a bom rir com a típica expressão “eu te avisei!”.
Dei-me conta que era hora de sair em retirada.
«Então, vou estudar» despedi-me timidamente.
«É melhor» disse de novo a minha tia com tom de ameaça.
«Bem. Então, adeus e boa continuação sem mim» dirigi-me a Dominick.
«Até à próxima. Adeus, Vera» cumprimentou-me o padre, abraçando-me.
Peguei na minha mochila e noutra fatia de tarte e fui para o meu quarto, que ficava no piso superior, para refletir.
Posei a bolsa sobre a secretária vazia.
Como gostaria de ocupá-la com um belo computador, mas infelizmente não podíamos permiti-lo.
Troquei de roupa, tentando abrir com cuidado a porta estragada do guarda-roupa, na esperança que o Ahmed conseguisse repará-la, e sentei-me sobre a cama pensativa, mastigando as últimas migalhas de tarte.
O relatório de história que devia fazer para o dia seguinte podia esperar. Naquele momento tinha definitivamente de encontrar um modo para livrar-me do Ron. Antes morta que fazer uma hora de biologia com ele.
Podia dizer-lhe que a minha doença era contagiosa.
De certeza que uma coisa deste género o faria fugir rapidamente.
Estirei-me sobre a cama e comecei a planear mil soluções para evitar o Ron e, já que ali estava, para destruir aquela bruxa da Patty.
Por fim, adormeci e não pensei em mais nada.
Quando acordei era quase hora de jantar.
Como tinha a garganta a arder, decidi ir à cozinha beber um pouco de sumo de toranja que tinha aberto de manhã para o pequeno-almoço.
Ia a descer as escadas quando ouvi a voz do padre Dominick.
«…hemodose?».
«Sim, sabia-o. O Ahmed contou-me. Só se sentiu mal, não creio que seja nada de grave. Pareceu-te mudada?» comentou a minha tia.
«Não, de tudo, mas a Ordem já a tem debaixo de olho. Continuam a pedir-me relatórios atrás de relatórios e frequentemente, vem cá alguém para ver como está a situação. Ao que parece, pelo que percebi, chegam até a fazer-se passar por substitutos da sua escola. É uma vergonha!».
«O importante é que a Vera não se aperceba de nada! Ela deve continuar a viver a sua vida aqui comigo. Uma vida tranquila» murmurou a tia Cecília com a voz afetada pela emoção.
«Tem calma! Enquanto o cardeal Montagnard for vivo, não lhe acontecerá nada. Apesar dos pedidos do cardeal Siringer, a Ordem não pode fazer nada sem uma autorização de Montagnard e ele nunca permitiria que acontecesse alguma coisa à Vera» tranquilizou-a o padre Dominick.
«Pois».
Os dois ficaram em silêncio.
Por fim, despediram-se e o padre foi-se embora.
Fiquei parada no cimo das escadas.
Era a primeira vez que ouvia falar de cardeais e desta Ordem. Quem eram? O que queriam?
Mas sobretudo, porque estavam interessados em mim?
Queria pedir explicações à minha tia, mas sabia que, desta vez, tinha que guardar isto para mim.
Ninguém deveria saber que tinha escutado aquela conversa. Nem a tia, nem Ahmed, nem o padre Dominick.
Na manhã seguinte, custou-me a levantar. Estive até às duas da manhã a trabalhar no relatório de história e, a seguir, não consegui pregar olho por causa da conversa que escutei às escondidas entre a tia e o padre Dominick.
Pela enésima vez, estava atrasada e não consegui tomar o pequeno-almoço. Saí de casa a correr, apesar das reprimendas da minha tia que não queria que me cansasse e apanhei o autocarro por pouco.
Ainda não tinha entrado na sala de aula, Patty Shue, acompanhada das suas duas amigas, Claire e Martha, aproximou-se de mim ondulando as suas ancas sensuais, enfatizadas por uma mini-saia de tirar o fôlego e dirigiu-me o beicinho mais malicioso e despeitoso que conseguiu fazer com aqueles lábios infláveis, vermelhos escarlate.
«Vera diz-nos, como estás hoje? Prevês algum desmaio? Beh, caso percas os sentidos, sabemos quem chamar. Tenho a certeza que o Ron não hesitaria em fazer-te respiração boca a boca! Sobretudo depois das suas explicações, certamente que precisarás!» aquela bruxa sorriu.
E assim, já se tinha espalhado o rumor acerca de mim e do Ron.
Quem poderia ter-me humilhado perante todos, senão ele?
Felizmente, tinha feito uma hemodose há muito pouco tempo, logo a vista estava bem reativa.
Num instante, o meu olhar furioso correu a indagar o culpado.
Eis!
O Ron encontrava-se tranquilo no seu banco a copiar desenhos numa folha.
Aproximei-me.
«Ron» pronunciei com o tom de voz mais frio possível.
«Vera, olá. Imagina só, estava mesmo a pensar em ti».
«Ah sim?».
Óbvio, depois do que tinha feito!
«Sim, estava mesmo agora a passar-te alguns exercícios simples para esta folha assim, da primeira vez que nos encontrarmos, pode ser mesmo amanhã se quiseres, podemos examiná-los juntos. Aqui, por exemplo, deves escrever como se chamam as partes do corpo que te desenhei» disse-me todo emocionado, mostrando-me a folha.
Fiquei espantada. Seria possível que não se apercebesse do que tinha feito?
Antes daquela noite, todos pensariam que eu e o Ron, conhecido como “Hálito Podre”, andávamos juntos.
Sem sombra de dúvidas, deveria agradecer a Patty por tudo aquilo.
Não sabia bem quando nem como, mas após as aulas da manhã, todos reuniram-se no refeitório, onde estava um grande burburinho.
Durante a tarde, começaram os primeiros olhares e risadinhas.
No autocarro de regresso a casa, estava já noiva com o Ron há um mês, segundo os rumores que circulavam nas proximidades.
Faltou pouco para afixarem cartazes: “A história de amor entre a Pálida Vera e o Hálito Podre”.
Estava enojada.
Quando cheguei a casa, encontrei a tia Cecília com os cabelos amarrados numa suave trança dourada e com um enorme avental verde, determinada a preparar as conservas de tomate para o inverno.
Descalcei nervosamente os sapatos e atirei a mochila ao chão, antes de correr para a minha tia e carregá-la com os meus problemas.
«Aqui faz falta pão e mel» disse-me ao escutar quanto rancor havia na minha voz ao falar da Patty e do Ron.
«Por acaso, acreditas realmente que vou às explicações com aquele cretino?» desabafei.
Entretanto a tia preparou-me o lanche.
«Come para te acalmares» disse-me estendendo-me uma fatia de pão e ignorando as minhas palavras.
Devorei o pão, continuando a falar, cuspindo migalhas aqui e acolá. Todavia, por fim acalmei-me. Era o mel. Quando estava nervosa ou zangada, o sabor do mel tinha sempre um efeito relaxante em mim.
«Obrigada» sussurrei finalmente.
«Bem, então agora que já lanchaste e que desabafaste, aconselho-te a correr para o quarto para estudar biologia, se queres fazer-me mudar de ideias quanto às aulas com o Ron» exclamou a tia Cecília.
« Oh, obrigada!».
Corri a abraçá-la. Sabia que ia compreender!
«És a minha tia preferida!» acrescentei.
«Óbvio, sou a tua única tia».
Desatamos a rir juntas e depois pôs-me a estudar.
Prometi a mim mesma que melhoraria a minha média em ciências. Estudei biologia três dias seguidos e no fim, fiz uma prova oral.
Sete.
Aquela nota bastou para convencer a minha tia a anular o compromisso que tinha com o Ron.
Sentia-me no sétimo céu.
Não me interessava se o Ron tinha levado a mal, porque se tinha sentido rejeitado. Estivemos quase juntos de verdade.
Também não agradou à Patty, porque no espaço de dois dias, a minha história de amor com o Hálito Podre começou a desvanecer, até ser completamente esquecida.
Um dia, ao regressar da escola, cruzei a habitual cancela, que há já alguns dias tinha começado a ranger mais do que o habitual e corri para casa.
«Devo chegar-lhe óleo» disse-me Ahmed, referindo-se à cancela, enquanto reparava um bocado da cerca, não muito longe de mim.
«Olá Ahmed. Como estás?» perguntei-lhe.
«Hoje está sol, por isso, está tudo bem» respondeu-me.
Sorri-lhe solidária.
«Termino de reparar isto e depois vou fazer algumas comissões» acrescentou.
«Posso ir contigo?».
Quando fazia sol, não era possível estar em casa a estudar.
«É melhor não. Acabou de chegar o padre August e penso que quer ver-te» respondeu-me afastando-se com algumas tábuas na mão.
O padre August, aquele velho anão atarracado com o olhar maligno.
Tanto eu quanto a tia não podíamos vê-lo, todavia uma vez por mês vinha fazer-nos uma visita.
A tia Cecília explicou-me que, no fundo, o padre August era um bom homem e que tinham sido muito próximos, quando eu era pequena.
Ajudou a financiar os custos de saúde que teve quando me diagnosticaram aquela terrível anemia, por isso, seria sempre bem-vindo, apesar de me parecer um ser repugnante e desagradável.
Com relutância, entrei em casa.
No salão, a tia e o padre August estavam sentados no sofá a beber um café.
«Tesouro, chegaste» cumprimentou-me a tia com o mesmo carinho de sempre, ainda que eu tenha notado imediatamente uma veia de tensão na sua voz.
«Olá, tia. Bom dia, padre August».
«Vera, como estás?» perguntou-me com uma voz suspeita, enquanto continuava a olhar-me da cabeça aos pés, como se procurasse alguma pista sobre um possível agravamento da minha saúde ou qualquer outra coisa.
Dava-me sempre a impressão que eu tinha algo de errado, ainda que tentasse disfarçá-lo.
Apesar dos muitos anos de convívio, nunca me mostrou afeição como o padre Dominick.
«Bem, obrigada».
«A tua tia estava-me a contar que tomas as tuas hemodoses uma vez a cada três semanas».
«Sim, exacto».
«Muito bem. Aconselho-te a fazer sempre aquilo que diz a tua tia e se não te sentires bem, diz-lhe imediatamente».
«Assim o farei».
«Bem. Continuas a frequentar as aulas de catequese do padre Dominick, certo?».
Suspirei, já irritada com o interrogatório.
Todas as vezes, era a mesma história.
Detestava que a minha saúde se tornasse uma questão de estado.
«Olha que eu só me preocupo contigo».
«Sim, mas eu estou bem, por isso não vejo motivo para todas estas perguntas» desabafei nervosa.
O padre franziu a testa.
«Tanta gente cuida de ti e faz tudo para manter-te viva. Muitas pessoas importantes como os cardeais Montagnard e Siringer ocupam-se da tua saúde. Devias mostrar um pouco mais de gratidão!» murmurou com um tom ameaçador.
Montagnard e Siringer? Novamente estes nomes.
Não podia deixar escapar esta oportunidade.
«Desculpe-me. Não sabia que tinha chamado a atenção de pessoas assim tão importantes, mas... quem são os cardeais Montagnard e Siringer?» Tentei perguntar com uma voz ingénua.
A tia Cecília tinha o rosto pálido e tenso, mas por fim conseguiu abrir a boca.
«É culpa minha. Na realidade, Vera, não te disse uma coisa. Quando a minha prima Annie, ou seja a tua mãe, me procurou, ela estava já nos últimos meses de gravidez. Contudo, eu naquele tempo estava num convento em Portugal e não sabia nada dela. Há anos que não nos falávamos. Foi o próprio cardeal Montagnard a pôr-nos em contacto e quem tomou conta de ti quando nasceste, antes do meu regresso à Irlanda. Infelizmente, quando cheguei à clínica onde estiveram internadas, a tua mãe já tinha sido enterrada. Nunca ninguém soube o nome do teu pai, apesar das pesquisas levadas a cabo pelo cardeal Siringer» explicou a tia Cecília com ânsia.
Estava transtornada.
«Porque nunca me disseste?» perguntei sussurrando.
«Peço-te desculpa, mas não queria causar-te mais sofrimento, minha pequena» sussurrou-me a tia, enquanto os olhos enchiam-se de lágrimas.
Percebi quanto aquele assunto a fazia sofrer. Abracei-a intensamente e sorri-lhe.
«Não te preocupes».
Entretanto o padre August terminou o seu café.
Estava nervoso. Provavelmente, apercebeu-se que tinha falado demais, por isso, decidiu ir-se embora, sobretudo para evitar mais perguntas.
Sem acrescentar mais nada, aproximou-se da porta.
«Já é tarde. Tenho que ir embora» cumprimentou-nos.
Trocamos cumprimentos e começamos a preparar o jantar, sem voltar a tocar no assunto relacionado com a minha mãe e o meu nascimento, se bem que a minha tia parecia estar ainda um pouco abalada por aquilo teve que revelar.
Passou uma semana sem especiais novidades.
Tinha-se levantado um vento gelado e todos estavam fechados em casa.
Até a Patty parecia ter-se acalmado.
Entretanto eu tive uma outra bela nota em biologia.
No fim de semana, o vento abrandou e o sol voltou a aquecer com os seus últimos raios de outono.
