Ndura. Filho Da Selva
Javier Salazar Calle
Melhor romance do gênero Young Adult de 2014 na Espanha e traduzido para mais de 6 idiomas!
Quando uma pessoa comum, como qualquer um de nós, se encontra de repente em uma situação de vida ou mote no meio da selva, SABERIA SOBREVIVER?
Este é o simples dilema que o protagonista da nossa história apresenta a você. Voltando de umas férias tranquilas na Namíbia, um típico safari fotográfico, ele se vê envolvido em uma inesperada situação de sobrevivência extrema na selva de Ituri, na República do Congo na África, quando o avião em que viajava é derrubado por rebeldes. Um lugar onde a natureza não é o único inimigo e onde sobreviver não é o único problema. Uma aventura que remete aos clássicos de sempre, que fazem deste livro o prato perfeito para fugir da realidade e sentir na pele a angústia e o desespero do protagonista diante do desafio que tem pela frente. Neste livro, misturam-se de forma natural a emoção e a tensão do próprio desafio de sobreviver, a degradação psicológica do protagonista ao longo da história e o profundo estudo do meio, seus animais, plantas e pessoa que o autor realizou. Também nos ensina que nossa perceção de onde estão nossos limites costuma ser errônea, às vezes para o bem e outras para o mal.
Sem dúvida, uma leitura recomendável.
Javier Salazar Calle
Ndura. Filho da selva
Ndura. Filho da selva
Javier Salazar Calle
Traduzido por Fernanda Carrascosa
“Ndura. Filho da selva”
Escrito por Javier Salazar Calle
Copyright © 2020 Javier Salazar Calle
Todos os direitos reservados
Distribuído por Tektime
https://www.traduzionelibri.it
Traduzido por Fernanda Carrascosa
Design da capa em português´© 2020 Marta Fernández García
Ndura
Filho da selva
Por
Javier Salazar Calle
Desenho da capa em português ©Marta Fernández García
Foto do autor © Ignacio Insua
Título original: Ndura. Hijo de la selva.
Copyright © Javier Salazar Calle, 2018
Tradução: Fernanda Carrascosa
1.ª Edição
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Dedicado a todos aqueles que, assim como eu, vivem aventuras e viajam sem sair do lugar; porque fazem com que o poder da imaginação sobreviva neste mundo.
Dedicatória especial ao meu melhor amigo, que faleceu há muitos anos, e ao meu filho Álex, que herdou seu nome e com o qual tenho grandes sonhos.
Começa a aventura…
DIA 0
Estou no meio da África profunda. Sentado, apoiado no tronco de uma árvore. Minha febre disparou, meu corpo tem tremores e calafrios cada vez mais frequentes, uma dor não localizada é a única que percebo do meu organismo. Não paro de tremer. Estou no alto de uma colina. Atrás de mim, a selva, uma floresta frondosa, selvagem e implacável. Adiante, desaparece como num passe de mágica, e somente uns troncos dispersos, restos de uma exploração madeireira intensiva, dão uma ideia do que antes havia neste lugar. Ao fundo, distinguem-se as primeiras casas de uma cidade incipiente. Barro, folhas e ladrilhos misturados. A civilização.
Estou a milhares de quilômetros do meu lugar, da minha gente, da minha família, da minha namorada, dos meus amigos… sinto até falta do meu trabalho. A vida cômoda, poder beber ao simples gesto de abrir uma torneira e comer simplesmente fazendo um pedido em um bar qualquer… e dormir em uma cama quente, seca e segura, principalmente segura. Como sinto falta dessa tranquilidade, quando a única incerteza era decidir em que gastaria meu tempo livre quando saísse do trabalho! Como me parecem absurdas as preocupações de antes: a hipoteca, o salário, a discussão com um amigo, a comida que me desagrada, a partida de futebol! Principalmente a comida…
Está claro que a necessidade de sobrevivência muda o ponto de vista das pessoas. Comigo, pelo menos, foi assim. O que estou fazendo a tanta distância de casa, moribundo, às margens da selva centro-africana? Como me coloquei nesta situação dantesca e aparentemente irremediável?