Passei o sábado todo a ajudar o Ahmed a fazer os habituais trabalhos na quinta. Acima de tudo, era a sua assistente.
Deitamos óleo na cancela, reparamos a porta do meu guarda-roupa e acabamos de ajustar o recinto.
«Vais ao Kevin buscar comida para as galinhas?» perguntou-me Ahmed a dada altura, tentando gozar comigo.
Sabia que tinha uma grande paixoneta pelo Kevin Moore, o estagiário que trabalhava no Agricentro de John McKaine.
Loiro, olhos azuis, sorriso deslumbrante e inteligente. Resumindo, lindo de morrer.
Tinha mais seis anos que eu e estava noivo, fiel à sua bela Clara Shue, a irmã menos antipática da Patty.
E esta era justiça mundana?
Apesar disso, continuava a correr atrás dele, na esperança de que um dia se apercebesse de mim.
Era para ele que eu tinha decidido reservar o meu primeiro beijo. Dava-me conta o quanto era patética, mas não conseguia resistir-lhe.
Estava para entrar no carro com o Ahmed, quando o padre Dominick chegou no autocarro.
Desceu do transporte com esforço e aproximou-se de nós balanceando.
Fez-me sorrir. Quando caminhava, parecia mesmo um pinguim.
«Bom dia. Vão a algum lugar em particular?» perguntou-nos com os olhos brilhantes.
«Íamos comprar comida para as galinhas» respondi imediatamente.
«Imagino que toda esta vontade de ir ao Agricentro seja pelo facto que te preocupas com o bem-estar dos teus animais e não com um certo bonitão chamado Kevin».
Fiquei vermelha até à ponta dos cabelos.
Porque lhe tinha contado? Seria possível que eu nunca conseguisse guardar segredos?
«Em vez de pensares nestas coisas, porque não vais para casa fazer companhia à tia que prepara as conservas, enquanto nós vamos ao povoado? Diz à tia que voltamos num instante, ok?».
«A propósito, como está a tua tia? Quando me telefonou para cá vir, estava um pouco estranha».
«Pois. Ainda não recuperou completamente da discussão com o padre August».
«O padre August?».
«Sim. Toda a história do meu nascimento e dos cardeais Siringer e Montagnard» fui sucinta para poder ir-me embora o quanto antes.
Ao ouvir aquelas palavras, o padre Dominick ficou nitidamente mais pálido. Eu nem tive tempo de perguntar-lhe se estava bem, pois já caminhava a toda a velocidade para casa.
Estava indecisa entre segui-lo ou ir ter com o Kevin.
Escolhi a segunda opção, com a condição de voltar logo para casa para perceber o que se estava a passar.
Após um quarto de hora a andar de carro, ele estava ali, a poucos passos de mim, determinado a carregar encomendas de madeira comprimida no camião de um velho senhor.
Desci do carro e aproximei-me dele com o sorriso mais deslumbrante que consegui fazer.
«Olá, Kevin» exclamei com a voz mais alta uma oitava.
«Vera, que prazer! Como estás?» cumprimentou-me, olhando-me com os seus dois olhos azuis, que perturbaram o meu sistema nervoso.
Que simpático! Era sempre tão gentil!
«Bem, e tu?» perguntei-lhe contagiada pela habitual euforia que me enchia o coração quando estava perto dele.
«Lindamente. Tenho uma notícia explosiva e quero que sejas a primeira a sabê-la, uma vez que, para mim, és uma grande amiga» respondeu-me enquanto me despenteava os cabelos, como fazia quando eu tinha dez anos. Tinha sido sempre tão fofo comigo e isto alimentou ainda mais o meu amor por ele.
Aproximou-se mais de mim e sussurrou-me ao ouvido, fazendo-me arrepios na coluna: «Ontem, o senhor McKaine disse-me que está muito satisfeito com o trabalho que tenho feito para ele nestes cinco anos, por isso, perguntou-me se em maio, quando acabar o estágio, quero tornar-me seu sócio. Assim, posso ganhar muito mais e começar seriamente a fazer projetos para o futuro. Sabes, uma casa, uma família...».
«Fantástico!».
«Pois...e é aqui que surge a segunda e mais importante notícia explosiva...».
Estava tão emocionada e feliz por ele, que não estava mais em mim.
«... pedi a Clara em casamento!»
Mais que uma notícia explosiva, parecia que eu tinha acabado de pisar uma mina terrestre.
Aquele pouco rubor que me coloria as bochechas na sua presença desapareceu e senti os ângulos da boca por terra.
«Estás bem? Ficaste tão pálida» preocupou-se imediatamente.
«É só a minha anemia. Dizias que queres casar?» consegui murmurar num estado de constante apneia.
«Sim, mas obviamente não antes de maio! A Clara diz que no início de junho seria a altura perfeita, com todas as árvores em flor e os primeiros dias de sol quente a aquecer-nos» disse.
Naquele momento, só me apetecia desejar-lhe uma tempestade com trovões e relâmpagos. Tinha apenas acabado de destruir o meu sonho!
Para além disso, parecia que ninguém se tinha apercebido.
Procurei dirigir-lhe um sorriso, mas saiu-me uma espécie de careta.
«Kevin, onde puseste os sacos de aveia que chegaram esta manhã?» gritou próximo de mim John McKaine com o seu timbre de voz habitual.
Naquele momento odiei-o também.
Se ele não lhe tivesse proposto sociedade, o Kevin nunca teria cometido tamanha loucura!
Estava tão embrenhada nos meus pensamentos sombrios, que nem dei conta que ele já se tinha afastado seguido do patrão.
«Adeus, Vera. Volta em breve».
«Adeus, Kevin».
Adeus.
Permaneci ali a olhar para as suas costas cada vez mais longe, antes que Ahmed me chamasse para regressar a casa.
«Vera. Para casa».
«Sim, já vou».
Aproximei-me do carro e entrei com o olhar fixo no Agricentro.
Quando já estávamos longe, pareceu-me ter voltado a respirar ou pelo menos, a suspirar
desolada.
«Casa-se, eh?» pronunciou Ahmed.
Ainda bem que fui a primeira a sabê-lo.
Olhei Ahmed à procura de uma pista sobre uma possível telepatia.
«McKaine».
McKaine tinha-lhe dito.
Agora também me sentia enganada pelo Kevin, mas continuei a acreditar numa mudança.
«Sim, mas até maio muitas coisas podem mudar» coloquei a hipótese.
«Eles se casarão» profetizou convicto.
«Veremos».
Ahmed abanou a cabeça e não abriu a boca até casa.
Passei os últimos quilómetros de estrada, a pensar em mil e uma coisas que podiam acontecer no espaço de seis meses.
Entretanto a tia esperava-nos em casa com um belo chá quente e duas grandes fatias de tarte de maçã.
Em casa pairava o cheiro a doces e maçãs, que perfumava todo o ambiente.
No salão, o padre Dominick estava sentado no sofá, determinado a terminar o seu último pedaço de tarte. De certeza, que era a sua segunda ou terceira fatia. Era mesmo muito guloso.
«Correu tudo bem?» perguntou a tia preocupada com a compra e com a minha expressão fúnebre.
«Já temos a comida. O kevin vai casar-se com a Clara» resumiu Ahmed, antes que eu pudesse abrir a boca.
«Até maio, muitas coisas podem acontecer!» especifiquei convicta.
«Vera, não digas isso! É óbvio que o Kevin está muito apaixonado» repreendeu-me imediatamente a minha tia, feliz pela futura união dos dois jovens.
«Não me interessa! Primeiro a Patty e agora a sua irmã! Aquelas duas existem apenas para me arruinarem a vida!» desabafei furiosa.
«Em vez da tarte, preferias um pouco de pão e mel?» propôs-me candidamente a tia, sabendo o quanto isso me acalmava, mas eu não pretendia deixar-me corromper.
«Não quero nada!» explodi antes de correr para o meu quarto e bater a porta, enquanto duas grandes lágrimas escorriam sobre a minha face.
Estava desesperada! O meu lindíssimo sonho de amor tinha sido interrompido! Queria que fosse eu a casar com o Kevin em maio.
Porque é que a vida tinha que ser assim tão injusta?
MUDANÇAS
Passei duas semanas infernais.
Dentro de mim agitavam-se emoções, como a raiva, a frustração, a tristeza e a vingança, enquanto no exterior parecia apática e perto do suicídio.
Não comia, não falava e não dormia.
Enfraqueci muito rapidamente e quando me recusei a tomar uma hemodose, a tia Cecília ficou tão preocupada que chamou o padre Dominick.
«Por quanto tempo pensas continuar assim?» perguntou-me Dominick, cansado do meu silêncio.
«Para sempre» sussurrei.
«Então és uma idiota. Claro que o Kevin tem a sua cota parte de culpa porque sempre te iludiu com os seus gestos carinhosos e gentis, mas foste tu quem construiu castelos no ar. Ele nunca disse que te amava e muito menos que queria estar contigo, assim se confundiste uma paixoneta de rapariguita imatura com amor, a responsabilidade é apenas tua. Cresce porque o amor é outra coisa» desabafou Dominick furioso.
Era a primeira vez que se dirigia a mim daquela maneira e não estava mesmo nada à espera.
Olhei-o chateada.
«Então, diz-me o que é o amor» provoquei-o com um tom de voz ácido.
«É um sentimento muito mais profundo, que se constrói com o tempo e estando próximo da outra pessoa tanto nos momentos mais felizes como nos mais difíceis. Se amasses realmente o Kevin, estarias feliz pela sua escolha, porque desejarias a sua felicidade e o seu bem-estar. O amor verdadeiro não é um desejo egoísta, como o teu!».
Pensei muitas vezes naquelas palavras tão duras e fortes.
Por fim, percebi que o padre Dominick tinha razão. Aliás, o que eu sabia verdadeiramente do Kevin, para além do facto que era sempre gentil com os clientes?
Para ser sincera, não sabia nada dele.
Não sabia qual era o seu prato preferido, que tipo de música escutava, o que gostava de fazer no seu tempo livre, para além de estar com a Clara, se era desorganizado ou meticuloso...
Todavia, não conseguirei esquecer todos aqueles anos dedicados a fantasiar acerca dele e de uma possível história de amor toda nossa.
Em poucos dias, voltei a comer, dormir e falar.
A tia Cecília ficou tremendamente aliviada ao ver-me novamente em forma, sobretudo depois de ter tomado a minha hemodose e voltar a ser falastrona como antes. Durante dias tinha tentado fazer-me comer, preparando-me todo o género de comida, mas eu tinha desistido. A minha recusa contínua em dirigir-lhe a palavra, também a tinha feito desesperar.
Por fim, também eu estava feliz por voltar a ser a Vera de antigamente.
Um dia, era quase noite, quando o telefone tocou.
Eu estava entretida com o enésimo filme de amor choramingas, por isso não lhe prestei atenção. Foi a minha tia a atendê-lo.
Não conseguia compreender o que a tia dizia, mas apercebi-me que tinha acontecido algo de grave, porque o seu tom de voz mudou e ficou muito preocupada.
Foi um curto telefonema.
«Está tudo bem?» perguntei-lhe, quando a vi regressar da cozinha, onde tínhamos o telefone.
«Infelizmente, o cardeal Montagnard morreu de um enfarte».
«Lamento. Conhecias-lho bem?».
«Sim. Estava muito ligada a ele e admirava-o tanto como homem, quanto como eclesiástico» explicou-me a tia com lágrimas nos olhos.
Era a primeira vez que via a tia triste pela perda de alguém e não pensava que pudesse sofrer assim tanto.
Ficou apática e silenciosa durante dias, atormentada pela sua dor.
Por fim, decidi esperar a segunda-feira da semana seguinte.
Na escola tinha sido convocada uma greve contra a lei da redução dos professores e por isso, teria todo o dia livre e estava determinada a levar a tia ao centro comercial para fazer compras.
Ainda que não tivesse muito dinheiro de parte, devido à minha reduzida mesada semanal, tinha intenções de comprar-lhe um presente nem que para isso, gastasse todas as minhas poupanças.
Queria levá-la às lojas e comprar-lhe um perfume, uma camisola ou um livro.
Qualquer coisa que lhe fizesse voltar a sorrir.
Por sorte, aquela segunda-feira chegou rápido.
Levantei-me à hora habitual, mas desci com calma para tomar o pequeno-almoço, depois de me ter lavado e vestido cuidadosamente.
«Vera, é tardíssimo! De certeza que vais perder o autocarro!» repreendeu-me a tia, mal coloquei os pés na cozinha.
«Hoje não tenho que ir à escola! Há greve» expliquei-lhe imediatamente com um grande sorriso nos lábios.
«Ah, sim. Talvez me tinhas dito... não me lembro» respondeu-me a tia com um tom de voz ausente.
«Pois. Por isso, decidi ir à cidade, porque tenho que comprar um livro para a escola. Podes acompanhar-me, por favor? Menti. Sabia que se dissesse à minha tia que queria levá-la às compras, nunca aceitaria, mas se se tratasse de material escolar, estaria sempre pronta.
«Está bem, mas agora não. Prometi ao Ahmed que falávamos sobre o novo gado, que chegará até o fim da manhã, mas hoje à tarde de certeza que te posso levar à livraria» assegurou-me.
Projeto adiado.
Detestava adiar os meus planos, porque depois chegava o enésimo contratempo a estragar tudo.
Devia tê-lo antecipado para o dia anterior.
Assim dei por mim a não saber o que fazer.
Acabei por optar pela televisão.
Passou-me a vontade de sair.
Estava prestes a voltar para o quarto para mudar de roupa, quando de repente, soou a campainha.
Fui abrir.
Era Dominick acompanhado de dois homens altos e maciços, vestidos de negro com o desenho de uma cruz branca com uma gota vermelha ao centro, bordado no bolso do casaco.
Fiquei tão curiosa com aqueles dois endemoniados, nunca antes vistos, imóveis perante a porta da minha casa, que não prestei atenção à voz transtornada do padre Dominick, que me empurrou bruscamente para dentro de casa e gritou o nome da minha tia.
«Cecília, têm que se ir embora! Agora!» gritou o padre Dominick aterrorizado.
«O que está a acontecer?» perguntou-lhe a tia, tentando não mostrar a sua angústia.
«Eles sabem tudo e estão a chegar!» gritou novamente o padre Dominick.
«Eles quem?» intrometi-me alarmada.
Ninguém me respondeu, mas percebi que a tia sabia a quem o padre se referia, porque levou a mão direita à boca, para tentar sufocar um grito.
«Mas como é possível?» sussurrou a tia com um fio de voz.
«Assassinaram-no! Assassinaram o cardeal Montagnard, depois de o terem feito confessar! Agora eles sabem tudo e vocês não estão mais seguras. Virão procurá-las e quando o fizerem, apanharão a Vera e vão matá-la».
Eu? Mas o que tinha a ver com isto tudo?
Estava tão chocada que não consegui abrir a boca.
«Dispararam-lhe em vez de usarem o seu habitual modo de atacar. Por isso, a Ordem levou tanto tempo a perceber quem era o culpado do homicídio. De certeza que foi o Blake. Só ele e o seu bando são capazes de um crime semelhante. Ninguém sabe o que aconteceu realmente, mas ao que parece o cardeal contou tudo ao Blake, provavelmente sob tortura» continuou o padre Dominick.
«Mas é terrível!».
«Pois e agora devem fugir. Já vos reservei um quarto num hotel em Dublin. Quando chegarem, receberemos novas ordens do cardeal Siringer, que nos quer encontrar».
«Mas como fazemos?» suspirou a tia abalada.
Naquela quinta estava a sua casa, a sua vida.
E também a minha.
«Temos que partir imediatamente. Vamos viajar toda a noite, se necessário. Seremos escoltados por dois membros de confiança da Ordem, sob coordenação do cardeal Siringer, que nos levarão primeiro ao hotel e depois ao lugar prefixado para o encontro. Por isso, mexam-se! Levem o mínimo indispensável e vamos embora!» recomeçou a gritar o padre Dominick.
Por alguns segundos, que me pareceram horas, a tia e o padre olharam-se intensamente nos olhos, depois disso, como que movida por uma força inexplicável, a tia agarrou-me por um braço e arrastou-me pelas escadas até ao meu quarto.
Em frente à porta, abraçou-me e sussurrou-me docemente ao ouvido: «Não te preocupes. Estarei sempre presente para te defender. Não permito que ninguém te faça mal. Foi assim por dezassete anos e será sempre, enquanto for viva».
«Tia, o que está a acontecer?» consegui perguntar baixinho.
«Está calma. Agora vai para o teu quarto. Tens três minutos para pegares na mala que está debaixo da tua cama e enchê-la com aquilo que te pode ser útil nos próximos dias. Quando estivermos longe daqui te explicarei tudo. Prometo-te».
Não tive outra escolha.
Corri para o meu quarto, abri o guarda-roupa e comecei a encher a mala que tirei de debaixo da cama, com camisolas e calças. Alguma roupa interior, o estojo de maquilhagem e as minhas poupanças. Estava prestes a fechar a bagagem, quando notei a foto que tinha sobre a mesa-de-cabeceira perto da cama. Era uma foto minha com a tia abraçadas em frente à cancela da quinta.
Adorava aquela foto tirada pelo Ahmed há alguns anos atrás.
Coloquei-a também e fechei o zip da mala.
Saí do meu quarto, olhando-o mais uma vez. Aquele tinha sido o meu quarto de infância, o meu refúgio.
Tinha esperança de um dia poder voltar ali, mas alguma coisa me dizia que aquele era um adeus.
Fechei a porta do quarto atrás de mim com um véu de tristeza.
Mal desci para o piso inferior, o padre Dominick agarrou-me pelas costas e arrastou-me para fora de casa em direção a um carro negro, que estava estacionado em frente à cancela da quinta.
Mal me viram, os dois homens desconhecidos entraram no carro e o mais forte pôs-se ao volante.
«Quem são aqueles dois?» perguntei.
«Não há tempo para explicações» abreviou o padre, fazendo-me entrar no carro, para depois apressar-se a ajudar a tia, que estava a dois passos da viatura. Nesse instante, chegou Ahmed.
«Ahmed, chegou o momento do qual falámos com frequência. Adeus» a tia cumprimentou-o, pouco antes de entrar no carro empurrada pelo padre Dominick.
«Fechar a porta e partir. Adeus, Cecília. Vera, vou ter saudades tuas» cumprimentou-nos o Ahmed com um ar triste.
«Adeus, mas talvez nos voltemos a ver» confortei-o, mas ele sacudiu a cabeça e foi-se embora, no mesmo instante em que a BMW negra também partiu.
Senti uma onda de infelicidade propagar-se no meu coração.
Comparando com aquilo, o que tinha sentido pelo Kevin depois de ter sabido do seu futuro casamento, parecia uma ninharia.
Gostava muito do Ahmed e nunca pensei que um dia, ficaria sozinha.
Mal o carro partiu a toda a velocidade, senti o suspiro de alívio da tia e do Dominick.
Apenas eu permanecia tensa como uma corda de violino.
«O Ahmed não vem connosco?» tentei perguntar.
«Não, Vera. O Ahmed tem que ficar a tratar dos nossos assuntos. Dará a casa a uma instituição de caridade e avisará a escola da tua partida, informando-a da tua transferência inesperada devido a problemas de saúde e depois partirá para a Tunísia com o dinheiro que lhe deixei numa conta corrente particular, para ser usado só em caso de necessidade. Na verdade, há anos que isto está tudo planeado» explicou-me a tia, acariciando-me a cabeça.
Tudo isto era ainda incompreensível para mim. Mil pensamentos e frases pronunciadas giravam na minha mente a uma velocidade incontrolável. Não conseguia memorizar um pormenor, que depois desaparecia para dar lugar a outra coisa qualquer.
Ahmed. A escola. Kevin. Patty Shue. Ron. A quinta. Eles.
O cardeal Montagnard. Dublin. O cardeal Siringer.
Tantos, demasiados pensamentos passavam a grande velocidade na minha mente.
Pensava na escola. Estava a recuperar a biologia e ainda tinha que receber a nota do relatório de história.
Para além disso, continuava zangada com a Patty por ter dito a todos que estava noiva do Ron.
Que sentido tinha tudo isto, se no dia seguinte estarei, sabe-se lá onde?
Não voltaria a ver o Kevin. Porquê levar tão a peito o seu casamento com a Clara, se eu não ia estar presente na mesma.
Talvez estarei morta em maio. Não me tinha esquecido que alguém me procurava, depois de ter morto um homem. Era óbvio que tinha reservado para mim o mesmo final cruel.
Eles.
Eles, quem?
Ainda ninguém me tinha explicado quem era esta gente e o que queria de mim.
Tentei pela enésima vez.
«Por favor, expliquei-me porque está a acontecer isto tudo e quem são eles?».
A tia olhou-me com os olhos cheios de tristeza e desespero. Também o padre Dominick olhou-me angustiado.
«Olha, tu és uma rapariga especial» a tia iniciou com esforço.
«Em que sentido?».
«Nasceste em circunstâncias especiais, inesperadas e ainda em parte desconhecidas. Só o cardeal Montagnard sabia a verdade e quando a tua mãe morreu, ele decidiu tomar conta de ti. Desde o nascimento mostraste graves problemas de saúde por causa da tua anemia, mas ele fez de tudo para ajudar-te a sobreviver e ao fazê-lo notou que havia algo em ti maravilhosamente inesperado. Não disse a ninguém o que era, mas decidiu fazer-te crescer num ambiente protegido. Posteriormente, revelou ao cardeal Siringer, o chefe da Ordem da Cruz Ensanguentada, o teu nascimento e disse apenas que eras a solução para o seu problema».
«Qual problema?».
«Ser-te-á revelado no tempo certo, mas fica sabendo que o teu nascimento trouxe muita confusão na Ordem. O cardeal Montagnard mandou regressar do Zimbabwe Cecília, um antigo membro da Ordem, encarregando-a de criar-te, enquanto o cardeal Siringer exigiu um controlo externo, o padre August. Só cheguei mais tarde, quando a Cecília pediu uma ajuda amiga capaz de apoiá-la» interveio o padre.
Então não era verdade que quando a minha mãe morreu, a tia encontrava-se em Portugal, pensei.
«Sabes, nunca tinha tido uma filha e tinha medo de errar contigo, além que o padre August criticava todas as minhas escolhas e dizia que tinha sido um erro teres sido confiada a mim, porque me tinha apegado demasiado a ti e isso não me permitia ser objetiva. Dominick era um velho amigo meu e confiava cegamente nele. Além disso, conhecia a Ordem e as suas leis, assim decidiu envolver-se com o objetivo de dar-te uma determinada educação religiosa» contou a tia.
Agora percebo porque nunca tinha gostado do padre August.
Tinha sempre a sensação que me controlava e a tia não se sentia confortável na sua presença.
Mas, de momento, o que me deixava mais perplexa era o motivo de tanto secretismo, sobretudo da parte da minha tia, que apesar de tudo era a prima da minha mãe.
Mencionei-o à tia, que me olhou com uma expressão ainda mais angustiada.
«Bastou-me ter-te nos braços por apenas um minuto, que percebi o quanto te adorava. Eras a criatura mais doce e bela do mundo. Todas as vezes que me sorrias, a escolha de abandonar os votos para estar contigo, tornava-se menos penosa. Apercebi-me que podia ser feliz assim, mesmo servindo o Senhor de forma diferente. Todavia...» iniciou a tia, mas as palavras não lhe saiam.
«Todavia ela não é realmente tua tia, ainda que te ame como uma mãe ama o próprio filho» o padre Dominick terminou por ela a frase com um ar de sofrimento.
Fiquei petrificada.
A tia Cecília não era minha tia?
Tudo, menos isto.
Isto era demasiado.
Não consegui pronunciar nenhuma palavra.
Estava transtornada.
Olhei a minha tia, ao meu lado, no banco posterior do carro, que chorava baixinho, repetindo continuamente: «Perdoa-me».
Pareceu-me entrar em transe, num estado de semiconsciência.
Todas as minhas certezas caíram por terra.
Passaram-se horas.
Permaneci naquele estado até chegarmos a Dublin ao final da tarde.
Lembro-me apenas que o carro parou mesmo em frente a um hotel, o Jolly Hotel.
O homem da receção nem nos perguntou pelos documentos, entregou-nos simplesmente as chaves dos quartos.
Eu e a tia fomos levadas para o quarto 112, enquanto o padre Dominick dirigiu-se sozinho para a porta 115.
O quarto era pequeno com papel de parede amarelo, tal como as cortinas e as cobertas.
Havia duas camas de solteiro. Sentei-me sobre a que estava ao fundo, perto da janela.
Posei a minha mala no chão e observei a estrada iluminada pelos postes de luz, no exterior da janela.
«Tens fome?» perguntou-me a tia, fazendo-me saltar de susto. Depois de me revelar que não era minha tia, não me tinha dirigido mais a palavra.
«Não, obrigada».
«Tens a certeza? Não comeste nada, nem mesmo no autogrill onde paramos para almoçar» mencionou preocupada.
Apeteceu-me perguntar-lhe porque se interessava tanto por mim, uma vez que eu não lhe era nada, mas não o fiz.
Abanei a cabeça.
Ambas sem jantar, metemo-nos por baixo dos cobertores, apesar de ainda ser muito cedo.
Não tinha sono nenhum.
A minha mente estava cheia de pensamentos, mas aquele que me martelava a cabeça era: a tia, ou melhor, a irmã Cecília.
Se isto for sequer o seu verdadeiro nome.
Passei uma hora a quebrar a cabeça à procura de um sentido, de uma lógica sobre todo aquele assunto.
Vinte e quatro horas atrás fazia zapping sentada no sofá da sala, enquanto a tia reorganizava a cozinha e agora estava numa cama desconfortadíssima, num quarto de hotel ridículo, com uma mulher talvez desconhecida.
Isto tudo não fazia sentido.
Quero de volta a minha casa e a minha tia.
Apercebia-me que tinha sido mais belo viver na completa ignorância e ilusão, do que ir de encontro à crua e injusta realidade.
Se o padre Dominick tentasse outra vez falar-me de justiça divina, comia-o vivo!
Todavia agora estava ali. Presa naquela absurda realidade, perto da pessoa que, até há bem pouco tempo atrás, adorava mais que tudo, enquanto agora temia não a conhecer realmente.
Não consegui mais estar calada.
«Porque tomaste conta de mim em todos estes longos anos?» perguntei-lhe muito baixinho.
Estava convencida que não tinha ouvido. Não porque dormia. Sabia que não dormia, uma vez que durante o sono ressonava imenso, mas sentia a garganta a arder e o peito pesado que me sufocava e as palavras saíram-me débeis e inseguras.
«Não o imaginas?» respondeu-me com a sua habitual e familiar doçura.
«Porque te ordenaram, certo?».
«Não, tolinha. Porque gosto muito de ti. Ainda que realmente não o sejas, para mim, és a minha menina. És a coisa mais importante da minha vida. Esperava conseguir comunicar-te tudo isto em todos estes anos juntas».
Sim, sabia que me queria bem. Sempre me ajudou nos momentos de dificuldade, esteve sempre pronta a apoiar-me e nunca me fez faltar nada, apesar das diversas restrições económicas. Em tudo o que fazia, demonstrava o seu amor por mim e eu sempre me apercebi disso e recebi-o de braços abertos.
Tinha sido uma mãe, mas também uma amiga, uma vez que por causa da minha saúde, nunca consegui fazer amigos. Todos os meus companheiros sempre foram desconfiados em relação a mim, por viver com uma tia e estar frequentemente doente, para além de ser a inimiga número um de Patty Shue, a amiga número um de todos os outros.
«Sei que me queres bem e também eu te quero bem, mas todas estas novidades fizeram curto-circuito no meu cérebro. Não sei mais quem sou, quem tu és...» desabafei.
«Tens razão. Quis dizer-te a verdade tantas vezes, mas a Ordem proibiu-me terminantemente».
«Podias ter-me dito às escondidas. Fazia de conta que não sabia de nada com o padre August e Dominick».
A tia começou a rir.
Também eu sorri e percebi que tudo tinha ficado como antes.
Cecília era sempre a minha querida tia, que escutava as minhas tontices e se ria delas.
«Escuta, Vera. Tenho muita pena de não te ter dito a verdade, mas fi-lo para o teu bem. Prometo-te que quando encontrarmos o cardeal Siringer, lhe pedirei autorização para te contar toda a verdade. A este ponto, é justo que saibas a história completa» disse a tia muito séria.
«Pois, ainda devo saber quem me quer morta» tentei desdramatizar.
«Nunca permitirei que te façam mal» afirmou determinada.
Naquela noite, a tia não me quis dizer mais nada.
Continuamos a falar toda a noite, mas acerca da nossa antiga vida na quinta, procurando consolo ao menos nas recordações.
ENCONTRO
Na manhã seguinte, a tia e eu levantamo-nos com uma grande fome e um sono terrível, todavia tínhamos todos os sentidos alerta.
Enquanto mudávamos de roupa para descer ao restaurante do hotel para o pequeno-almoço, continuávamos a olhar a porta com medo de vê-la arrombada pelo padre Dominick, devido à enésima tragédia ou a uma nova inesperada fuga.
Quando estávamos prontas para descer, a tia abriu a porta e encontrou diante de si um daqueles dois homens que estavam vestidos de preto, que nos tinham acompanhado a Dublin.
Quando chegamos ao restaurante do hotel para o pequeno-almoço, a tia explicou-me que aqueles dois homens foram escolhidos para defender-me de ataques da parte deles.
«Eles quem?».
«São pessoas devotas ao mal e à obscuridade, prontas a sacrificar a vida dos demais pela deles» explicou rapidamente a tia, adicionando o seu toucinho ao bacon.
«Isso não é instinto de sobrevivência?» perguntei desorientada.
«Não, no caso deles...de qualquer forma agora come» ordenou-me a tia.
Eu tomei um grande pequeno-almoço, mas antes de acabar, chegou o padre Dominick com o rosto tenso e exausto.
Não tinha fechado os olhos toda a noite.
«Bom dia» cumprimentamo-lo.
«Bom dia. Como estão?».
«Cansadas» sussurrou a tia.
«Também eu. Estou de rastos. Para além disso, acabei de receber um telefonema do cardeal Siringer. Temos encontro marcado por volta das três horas, na velha abadia St. George Abbey, nos arredores de Dublin».
Foram as três horas mais longas da minha vida.
Eu, a tia e o padre Dominick estivemos confinados no nosso quarto, com os dois capangas à porta, até à hora marcada.
No quarto não havia nem um televisor para se distrair e a tia e o Dominick mencionavam apenas pessoas das quais eu nunca tinha ouvido falar, que talvez estivessem presentes naquele encontro.
Por fim, deitei-me na cama a pensar, mas a minha mente estava demasiado cansada e afetada por todos aqueles acontecimentos para poder raciocinar claramente.
Adormentei-me ligeiramente e quando reabri os olhos, lá fora chovia a cântaros. Adorava chuva, mas naquele momento só serviu para tornar mais deprimente o pensamento acerca do encontro que iria ter daí a pouco tempo e que certamente mudaria o meu destino para sempre.
Arrastei-me com relutância para a porta, onde dois homens estavam à nossa espera. Escoltaram-nos até à BMW preta que nos levaria a St George Abbey.
Estava um ar húmido e sentia o frio penetrar-me até aos ossos.
Não consegui acalmar o tremor nem mesmo dentro da cabina aquecida do carro.
Meia hora depois estávamos em frente a um edifício de pedra muito velho. Acompanharam-me a uma porta secundaria que conduzia a uma escada. Fiquei curiosa quanto ao piso inferior, imerso na escuridão, do qual se ouvia o som da água que corria. Tentei aproximar-me, mas o padre Dominick empurrou-me para subir ao piso superior.
Olhei-o desconfiada e ele explicou-me brevemente: «Velha cripta em desuso».
Percorremos um longo corredor antes de chegar a uma porta.
Os dois homens pararam.
«Este é o escritório do abade Kirk, membro da Ordem. Entrem. Nós ficaremos aqui de guarda» disse o mais alto, posando a mão sobre o coldre da sua arma, que eu nem tinha notado antes.
Em vez de tranquilizar-me, aquele gesto fez-me entrar em pânico.
Até ali não me tinha dado conta do quanto pudesse estar em perigo.
Entrei naquela majestosa sala com o coração que me batia ferozmente no peito.
No interior estavam cinco homens.
Da roupa, percebi imediatamente que, o que estava sentado na grande secretária, que ocupava quase toda a sala, era o cardeal Siringer. À sua esquerda estava o padre August, que me cumprimentou apenas com um aceno de cabeça e, perto dele estava a enorme figura de um homem grisalho, que o olhava de um modo mais que insistente. Posteriormente, foi-me explicado que se tratava do abade Kirk.
À direita do cardeal estavam outros dois homens musculados e robustos, idênticos àqueles que nos acompanharam até ali.
Depois das diversas formalidades, o cardeal dirigiu-me o seu olhar cinzento serpentino e com uma voz ácida e fria, como a temperatura daquela sala, disse-me: «E assim, és tu a famosa Vera Campbell em carne e osso... Espero que te dês conta da situação».
«Na verdade, eu...».
Não tinha a mais pequena ideia do que estava a acontecer, mas o cardeal já se tinha voltado para a tia e o padre Dominick, para explicar-lhes a atual situação.
«O cardeal Montagnard foi morto com um golpe de pistola para despistar-nos, mas é óbvio que foram eles. Deve haver um espião entre nós... algum dos novos membros da Ordem, suponho. Quem quer que tenha sido, deve ter dito ao grupo do Blake que estávamos na posse de uma arma para derrotá-lo e ao seu grupo de mercenários. Uma vez na posse desta informação, começaram a mexer-se a investigar. Alguns meses atrás, encontramos alguns membros da Ordem torturados e assassinados, mas nenhum de nós pensou em algo do género, até que as fontes secretas do padre August contaram-nos o que tinha acontecido. Ao que parece estavam convencidos que esta arma era um objeto e começaram a procurar no interior das nossas sedes, mas sem resultados, até que alguém mencionou o nome do cardeal Montagnard, como o guardador de tal segredo. Só o Blake seria capaz de usar entrar em terra consagrada devido aos seus grandes poderes, mas nunca pensei que chegaria a tal ponto. Provavelmente descobriu que esta arma era indicada principalmente contra ele, por isso tentou destruí-la de todas as formas. Quando encontrou o cardeal deve ter descoberto que este instrumento era uma pessoa e não um objeto. Infelizmente, ninguém viu ou ouviu nada para além do disparo, o seu escritório e as suas salas privadas estavam organizadas, por isso partimos do princípio de que o cardeal Montagnard tenha falado».
«Não acredito. O cardeal Montagnard nunca iria colocar a vida da Vera em perigo» interrompeu-o a tia com a máxima indignação.
«Lamento dizê-lo, mas o cardeal tem que ter confessado, uma vez que esta noite Blake e os outros invadiram a quinta que vos tínhamos concedido para esta missão» revelou o cardeal Siringer com uma voz estrondosa que não admitia replicas.
«O Ahmed!» gritei temendo o pior para aquele que considerava como parte da minha família.
«Não te preocupes. Ele também está em Dublin, neste momento. Esta manhã, as minhas fontes informaram-me que reservou o voo para a Tunísia, previsto para esta tarde. Coloquei um homem nosso a protegê-lo» assegurou-me sem, contudo, suavizar o seu tom de voz.
Agradeci-lhe.
Depois, voltamos ao assunto anterior.
O cardeal Siringer tranquilizou-se e revelou-nos a última descoberta.
«Não sabemos como aconteceu, mas desapareceu toda a documentação acerca da Vera e das suas origens. Alguns dias antes, o cardeal Montagnard contou-me que tinha feito uma descoberta extraordinária que colocaria todos os trunfos da nossa parte.
Tínhamos marcado um encontro para a semana seguinte para falarmos disso pessoalmente. De qualquer forma, o cardeal antes de morrer, conseguiu escrever um bilhete que está a ser analisado neste momento. Acreditamos que esconde uma mensagem em código ou uma indicação particular, mas até agora não foi possível descobrir nada.
«O que dizia a mensagem?» perguntou a tia triste.
«Estava escrito exatamente isto: O amor gera novo amor. Só isto pode salvar da condenação».
Olhamo-nos todos um pouco atordoados.
Com todas as coisas que podia escrever nos últimos instantes de vida, escolheu uma frase bastante óbvia. Era um típico ensinamento de catequese. Lembrava-me tanto os ensinamentos do padre Dominick. Ele dizia-mo frequentemente.
«Mais nada?» tentou perguntar a tia.
«Não, com exceção a alguns papéis relacionados com árvores genealógicas de famílias de origem humilde que trabalhavam na mina, que ressaem a quatrocentos anos atrás».
Entre eles caiu o silêncio, mas antes que o cardeal abrisse novamente a boca, quis aproveitar para clarear as ideias de uma vez por todas.
«Desculpe-me, mas quem são eles? Não posso acreditar que tudo isto esteja a acontecer por minha culpa» perguntei timidamente ao cardeal.
Este último ficou todo vermelho e lançou um olhar furioso à tia e ao padre Dominick.
«Não sabe de nada? Mas como puderam esconder-lhe que existe um grupo de vampiros que está a revirar a cidade à procura dela para matá-la!».
Vampiros? Talvez percebi mal, mas não usei repetir aquela palavra para não ser ridicularizada.
«Um grupo de?» perguntei novamente, procurando o olhar da tia, que teimava em fixar a ponta dos seus pés com um ar culpado.
«Vampiros! Tens presente aqueles homens que rejeitam a graça divina para ressuscitar e nutrir-se de sangue humano?» gozou o cardeal, ao ver a minha expressão mista de descrença e medo.
Naquele momento, tentei lembrar-me de todos os vampiros que tinha visto na minha vida na televisão, mas não me vinha à mente nada a não ser um desenho animado que eu via aos sete anos, no qual o protagonista era um fantoche vampiro covarde, mas com um coração bom.
Duvidava que os vampiros de que me falava o cardeal fossem semelhantes ao fantoche.
«Não sabia que existiam realmente» gaguejei.
«Ninguém o sabe, porque a Ordem da Cruz Ensanguentada tem precisamente o dever de manter escondida esta realidade. Todavia existem e como! É muito difícil encontrá-los porque podem transformar-se noutras criaturas e têm uma força sobrenatural. É impossível matar ou capturar um deles, sem primeiro enfraquecê-lo com água benta ou prata...».
«Mas então para que servem as armas que tinham os dois homens que nos acompanharam até aqui?» perguntei.
«Os nossos guardas possuem armas muito especiais, carregadas com projéteis de prata pura» explicou-me orgulhoso.
«E depois?».
«Depois queimamo-los».
«E este Blake, porque é considerado tão perigoso?».
«Porque ele é diferente de todos os outros. Ele é o único vampiro imune à prata ou a outra coisa qualquer, mas o cardeal Montagnard descobriu que em ti existe a arma capaz de o derrotar. Ele é a fonte dos nossos problemas, porque por cada vampiro queimado, ele transforma em vampiros outros dois... é muito bom nisto porque consegue controlar-se quando se alimenta, deixando assim as vítimas suspensas entre a vida e a morte, até cederem ao vampirismo e, muitas vezes, depois decidem segui-lo, ainda que geralmente os vampiros sejam criaturas solitárias e não gostem de ligações com outros senão por breves períodos».
«Mas porque me quer logo a mim?» insisti com força.
«Esse é o verdadeiro segredo que o cardeal Montagnard levou para o túmulo. Sei apenas que és especial por causa do teu sangue. Acreditas realmente que te manteria com aquela renda mensal por todos estes anos se não fosse por um motivo bem preciso? Ao que parece, a tua anemia torna-te única, mas creio que isto seja simplesmente devido ao facto que...» comentou o eclesiástico, mas antes de terminar a frase, ouviram-se disparos, do lado de fora da porta.
Assustamo-nos todos ao mesmo tempo, antes que os dois homens arrombassem a porta, gritando-nos de escapar.
«Como souberam que estavam aqui?» perguntou enlouquecido o abade, que tinha ficado em silêncio até agora.
«Não importa. Depressa, Matt, leva a Vera para os subterrâneos. Atravessem a cripta. Ali encontrarão uma pequena porta, onde podem enfiar-vos. Sigam o túnel que vai dar a uma escada, que vos levará ao interior de um edifício abandonado de Change Lane» ordenou de forma autoritária o cardeal a um dos dois homens à sua direita. Sem perder mais tempo, Matt agarrou-me pelo braço e levou-me para fora da sala, mas eu não tinha nenhuma intenção de abandonar a tia. Ela era toda a minha família e não queria deixá-la.
Tentei protestar, mas a minha voz foi abafada pelos gritos do padre August e pelas ordens do cardeal.
Também a tia procurou alcançar-me, mas foi impedida pelo cardeal em pessoa.
Por fim, gritei com todas as forças o nome da tia, procurando libertar-me do punho de ferro daquele homem.
«Ela pertence à Ordem e deve combater» disse-me Matt, tentando arrastar-me pelo corredor até às escadas, à direita.
Numa tentativa desesperada de rever a tia, que tinha ficado dentro do escritório do abade, voltei-me e vi pela primeira vez três homens encapuçados, que vinham do outro lado do corredor a correr na nossa direção. Mal chegaram à sala, tiraram o capuz.
Os três tinham os cabelos negros. Dois deles entraram imediatamente na sala, soltando um grito arrepiante e desumano, que me provocou calafrios por todo o corpo.
Ao invés, o terceiro homem parou e fixou-me. Por um instante, os nossos olhares se cruzaram.
Notei os seus olhos azuis, quase cor de gelo, que me penetravam como um animal perante a sua presa.
Senti-me atravessada por aquelas lâminas de gelo.
Permaneci por um instante maravilhada pelo seu rosto. Era jovem.
Não sei porquê, mas esperava um velho, não um rapaz que deveria ser da mesma idade do Kevin.
Tinha um rosto muito belo, com exceção da expressão dura e ameaçadora. O meu olhar posou brevemente sobre a sua boca e li neles: «É ela».
Não consegui decifrar mais nada, porque tropecei pelas escadas.
Felizmente, o Matt segurou-me firmemente e agarrou-me para eu não cair.
Corremos rapidamente pelas escadas abaixo, até chegar à cripta escura.
Não via quase nada, mas o Matt continuava a correr, até chegar a uma zona um pouco mais iluminada.
Aos poucos, os meus olhos habituaram-se àquela escuridão.
O chão estava todo molhado e molhei os sapatos.
A dada altura, o homem parou, olhando com atenção em redor.
«O Blake está perto. Consigo senti-lo».
Não ouvia nada, mas assustei-me na mesma quando vi que tirou a arma do coldre.
Olhei à volta, mas não vi nada. Estava demasiado escuro.
De repente, vislumbrei uma sombra cair sobre o Matt.
Era o homem com os olhos azuis. Um vampiro.
Matt apontou-lhe a arma e disparou, mas este deu-lhe um golpe veloz e potente contra a mão, que o fez perder a arma e o projétil disparou no escuro.
«Foge!» gritou-me Matt, antes de defender-se de um novo ataque.
Não foi preciso repetir duas vezes, ainda que fosse de novo encantada pelo olhar daquele vampiro que me fixava de forma ameaçadora.
Sem perder tempo, corri rapidamente até ao fundo da cripta. Devia ser um lugar enorme.
Estava cansada, assustada e sozinha.
Por fim, cheguei à porta de que tinha falado o cardeal.
Tentei abri-la, mas estava bloqueada.
Dei cabo das minhas mãos ao tentar abri-la, mas não consegui fazê-lo, apesar dos meus esforços.
Não sabia o que fazer, assim, acabei por desistir e pôs-me à procura de um esconderijo alternativo.
Vi uma pequena sala escondida à minha esquerda e entrei.
Estava vazia, mas havia uma pequena cavidade, pouco visível, mesmo ao lado da entrada.
Decidi parar ali e esperar, agachada por terra. Esperava que o Matt me alcançasse em breve.
Já não sentia praticamente nenhum barulho.
Desejava voltar para junto da minha tia. Nunca me tinha afastado dela e não desejava certamente fazê-lo logo agora que estava em perigo. Estava também tremendamente preocupada com ela. Desejava com todo o meu coração que não lhe tivesse acontecido nada de mal.
Sem me aperceber, senti escorrer-me pela face duas grandes silenciosas lágrimas quentes.
Em breve, fui invadida por soluços e calafrios.
Tinha medo.
Queria voltar a casa, junto do Ahmed, com a tia e o padre Dominick.
Sentia-me sozinha e desesperada.
Tremia perante o pensamento que pudesse acontecer alguma coisa de mau a todos eles.
E a culpa era só minha.
Eu e a minha anemia.
Porque tinha que acontecer logo a mim?
Odiava-me. Com o meu nascimento tinha causado apenas preocupações e mortes. Desejava nunca ter nascido.
Continuava tão embrenhada na minha dor entre os soluços, que nem me apercebi de como o tempo passou. Nem tive coragem de me mexer.
Lembro-me apenas que a dada altura, alguma coisa me tocou, assustando-me de morte.
Procurei por todo o lado uma figura humana, mas acabei por encontrar apenas um gato que me olhava com dois olhos lindíssimos que brilhavam no escuro.
Procurei acariciá-lo e ele esfregou-se nas minhas pernas a ronronar.
Aquele pequeno gesto, me fez sorrir.
«E tu, que fazes aqui, pequenino?» sussurrei-lhe com a voz rouca do choro.
O gato continuou a enroscar-se em mim.
Por fim, saltou-me dos braços.
Consegui vê-lo melhor, apesar da vista desfocada pelas lágrimas e pela escuridão. Tinha o pelo claro, o focinho esfumado de preto e os olhos emanavam uma luz dourada.
Fiquei muito surpresa por encontrar um gato logo naquele momento.
Sempre desejei ter um gato, mas a tia era tremendamente alérgica ao pelo deles, assim nunca tinha conseguido ter um. Nem mesmo quando encontrei um pequeno rafeiro preto na estrada e fechei-o todo o dia no quarto para a tia não o ver, consegui ficar com um.
Lembro-me como a tia começou imediatamente a espirrar e a respirar mal, logo contei-lhe que tinha encontrado um gatinho.
Veio-me à mente a sua cara perturbada, enquanto dizia-me para levá-lo dali para fora o quanto antes.
Acabou por me salvar o padre Dominick que levou o gato, prometendo-me que lhe ia encontrar uma família amável capaz de cuidar dele.
Quem sabe que fim teve aquele gatinho?
Não soube mais nada dele.
De qualquer forma, depois daquele episódio, passou-me a vontade de ter um gato.
Naquele momento, aquele gato pareceu-me uma pequena consolação divina, para ajudar-me a não me sentir tão sozinha.
Era a primeira vez que estava sem a minha tia e isso fazia-me sentir perdida, sobretudo nesta situação, onde arriscava de morrer.
Queria a minha vida de volta.
Fico devastada ao pensar em tudo aquilo que tinha perdido.
Recomecei a chorar, sem me dar conta que algumas lágrimas caíam sobre o pelo do gato, que, entretanto, continuava a acariciar delicadamente.
Não sabia quanto tempo tinha passado, mas sentir nas mãos o pelo suave do gato tranquilizou-me e relaxou-me de tal forma que, acabei por adormecer esgotada pelas emoções.
Não era um verdadeiro sono profundo.
Na minha mente continuavam a passar imagens de todo o tipo, relacionadas com o passado e com o presente, mas em todo o lado estavam aqueles olhos azuis que me prometiam morte.
Acabei por acordar sobressaltada.
Senti-me desorientada, mas o solo duro, a parede fria contra as minhas costas e a posição desconfortável recordaram-me imediatamente onde me encontrava.
Rapidamente, tentei lembrar os últimos acontecimentos.
O gato.
Não estava mais sobre as minhas pernas e não sabia onde estava.
«Gatinho, onde estás?» sussurrei, procurando-o com o olhar no escuro da sala.
«Foi-se embora» murmurou uma voz da outra parte da pequena sala, fazendo-me saltar de medo.
«Matt?» pronunciei esperançosa.
Logo a seguir, ouvi passos lentos na minha direção.
De repente, uma figura preta aproximou-se na minha frente.
Reconheci os sapatos pretos.
Depois o meu olhar levantou-se em direção às calças. Pretas.
De seguida, um longo impermeável de pele negra, aberto à frente deixava entrever uma camisa de seda negra ligeiramente desabotoada.
Não me lembrava que Matt usasse um impermeável.
Tomada pelo nervosismo, levantei ainda mais rapidamente o olhar, até que ficou novamente refém daqueles olhos azuis, que conseguiam destacar-se apesar da pouca luz. Era ele. O vampiro.
Sufoquei um grito.
O meu medo fê-lo dobrar os ângulos da boca num sorriso satisfeito, mas ao mesmo tempo ameaçador.
«Não sou o Matt, desculpa-me. Apresento-me. Blake» apresentou-se, fazendo uma vénia. Apesar daquela aparente gentileza, mostrava perfeitamente a sua satisfação cruel por ter-me encontrado.
Blake. Era ele. O vampiro invencível que me queria morta a todos os custos.
Continuei a olhá-lo fixamente, sem me aperceber que me tinha estendido a mão para me ajudar a levantar.
Apercebi-me que não tinha forma de fuga, mas procurei levantar-me sem ele. Tinha demasiado medo de tocá-lo.
Apoiei-me na parede gelada e levantei-me, apesar da dor nas pernas, que tinham ficado encolhidas numa má posição por não sei quanto tempo. Senti imediatamente um formigueiro nos pés e isso fez-me perder o equilíbrio por um instante, mas o vampiro com um movimento rápido segurou-me por um braço e ergueu-me.
Aquele gesto repentino me fez ficar aterrorizada.
Se estivéssemos numa outra situação, tinha-lhe agradecido de bom grado, mas naquele momento apercebi-me apenas que estava nas mãos do inimigo.
Procurei libertar-me com um empurrão, mas o seu punho era firme e depois da minha tentativa tornou-se ainda mais rígido, quase doloroso.
«Vamos» ordenou-me com um tom de voz que não admitia réplicas.
«Onde me levas?» perguntei hesitante tentando manter a distância.
«Para fora daqui» respondeu-me distraidamente, acompanhando-me à porta pela qual devíamos escapar eu e o Matt.
Não pronunciei uma palavra, mas sabia que aquela porta não se abria, assim teríamos que voltar para trás e talvez pudesse pedir ajuda quando chegássemos.
Embalada pelas minhas esperanças, deixei-me transportar sem protestar.
Blake forçou um pouco a porta, sem deixar o meu braço e esta abriu-se rangendo.
Vi todas as minhas esperanças desaparecerem, mas não tinha nenhuma intenção de ir-me embora sem ao menos voltar a ver a minha tia.
Comecei assim a fincar os pés, apesar do formigueiro que ainda me incomodava.
«Espere, quero ver a minha tia Cecília» supliquei-lhe.
«Não» respondeu-me simplesmente, continuando a arrastar-me pelo novo corredor que aparecia diante de nós.
Naquele caso, não aceitava uma resposta do género.
«Não vou embora daqui sem a minha tia!» levantei a voz estridente com toda a minha coragem.
O vampiro parou e voltou-se para mim com um olhar assassino.
Não me interessava se tinha provocado o seu instinto sanguinário, não tinha intenção de ceder facilmente.
Estava numa pilha de nervos. Sentia novamente as lágrimas roçarem-me os olhos, mas correspondi na mesma o seu olhar.
«Agora saímos daqui, sem a tua tia e tu vais parar de gritar. Fui bem claro?».
«Não» murmurei desesperada.
«Preferes que te mate aqui agora?» gritou já irritado pela minha insistência.
Parecia que me tinha esbofeteado, de tal forma foi violenta a frase.
Não consegui acrescentar mais nada.
Rendi-me ao seu punho e ao seu passo determinado e rápido.
De repente, tropecei nalguma coisa que sujava o chão e caí desastradamente por terra, raspando o joelho e rasgando as calças naquele lugar.
Mal vi sair sangue da ferida, cobri imediatamente o joelho por medo de que a visão do sangue o excitasse, uma vez que era um vampiro.
Olhei-o, à espera que não tivesse visto a cena, mas ele já estava ali a olhar-me fixamente indiferente.
«Está tranquila, não perco a cabeça por duas gostas de sangue» desabafou irritado como se me tivesse lido a mente.
Como comecei a cambalear, abrandou o passo.
Por fim, chegamos a uma escada de madeira que conduzia a um alçapão escondido no sótão.
«Tenho que a abrir. Tu, ficas aqui. Aí de ti se tentas escapar. Juro que te volto a apanhar e faço-te pagar» ameaçou-me, deixando-me o braço.
Olhou-me fixamente mais um instante e depois começou a subir as escadas.
Mal chegou ao cimo, começou a arrombar a fechadura.
Tinha chegado a hora.
A hora de escapar.
Estava prestes a abrir o alçapão, depois de ter arrombado o cadeado com as mãos que pareciam garras de aço.
Sem perder mais tempo, comecei a correr apesar da dor no joelho ferido.
Corri a toda a velocidade. O importante era não olhar para trás e ter sempre em vista a meta.
Senti um grito de raiva atrás de mim, mas não fiz caso e corri ainda mais rapidamente que antes.
Por sorte, tinha tomado uma hemodose há pouco tempo, por isso estava em forma.
Mais uns metros e chegaria às escadas para subir para a abadia.
Já tocava o corrimão. Mais um passo e...
Senti um aperto no meu braço esquerdo e depois cobriu-me completamente, tirando-me o fôlego.
Fui atirada para trás contra o seu peito.
Blake tinha-me apanhado.
Voltei-me e gritei-lhe na cara: «Deixa-me!».
Nem sabia de onde vinha a coragem para enfrentá-lo assim tão abertamente, mas não aguentava mais. Estava prestes a explodir e não me importava se queria matar-me naquele momento.
Recusava de fazer a pobre vítima indefesa. Sentia uma força e um orgulho crescerem dentro de mim.
Olhei o seu rosto incrédulo perante a minha reação.
«Quero a minha tia, está claro?» repeti a dose.
«A tua tia não está mais aqui. Toda a abadia foi evacuada há três horas atrás» explicou-me com calma.
«Para onde foram?» perguntei baixinho, transtornada pela ideia de ter sido abandonada.
«Não me interessa. Encontrei o que procurava».
Ignorei a sua alusão.
«Quero apenas saber se está bem».
«Acho que sim».
«Achas?»
«Quando fugiu com o cardeal, estava a sangrar do braço. Foi isto que me disseram» disse Blake apressado.
Por momentos, as pernas cederam de alívio ao saber que ainda estava viva, ainda que ferida.
Suspirei profundamente por um instante, mas foi preciso apenas uma fração de segundo para perceber que fiquei sozinha.
«Bem, vamos agora?» ele perguntou com um tom de voz que não aceitava certamente um não como resposta.
Não sabia mesmo o que fazer, mas por agora estava sozinha e a força do vampiro era claramente maior que a minha.
Ninguém viria proteger-me, nem mesmo o Matt.
«E o Matt?»
«Se por Matt queres dizer o homem que te escoltava, eu tratei dele»
«O que queres dizer com isso?» gaguejei recusando pensar que estava morto por minha culpa.
«Nada. Agora vamos».
«Mas eu...».
«Chega de perguntas. Trata de caminhar e depressa» ordenou, arrastando-me novamente para o alçapão aberto.
Senti o joelho latejar e estava exausta, mas não queria apoiar-me nele.
Subir a escada foi uma verdadeira tortura. O joelho continuava a esbarrar nos degraus. Além disso, começava a sentir o cansaço da corrida. Sabia que com os meus problemas de saúde, devia evitar demasiada atividade física, caso contrário, seria necessário tomar uma hemodose antes do habitual e, naquele caso, não fazia ideia como obtê-la.
Quando saí do alçapão, estava num edifício abandonado, com as paredes cheias de mofo e grandes janelas.
Lá fora já estava escuro e continuava a chover.
«Mas que horas são?» perguntei desorientada.
Quando entrei na abadia faltava pouco para o almoço e agora como é que já estava escuro?
Talvez houvesse um eclipse.
«São quase cinco»
«O quê? Mas como é possível?»
«Estiveste escondida naquele buraco com aquele gato nos braços a chorar e acabaste por adormecer. Dormiste por três horas antes de acordar. Nem te apercebeste da minha presença» explicou-me, fazendo-me corar de vergonha. Viu-me chorar, um luxo que não concedo nunca, com exceção de algumas ocasiões.
Só a tia me tinha visto chorar uma vez e isso me tinha deixado muito chateada na época.
Não deixava que ninguém visse as minhas fraquezas e agora senti-me perdida diante do olhar do Blake que me tinha visto naquele estado.
Provavelmente tinha também os olhos vermelhos e o rosto ainda pálido, como acontecia sempre depois de ter chorado.
«Quem sabe o monstro que eu estou agora?» desdramatizei.
«Não sei. É a primeira vez que vejo alguém chorar. Geralmente, as pessoas gritam e suplicam-me para que eu as poupe, não choram a pensar na tia ou na sua casa» respondeu-me olhando-me com um ar interrogativo.
«E tu como sabes isso?» perguntei-lhe tratando-o por tu.
«Falavas no sono. Continuavas a repetir tia, Ahmed, casa, quinta, vampiros. Também falaste no meu nome» informou-me, agarrando no seu telemóvel e enviando uma mensagem sabe-se lá a quem.
Sabia que falava enquanto dormia. A tia mo dizia sempre.
Foi sempre algo que me envergonhou e naquele momento fiquei ainda mais vermelha.
«Então, onde vamos?» perguntei-lhe para distraí-lo de mim, uma vez que começou a olhar-me curioso.
Esta pergunta fê-lo voltar a ficar sério.
«À minha casa».
«Onde?» voltei a perguntar estupefacta.
Blake não teve tempo de dizer mais nada, um clacson na estrada buzinou inesperadamente.
«São eles. Vamos» disse-me, voltando a agarrar-me pelo braço.
«Eles quem?»
«Vampiros, obviamente».
«Olha que para mim, um dá e chega. Não é preciso...» tentei fazê-lo mudar de ideias quanto a dar-me a comer aos seus amigos, mas ele soltou uma estrondosa gargalhada, que quebrou todas as minhas defesas.
Não podia acreditar. Tinha-o feito rir.
«Não tenho nenhuma intenção de partilhar-te com os meus amigos, se é isso que pensas» assegurou-me num tom de voz claro.
Levou-me à saída do edifício, avisando-me para não fazer cenas, uma vez lá fora.
«Os meus amigos não gostam de contratempos» aconselhou-me.
Obedeci.
Saímos. Estava a parar de chover.
Estávamos no centro da cidade, no meio de diversos passantes. Como é que ninguém se apercebia do perigo que corria ao passear tranquilamente pelas estradas de uma cidade apinhada de vampiros?
Deixei-me arrastar até um Ford azul, estacionado mesmo à nossa frente. Nos lugares de trás estavam duas pessoas, ou melhor vampiros. Ambos eram pálidos e loiros. O que ia ao volante era muito gordo e velho.
Tive muita vontade de correr pela estrada e afastar-me, mas a mão de Blake era muito forte.
«Nem tentes» disse-me. Será que conseguia ler o pensamento?
Num instante, Blake abriu a porta do carro e fez-me acomodar no banco detrás, sentando-se depois perto de mim.
Mal a porta se fechou, o condutor pôs o carro em andamento sem sequer pedir indicações acerca da direção, enquanto o outro vampiro ao seu lado começou a olhar-me fixamente.
Entretanto o carro partiu a toda a velocidade, fazendo-me balançar para a direita e para a esquerda, levando-me, a dada altura, a bater contra o braço do Blake, que acabou por tranquilizar-se com a minha instabilidade e decidiu abraçar-me contra ele.
Contudo, desta vez o seu aperto foi firme, mas delicado.
Encontrava-me com o rosto encostado à sua camisa, logo onde estava desabotoada.
Sempre tive um ótimo olfato e não podia não sentir o seu perfume, tão masculino e sensual.
Estava prestes a me deixar levar por aquela sensação descuidada de perigo, quando algo me chamou a atenção. O homem sentado à frente olhava-me intensamente.
«Blake, esta rapariga humana tem um odor fortíssimo! Nunca senti um cheiro desde tipo vindo de um humano. É mesmo avassalador. Está-me a deixar maluco!» o homem desabafou inesperadamente.
Inicialmente, preocupei-me por não me ter lavado bem naquela manhã, apesar do duche que tomei.
Depois, ao notar como o vampiro lambia os lábios, comecei a assustar-me seriamente. Involuntariamente escondi-me ainda mais no peito do Blake, que se apercebeu imediatamente do meu desconforto.
«Will, pára com isso!».
«Por favor, não digas que não te apercebeste do seu perfume» provocou-o.
«Apercebi-me. É particular. Eu também levei algum tempo antes de poder aproximar-me sem atacá-la, mas depois habituas-te» procurou tranquilizá-lo Blake, mas o outro vampiro parecia cada vez mais voraz e próximo.
Continuava a esticar-se sobre o banco da frente para cheirar-me melhor.
O meu coração começou a bater fortemente de medo.
Percebi demasiado tarde que aquela sensação o excitava ainda mais.
Num instante, dei por mim a ser agredida pelo Will que tentou atacar-me o pescoço com os caninos alongados e o olhar hipnotizado. Por sorte o Blake interveio mesmo a tempo e segurou-o pelo pescoço, antes que este pudesse chegar a mim.
«Controla-te!» gritou-lhe o Blake furioso.
«Não consigo! Este cheiro é demasiado forte» gritou por sua vez Will debatendo-se.
«Lembra-te daquilo que nos disse o cardeal Montagnard. O seu sangue é uma arma contra nós. Quero consultar Jack Marley antes de transformá-la em vampiro ou fazer outra coisa qualquer» avisou-o e Will voltou ao seu lugar.
Então era verdade que o cardeal Montagnard lhe tinha contado algo sobre mim. Ainda bem que lhes tinha avisado para não me morderem, assim podia ganhar tempo.
Estava ainda perdida nos meus pensamentos, quando o carro parou em frente a um antigo edifício abandonado com pequenas janelas.
Fui de novo tomada pelo medo de estar presa sozinha naquele casebre.
«Por favor, Blake, sai depressa e leva contigo essa rapariga antes que lhe salte em cima também eu» disse-nos o condutor, que até aí não tinha aberto a boca.
«Sim, desculpa. Obrigada, Peter» cumprimentou-o Blake, saindo do carro e ajudando-me a descer.
Dirigimo-nos para o edifício sombrio. Blake continuou a agarrar-me pelo braço, mesmo quando abria a porta de metal com as chaves que tirou do bolso do impermeável.
Fora do carro, fazia muito frio e comecei a tremer uma vez que trazia uma simples camisola de mangas compridas e um casaco de ganga, bastante leve.
Pouco depois fui levada para o interior da estrutura. Fiquei maravilhada pelo cenário com que me deparei.
Estava de repente num grande apartamento luxuosíssimo e aquecido. Havia um grande salão, com um grande sofá em pele branco virado para a parede, na qual estava encaixado um televisor plasma de cinquenta polegadas.
As paredes estavam decoradas com diversos quadros de variadas dimensões.
Por trás da sala, via-se uma cozinha moderna de forma arredondada. À esquerda, distinguia-se uma enorme mesa de doze lugares com outras tantas cadeiras, enquanto à direita, entre a sala e a cozinha, era possível vislumbrar uma espaçosa casa de banho, meio escondida por portas de vidro colorido e fosco.
Por cima da casa de banho, estava um pequeno sótão, no qual se distinguia uma cama.
Todo o apartamento tinha sido decorado com um estilo industrial, como se podia notar pela forma das cadeiras, do sofá, da escada que conduzia ao sótão e da cozinha elétrica com o balcão em aço.
«Este lugar é lindíssimo!» exclamei, ao caminhar lentamente no interior daquele grande open space.
«És a primeira pessoa a dizê-lo» admitiu Blake, deixando-me espantada. Não podia acreditar.
«Ficarás aqui por alguns dias, por isso põe-te cómoda. Nunca tive hóspedes não vampiros, por isso se precisares de alguma coisa, pede à vontade» acrescentou depois, tirando o impermeável. De repente, senti-me um hóspede e não uma prisioneira.
Também Blake pareceu-me mais relaxado e sem nenhuma intenção de fazer-me mal, assim fiz-lhe a vontade fingindo estar cómoda. Para além disso, não acreditava que me quisesse fazer mal, caso contrário já me teria matado na cripta ou não me teria certamente salvado do Will. Uma pequena parte de mim, sentia-se segura com ele, ainda que não soubesse até quando.
Sentei-me com calma no sofá em pele branco.
Mal apoiei-me naquele sofá macio, dei-me conta do cansaço e das dores nos músculos que sentia. Encostei-me às costas do sofá, respirando profundamente.
«Queres ir à casa de banho refrescar-te?» perguntou-me, tentando esconder o seu desconforto com a amabilidade.
Surpreendeu-me muito esta sua mudança e por instantes pensei que não seria um animal bárbaro tendo aquela habilidade.
Acima de tudo, até ao momento, ainda não tinha mostrado que queria fazer-me mal. Aparentemente parecia ser melhor do que aquilo que me tinha descrito o cardeal Siringer. De certeza que era menos perigoso que o Will.
Precisava mesmo de um banho, mas não me atrevia a depositar assim tanta confiança.
Levantei-me do sofá e notei imediatamente que tinha deixado uma enorme mancha suja na pele branca. Tinha dormido durante horas naquele buraco na cripta. Como pôde pensar que não estava assim tão porca?
Se estivesse em casa com a tia, seria repreendida.
«Oh, meu deus! Sujei o sofá. Peço desculpa, de verdade. Se me deres uma esponja, eu...» tentei pedir desculpa imediatamente com um ar culpado. Tinha acabado de arruinar o seu paraíso perfeito e temia que o tivesse irritado.
«Está calma. Eu trato disto. Tu lavas-te que, entretanto, eu encomendo o jantar»
«Porquê? Vocês vampiros comem?» deixei escapar sem me dar conta.
«Geralmente não, mas tu sim, suponho. Tens preferências?»
Queria recusar, mas os rumores da minha barriga e o cansaço levaram a melhor.
«Carne vermelha, se possível» gaguejei envergonhadíssima, dirigindo-me à casa de banho, perguntando-me se me iria envenenar.
«De acordo» disse-me, ao tirar o telemóvel do bolso das calças.
Entretanto, fechei-me na casa de banho. Os azulejos eram verdes, como os do pavimento, se bem que de uma tonalidade mais clara.
Podia escolher entre a banheira ou o chuveiro.
Escolhi a coisa mais rápida. Não queria ficar muito tempo naquele banho e depois as paredes opacas do chuveiro proteger-me-iam de possíveis indiscrições.
Despi-me rapidamente e meti-me depressa dentro do chuveiro. O jato de água quente caiu-me sobre a cabeças e as costas, relaxando-me instantaneamente.
Permaneci muito tempo debaixo daquele jato antes de usar o shampoo com perfume de carvalho que encontrei na beira da banheira.
Esfreguei o sabão em mim com calma, mimada por aquele perfume que me recordava vagamente aquele de Blake.
Apercebi-me de estar tão cansada e trastornada que não consegui estar assim tão alerta como queria e devia.
Depois de limpar-me, saí com cautela do chuveiro e apercebi-me que o Blake tinha pendurado duas toalhas e roupa limpa, mas enorme, na borda da banheira: uma camisola verde e calças desportivas pretas que se apertavam com um laço na parte inferior.
Provavelmente queria certificar-se que não voltava a fazer porcaria, como a do sofá.
Vesti-me rapidamente e saí do banho com os cabelos ainda molhados, que me escorriam sobre as costas.
As roupas tinham o cheiro do Blake e aquele odor cobriu-me num ternurento abraço. Apesar de ser um vampiro, Blake tinha realmente um bom perfume. Era a primeira vez que estava em contato com a intimidade de um homem: a sua casa, a sua roupa, o seu perfume...
Mal entrei no salão, viu-o atrapalhado com o fogão e a esvaziar dois sacos de compras, que estavam apoiados no balcão da cozinha.
Aquela atmosfera tão familiar, quase íntima que se tinha formado, tranquilizou-me, por isso, decidi aproximar-me.
Além disso, a tia Cecília dizia sempre que se obtinha mais coisas com boas maneiras, logo, decidi comportar-me de forma gentil.
«Cá estou! Precisas de ajuda?» perguntei, vendo-o com dificuldades em acender o gás.
Blake ficou a olhar fixamente para o fogão, antes de virar-se para mim. Tinha um olhar indecifrável, mas ficou a observar-me durante muito tempo. Por fim, aproximou-se, agarrou uma madeixa dos meus cabelos molhados e com um movimento muito lento começou a brincar com eles. Parecia hipnotizado, como eu estava pelos seus olhos magnéticos e pela inesperada carícia, que me fez arrepios por toda a coluna.
Depois, de repente afastou a mão de mim, como se se tivesse queimado por aquele contato e continuou a olhar fixamente a sua cozinha imaculada.
«Estás a pingar o chão. O secador está no armário debaixo da pia» murmurou com um tom de voz aborrecido, mas ao mesmo tempo perturbado.
Resmunguei uma espécie de desculpa e fui a correr para a casa de banho buscar o secador. Enxuguei o cabelo o mais rápido possível, tentando penteá-lo como podia.
«Trouxe-te isto» ouvi uma voz atrás de mim, que fez-me saltar de susto.
Voltei-me e estava de frente com o Blake. Estava a passar-me uma bolsa.
«Peter, o homem que nos guiou para cá, trouxe-te umas coisas pensando que te poderiam ser úteis» disse-me.
Peguei no saco e abriu-o. Tinha um pente, uma escova de dentes, um creme hidratante e um pacote de pensos.
«Obrigada» sussurrei, mas Blake já tinha saído da sala.
Penteei-me à pressa, deixando que os cabelos me caíssem macios sobre as costas.
Depois de ter-me preparado, senti-me muito melhor.
Meti também um penso no joelho ferido e fui ter com o Blake.
Mal me viu, informou-me imediatamente acerca do jantar.
«Mandei o Peter comprar de comer. Espero que corra tudo bem. Mandei-o porque foi transformado em vampiro há poucos anos e conhece bem os hábitos atuais.»
Espreitei para dentro dos sacos.
Estavam lá vários congelados, um preparo para puré de batata e quatro grandes e espessos bifes de vaca.
Uma vez que via Blake completamente perdido, decidi tomar conta da situação.
Agarrei imediatamente na carne e pôs-me a procurar uma frigideira.
Felizmente, encontrei-a juntamente com pratos, talheres e copos.
Peguei no que era necessário e preparei a mesa.
Mostrei ao Blake como acendia o fogão.
«Primeiro tens que virar o botão e depois premir o botão para ligar, vês?».
A seguir aqueci bem a frigideira e coloquei dois bifes. O cheiro da comida abriu-me uma brecha no estômago. Tinha uma fome terrível.
Fi-los cozer pouco. Gostava deles malpassados.
Por fim, posei o meu prato na mesa e sentei-me, pronta a deliciar-me com aquele bife.
Blake sentou-se perto de mim e começou a observar-me intrigado.
Debaixo do seu olhar inquisidor cortei a carne com a faca, deixando que o sangue do seu interior escorresse no prato.
Parecia manteiga, tal forma era tenra.
Meti na boca um grande bocado e saboreei aquele gosto a que estava habituada há anos, mas que definia sempre como delicioso.
Reparei imediatamente no olhar de novo indecifrável de Blake. Era impossível saber em que estava a pensar.
«Queres um pouco?» perguntei-lhe para quebrar o gelo.
Acenou com a cabeça «Devo admitir que observar-te, também me deu vontade de provar esse bife. Há seculos que não toco em comida normal».
Tentei ignorar o significado daquela última frase e concentrei-me em cortar um bocado da minha carne e metê-la num prato.
Fiquei maravilhada pelos seus modos refinados e elegantes de cortar a carne e levá-la à boca, mastigando-a lentamente.
«Boa» admitiu depois de ter engolido um bocado.
Sorri-lhe satisfeita, continuando a comer.
«Não te repugna todo este sangue?» perguntou-me outra vez.
«Nem por isso. Estou habituada. Em casa como-a todos os dias» revelei.
«Também és uma vampira?» provocou-me.
«Não, sou anémica» expliquei com um tom de voz ligeiro.
«Não é verdade» declarou com um tom de voz firme e o olhar desconfiado.
«Garanto-te. Tenho uma forma muito rara de anemia, que me enfraquece muitíssimo. Por isso, tenho que seguir uma determinada dieta. Sempre foi assim desde que nasci» contei, esperando não revelar nada comprometedor.
«Tu não és anémica» confirmou convicto.
«Digo-te que sim».
A sua determinação começou a deixar-me nervosa.
«Não tens o cheiro de um anémico, fraco e insípido. Pelo contrário, o teu é intenso e persistente. É tão forte que se sente ao longe. Foi precisamente devido a esta tua característica que consegui encontrar-te rapidamente naquela cripta. Portanto, não és anémica».
«Em vez sim».
«Não».
«Sim».
Aquela conversa estava a começar a deixar-me em crise.
A tia não me mentiria sobre algo do género, mas é também verdade que nos últimos dias descobri que muitas das coisas que tinha sempre acreditado, eram apenas um monte de mentiras.
Todavia não podia acreditar que também esta fosse uma aldrabice. Eu ficava realmente mal e me enfraquecia facilmente se não tomava as minhas hemodoses. Tinha que ter forçosamente uma anemia.
Mas e se tivesse algo mais grave?
A tia não me mentiria sobre isto!
Estava perturbada por esta dúvida que estava sementada na minha mente. Não, não era possível! Mas...
Senti os olhos encherem-se de lágrimas. Mais um pouco e teria cedido. Ergui-me e o Blake fez o mesmo.
Com toda a força que me restava no corpo, gritei-lhe com desprezo: «Mas o que te interessa, vampiro? Eu sou anémica. Fim da discussão».
Por um instante Blake olhou-me incrédulo, mas recuperou depressa e procurou irritar-me imediatamente.
«Está bem, não vás pensar em chorar outra vez» provocou-me, ao ver-me à beira das lágrimas.
Noutras circunstâncias, iria me recompor orgulhosa e não faria caso daquelas provocações manipuladoras, mas naquele momento, depois de um dia tão arrasador, a minha mente não foi assim tão reativa.
Agi sem pensar e dei-lhe um estalo em cheio no rosto com toda a força que tinha no corpo. Naquele gesto estavam todo o meu desespero e a minha raiva. Era tudo culpa sua se me encontrava naquela situação!
Durante um longo segundo Blake não mexeu um músculo, enquanto deixei espaço às lágrimas. Era a primeira vez que batia em alguém e estava transtornada. Tremia de raiva e de frustração.
De repente, Blake agarrou-me os braços com dois braços letais, emitindo um rugido feroz que me parou a respiração, enquanto aproximava o seu rosto tenso de raiva ao meu, fixando-me com os olhos gelados e ameaçadores. Vislumbrei os seus caninos alongados surgirem da boca.
Dei-me conta do que tinha feito e senti-me ir abaixo.
Tentei libertar-me das suas garras, mas foi impossível.
«Não queria...» sussurrei com um tom de voz baixo com o olhar fixo nos seus dentes.
Senti por um instante o seu apertão ainda mais insistente, mas depois deixou-me, afastando-me violentamente dele.
«Vai-te embora» rosnou, indicando-me o quarto de dormir no sótão.
«Eu...»
«Vai-te embora!» gritou-me furioso, fazendo-me sobressaltar.
Sem deixá-lo repetir novamente, corri para as escadas e refugiei-me no quarto completamente aberto ao piso inferior.
A cama estava precisamente colocada ao lado do corrimão de metal e daquela posição era possível ver todo o apartamento de cima: o televisor, o sofá, a cozinha.
Sem despir-me, enfiei-me debaixo do cobertor preto da cama.
Aproximei-me do parapeito. Podia ver o Blake que levantou os pratos e depois deitou-se no sofá.
Acendeu a televisão que estava na parede em frente e deixou que uma imagem passasse no ecrã sem som.
Permaneceu durante muito tempo deitado no sofá com os olhos fechados, sem olhar o ecrã.
Não pude evitar admirar a sua beleza.
Para além do físico jovem, perfeito, elegante, harmonioso com as ancas estreitas e as costas largas, tinha um rosto estupendo. Os cabelos negros brilhantes, a pele clara, o nariz direito, os lábios sensuais e os olhos azuis, que não conseguia parar de olhar fixamente.
Eram olhos muito mais claros e frios que os do Kevin, mas mais fascinantes e charmosos.
Não podia acreditar. Tinha acabado de o comparar com o Kevin, o amor da minha vida. Como fui capaz?
E ainda assim, naquele momento, o Kevin pareceu-me tão longe e pequeno. Quem sabe se se questionava acerca do que me teria acontecido?
Não percebi o motivo, mas naquele momento não me interessava muito.
O padre Dominick tinha mesmo razão quando me dizia que me sentia apenas atraída pelo Kevin, mas que o amor era outra coisa. Quem sabe se algum dia irei realmente amar intensamente alguém?
Com estes pensamentos e continuando a olhar fixamente o Blake, deitado imóvel no sofá, adormeci.
Sonhei que o Kevin me chamava. Tentava alcançá-lo e quando finalmente consegui abraçá-lo, descobri que era o Blake.
UNIÃO
Quando acordei descobri que já era de manhã.
Olhei ao redor e veio-me imediatamente à cabeça a minha nova situação.
Levantei-me e desci ao piso inferior.
Enquanto descia as escadas, decidi que aquele ia ser um dia decisivo. Queria saber o que o Blake queria fazer de mim.
Tinha que saber. Estava farta de brincar ao gato e ao rato.
Tentei chamá-lo, mas não obtive resposta.
Estava um silêncio sepulcral naquela casa.
Talvez estivesse realmente sozinha.
Provavelmente o Blake tinha saído.
Haveria momento mais oportuno para deixar o caminho livre?
Era o meu momento.
Sem fazer barulho, aproximei-me da porta de entrada e posei a mão na maçaneta.
«Chamaste-me?» exclamou o Blake atrás de mim, fazendo-me voltar num clique.
Dei por mim em frente ao corpo seminu de Blake. Estava completamente molhado, com uma toalha azul à volta da cintura.
«Eu...Sim. Pensava que estava sozinha» gaguejei cruzando-me com os seus lindíssimos olhos, rodeados por alguns tufos de cabelo negros rebeldes, que lhe caíam sobre o rosto, enquanto algumas gotas de água escorriam-lhe sobre o peito, seguindo a linha dos seus peitorais e da sua barriga lisa e musculada.
Era ainda mais lindo do que imaginava.
De repente, senti o coração bater-me forte no peito e a garganta a arder. Vê-lo daquela maneira tinha-me afetado e não era pouco.
«Com que então querias dar uma volta?» perguntou-me ironicamente, trazendo-me de volta à realidade.
«Não, queria apenas assegurar-me que a porta estava bem fechada. Sabes, temia que algum mal-intencionado...» menti descaradamente.
«Tomas-me por estúpido?».
Não consegui responder diante daqueles olhos em brecha que se tinham tornado de novo ameaçadores.
Sem perder mais tempo, arrastou-me para longe da porta, em direção à cozinha.
«Prepara o teu pequeno-almoço e ai de ti se tentas de novo enganar-me» ordenou-me com um tom de voz autoritário.
Não ousei contradizê-lo. Abri o frigorífico e tirei o sumo de frutas que o Peter tinha comprado no dia anterior.
Bebi apenas um copo. Não tinha fome, por isso não comi nada.
Entretanto o Blake tinha começado a vestir-se. Usava umas calças de ganga azuis, enquanto o tronco continuava nu e parecia estar mais sereno.
Tinha que enfrentá-lo absolutamente!
«Blake, preciso de saber» comecei com calma e decidida.
«O quê?».
Ganhei coragem.
«O que queres fazer de mim?».
Blake olhou-me por um instante, depois soltou uma risada amarga.
«Vejamos... Usaste escapar mais que uma vez, apesar das minhas ameaças. Ontem à noite esbofeteaste-me e não pareces querer te submeter a mim.... Superaste todos os limites, fazendo-me perder a paciência mais que uma vez. Asseguro-te que por muito menos, teria desfeito qualquer outro» confessou-me.
Estava decidida.
«Logo?» pressionei-o.
«Não sei. Existe em ti algo que quero descobrir, mas primeiro preciso de falar com uma pessoa» respondeu-me com um ar sério.
«Será que eu poderia voltar a estar com a minha tia, até que tu contates essa pessoa?» tentei.
«Não».
«Porque não?» lamentei-me.
«Porque decidi assim».
Perdi novamente a paciência.
«Mas quem és tu para decidires acerca da vida dos outros?» gritei irritada.
«Será possível que nunca consigas aceitar uma decisão minha sem levantar discussões?».
«Obviamente não, uma vez que isto diz respeito a mim e só a mim!».
«Devia consultar-te?» perguntou sarcástico Blake.
«Exato e dir-te-ia que sou absolutamente contra a ideia de permanecer presa nesta gaiola dourada. Não te apercebes do sacrifício que me estás a pedir».
Sabia que estava novamente a testar a sua paciência.
«Sacrifício? Eu sacrifico-me, não tu. Se fosse por mim, eu ter-te-ia devorado viva, pelo menos ias parar de chatear-me com as tuas queixinhas e fazer-me perder a calma com o teu odor tão irresistível. Contigo nas proximidades, tenho que estar sempre a controlar os meus instintos. Agradece que tenho um ótimo autocontrolo, em vez de ser como o Will! E como se não chegasse, às vezes o teu odor torna-se ainda mais doce e atraente, como há instantes atrás. Não sei o que aconteceu, mas tu, minha querida, és seguramente uma arma contra mim, uma vez que, mais cedo ou mais tarde, vais fazer-me enlouquecer. Desculpa incomodar-te, mas és tu a mais perigosa entre nós. Bem que o cardeal Montagnard alertou-me acerca de ti, avisando-me para não me deixar tentar ou haveria consequências. Quero descobrir o motivo deste teu cheiro tão hipnótico e depois decidirei se matar-te imediatamente ou transformar-te em vampira» explicou-me enfurecido.
«Não me agrada nenhuma das duas perspetivas» ripostei, fazendo-lhe perder completamente as estribeiras.
Com um passo firme, veio para cima de mim e prendeu-me pela garganta.
As suas mãos estavam geladas. Era a primeira vez que ele me tocava com a sua pele nua e foi eletrizante como sensação.
Não sabia explicá-lo, mas não conseguia assustar-me.
O meu coração começou novamente a bater cada vez mais forte, mas não de medo, mas por uma emoção indefinida muito mais profunda e impetuosa.
«Não tens medo». A sua não era uma pergunta, mas uma simples constatação. Era a verdade.
«Este perfume novamente» prosseguiu, percorrendo as mãos ao longo do meu pescoço com movimentos delicados.
Aproximou o seu nariz à cavidade da minha garganta.
Estava tão agitada pela sua proximidade, que não pensei na possibilidade que pudesse morder-me.
Sentia a ponta fria do seu nariz percorrer o meu pescoço até à face esquerda.
Parecia que tinha recebido um choque elétrico.
Os nossos rostos tocavam-se, podia sentir a sua respiração gelada sobre a minha pele, enquanto os seus olhos enfeitiçavam os meus, embalados naquele vértice de sensações nunca antes experimentadas.
Desta vez parecia ser ele a estar enfeitiçado por mim, enquanto o seu corpo encostou-se completamente ao meu. Através da camisola podia sentir os seus músculos contraírem-se contra mim, empurrando-me contra o balcão da cozinha.
Sem querer coloquei as mãos sobre a sua pele nua e ainda molhada. Era terrivelmente excitante sentir a sua pele macia e fresca.
Entretanto o seu olhar tornou-se ainda mais intenso, mas continuou impenetrável.
Queria perguntar-lhe o que estava a acontecer, mas não saiu nenhuma palavra da minha boca.
Dei-me conta de não ter nenhum autocontrolo.
Parecia que era vítima de uma força que agia sobre mim e sobre a minha mente.
Por uma fração de segundos os nossos lábios se tocaram, pegando-me fogo nas veias.
Fiz escorregar delicadamente as mãos pelo seu dorso até o seu peito, quando de repente tocou o telemóvel.
Foi como um banho de água gelada, que nos fez voltar bruscamente à realidade.
Afastamo-nos num átimo como se o contato com o outro nos tivesse escaldado.
Tinha o coração aos saltos e notei que o Blake estava ligeiramente abalado.
Pegou com demasiada força o telemóvel, enquanto lia o nome sobre o ecrã, de forma a que eu não me conseguisse aperceber.
«Marley, és tu? Finalmente! Onde estás?» responde aliviado, dirigindo-se à casa de banho.
Não consegui ouvir o resto da conversa, mas sabia que aquele homem era quem o Blake queria consultar para saber que riscos corria ao me transformar em vampira ou outra coisa qualquer.
Estava absolutamente decidida a descobrir como magoá-lo. Abatida, voltei ao quarto. A minha vida previa-se muito breve.
Mal cheguei às escadas para subir ao sótão, vi Blake vestido de negro sair a toda a velocidade do banho, pegar no impermeável e ir-se embora.
«Quando voltar, quero que estejas aqui» ordenou-me com um ar severo, antes de fechar a porta atrás de si.
A minha esperança de poder escapar desapareceu imediatamente, mal ouvi a chave girar na fechadura. Resignei-me a estar ali, a esperá-lo.
De certeza foi encontrar-se com o Marley nalgum lado.
Acendi a televisão e joguei-me no sofá, mas não tinha nenhuma vontade de ver televisão, assim depois de nem sequer meia hora, desliguei-a e fui para o quarto.
Estava preocupada com o que Blake descobriria naquele encontro, mas não queria pensar nisso.
Revistei no meio das suas coisas, mas não encontrei nada de interessante. Por fim, joguei-me na cama macia e deixei os pensamentos divagarem livres na mente, tentando esquecer onde estava.
Estava a relaxar-me, quando ouvi abrir a porta.
Seria que Blake já tinha voltado?
Debrucei-me sobre o corrimão e surge Will.
Estava sozinho e da agitação que mostrava parecia estar à procura de alguma coisa.
«Onde estás?» Sei que estás aqui.... Sinto o teu odor! Sai ou encontro-te eu!» gritou esfomeado.
Senti o sangue gelar-me nas veias.
Estava à minha procura.
Estava condenada.
O Blake não estava e de certeza que desta vez conseguiria saltar-me em cima e matar-me.
Estava a morrer de medo.
Apertei-me contra a cama na esperança que não me visse.
Da minha posição podia ver que o vampiro, cada vez mais impaciente, continuava a procurar-me por toda a casa, da cozinha à casa de banho.
Não demoraria muito a subir as escadas e a encontrar-me.
De facto, pouco tempo depois, ouvi-o subir as escadas dando risadas.
«Aqui estás!» disse, aproximando-se rapidamente com um olhar pouco tranquilizador.
Podia ver nos seus olhos a fome que tinha e o desejo de encontrar-me que lhe incendiava o corpo.
Não consegui dizer uma palavra. Estava paralisada.
Mais alguns passos e...
«Will, pára!».
Ouvi a voz sonante de Blake. Não conseguia vê-lo, porque tinha medo de desviar o olhar do Will, mas podia sentir a sua força.
Entretanto Will atirou-se sobre a cama e eu evitei-o por pouco, mas logo a seguir conseguiu segurar-me pela camisola e arrastar-me para debaixo dele.
Vi o seu rosto deformado pela ânsia e os dentes caninos que se alongavam, enquanto se aproximava cada vez mais de mim.
Gritei aterrorizada.
Já estava prestes a morder-me, quando Blake alcançou-nos no piso superior e bateu-lhe violentamente atirando-o para fora da cama, para longe de mim.
Recomeçaram a lutar de forma violenta.
Pareciam dois animais enlouquecidos, até que Blake empurrou o Will do corrimão abaixo, fazendo-o cair no piso inferior.
Debrucei-me para ver o seu cadáver esmagado lá em baixo, mas pelo contrário, vi Will levantar-se como se não fosse nada. Tinha uma força sobrenatural.
Ao meu lado, Blake atirou-se para baixo, onde recomeçou a bater-lhe ferozmente.
Só mais tarde notei a chegada de Peter, que com um salto felino lançou-se sobre as costas de Will.
«Blake, agarra a prata!».
Mesmo a tempo, Blake libertou-se de Will e correu para o sofá, levantou uma almofada branca e pegou numa grande moeda de prata.
Entretanto, desci ao piso inferior, tentando desviar-me da luta iminente. Estava terrivelmente preocupada que o Will pudesse fazer mal ao Blake.
Novamente, teria sido por minha culpa...
Entretanto Blake aproximou-se do vampiro e premiu-lhe a moeda na testa, fazendo-o gritar de dor. Após alguns segundos, vi o Will desmaiado por terra.
«Por algumas horas não nos dará mais problemas» murmurou Peter exausto.
«Obrigado, Peter. Se não me tivesses avisado, nunca chegaria a tempo».
«De nada. Não era preciso muito para perceber onde tinha intenções de ir, quando me chamou para dizer-me que não podia ir ao encontro com o Marley. Ao invés, tu surpreendeste-me! Pensava que o Will mentia quando me disse que o contato com a prata não tinha efeito sobre ti» exclamou o vampiro maravilhado.
«Pois».
«Compreendes que isto te torna único no nosso género e... Invencível!» admirou-o Peter.
«Não exageres... O que vamos fazer com ele?» Blake mudou de discurso, indicando o corpo desmaiado de Blake.
Estava por intervir e agradecer-lhes a ajuda, quando senti um frio terrível nas costas.
Voltei-me e percebi que estava mesmo em frente à porta de entrada escancarada.
Bastou-me apenas três passos e atravessei a porta. Dei por mim na estrada debaixo do céu coberto de nuvens.
Parecia que ia nevar.
Voltei a virar-me para os três vampiros em casa.
O Blake e o Peter estavam demasiado ocupados a mudar o Will de lugar para aperceberem-se de mim.
Aquela era a minha oportunidade. Tinha que fugir e procurar a minha tia.
Comecei a correr. Primeiro lentamente, pouco confiante, mas depois acelerei o passo.
Voltei-me. Ninguém me seguia.
Continuei a correr sem parar, até estar bem longe, numa estrada no centro de Dublin.
Fazia muito frio e muitas pessoas olhavam-me espantadas por eu usar apenas uma camisola.
Comecei a vaguear pela cidade sem destino. Não sabia o que fazer, nem quem podia contatar, uma vez que não tinha nenhum endereço, à exceção daquele da minha casa, agora abandonada.
Como poderia contatar alguém e fazê-los saber que estava livre e que podiam vir-me buscar?
Nem sabia onde ficava o Hotel Jolly e a cidade era enorme.
Por fim, tive uma ideia.
Dirigi-me a uma igreja qualquer.
De certeza que todos os padres conheciam o cardeal Siringer, pensei confiante.
Entrei na primeira igreja que encontrei.
Uma vez lá dentro, vi apenas uma velhota que acendia algumas velas.
«Desculpe-me, podia dizer-me onde posso encontrar o pároco da igreja» perguntei gentilmente à senhora.
«Está doente. Lamento. Se quiser falar com ele terá que esperar pela próxima semana» respondeu-me com cortesia.
Agradeci-lhe e saí da igreja desiludida.
Caminhei durante muito tempo pelas ruas.
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