Reviso mentalmente as circunstâncias agourentas que me levaram à beira da morte, à entrada da estrada de trânsito para o além, à mais provável extinção da minha história no livro da vida…
DIA 1
SOBRE COMO COMEÇOU ESTA HISTÓRIA IMPRESSIONANTE
Olhei para o relógio. Nosso avião de volta à Espanha sairia dentro de duas horas. Alex, Juan e eu já estávamos na parte das lojas do aeroporto de Windhoek, gastando as últimas moedas locais e, a propósito, comprando aqueles presentes que sempre se deixa para o final. Já havíamos comido e só nos faltavam as lojas. Comprei para o meu pai uma navalha com o cabo de madeira e com o nome do país, Namíbia, entalhado, e todo tipo de figuras de animais finamente entalhadas em madeiras para as demais pessoas. Especificamente para Elena, minha namorada, comprei uma linda girafa entalhada à mão em um povoado típico da savana africana. Alex comprou uma zarabatana e muitas flechas, segundo ele para jogar com o alvo de dardos e variar um pouco o jogo, dando-lhe um estímulo, digamos, mais tribal. Durante uma hora, estivemos perambulando por aqui e por ali, mochila nas costas, desfrutando dos últimos momentos nesse país que achamos tão exótico. Até que nos chamaram para embarcar. Como já havíamos despachado as bagagens, nos dirigimos diretamente até a porta indicada e logo estávamos em nossos assentos no avião, um antigo modelo quadrimotor de hélices, depois de termos tirado algumas fotos dele. Nosso safari de quinze dias pela agreste savana africana chegava ao seu fim e, ainda que fôssemos sentir falta destas terras, já ansiávamos por uma ducha quente e uma refeição em boas condições, ao estilo espanhol. De toda forma, era uma pena partir neste momento, porque nos haviam dito que dentro de alguns dias haveria um dos eclipses solares mais impressionantes das últimas décadas e que a parte da África onde nos encontrávamos era a melhor para vê-lo com clareza.
Eu era o mais atrevido e aventureiro dos três, e acabei por convencê-los de que viessem comigo até aqui; uma coisa era ter espírito aventureiro, outra coisa era ir sem companhia. De início ficaram receosos em abandonar seus planos de umas férias relaxantes no norte da Itália em troca de um, a princípio, incômodo safari fotográfico em um lugar com temperaturas superiores a 40 ˚C o dia inteiro e sem sombra onde se abrigar. Ao fim da experiência, não estavam nem um pouco arrependidos; ao contrário, fariam tudo novamente sem pensar duas vezes. A aeronave nos levaria mais de mil quilômetros ao norte até outro aeroporto internacional, onde faríamos conexão com as modernas e cômodas linhas aéreas europeias para voltar para casa.
Depois da decolagem, começamos a ver as fotografias da viagem na câmera digital do Alex. Tinha uma foto divertidíssima do Alex e do Juan correndo apavorados e um gnu mal humorado atrás deles, a toda velocidade. Enquanto eles terminavam de revê-las, entre risadas e lembranças, eu me perdi em meus pensamentos, olhando pela janela, vendo passar as nuvens ao nosso redor. Sentia-me muito bem voltando para casa com meus dois melhores amigos, os quais conhecida desde a escola, de uma aventura maravilhosa em um país incrível. Foi como ter estado dentro de uma reportagem da National Geographic, daquelas que tanto gostava de assistir na televisão enquanto comia. Um safari em um 4x4 seguindo o rastro das grandes migrações de gnus, fotografando as manadas de elefantes ou vendo os famosos leões a poucos metros de distância em plena savana selvagem africana. Vimos lutas de hipopótamos, crocodilos à espreita em busca de uma presa, hienas ansiosas por carniça, urubus voando em círculos sobre alguma carcaça, alguns répteis estranhos, todo tipo de insetos; havíamos acampado em barracas no meio do nada, jantando à luz da fogueira com um límpido céu coalhado de estrelas… uma experiência maravilhosa. Sobretudo a visita ao Etosha National Park.
Lá embaixo, em contraste com o que vimos até agora, tudo era uma imensa mancha verde: estávamos cruzando a zona do equador. A selva o cobria totalmente. Uma exuberância verde sem fim. O objetivo da nossa próxima viagem seria algo assim, uma subida de barco pelo rio Amazonas, com paradas para desfrutar as imensas formas de vida do lugar. Já havíamos visto a imensidade de uma savana desflorestada e agora queria ver a grandiosidade de um mar de vegetação e vida transbordante. Poder avançar a golpes de facão pela selva quase impraticável, aprender como conseguir alimentos, conhecer tribos perdidas da civilização, ver animais e plantas exóticos… bem, isso seria já no ano que vem, se conseguisse convencer meus amigos; caso contrário, o norte da Itália também não me parecia nada mal.
Um forte ruído, como uma explosão, seguido de um movimento muito brusco do avião me fez despertar do mundo de fantasias. A aeronave começou a dar saltos no ar e logo parecia que estávamos em uma montanha russa. Fui parar no chão, no meio do corredor, em cima de uma senhora. Levantei-me como pude e voltei ao meu assento, tentando não cair de novo. Gritos estridentes de pânico ressoavam por todos os lados. A confusão era total.
– Fogo, fogo na asa! –gritou alguém no corredor do lado contrário ao meu no avião.
– À direita! –observou outro passageiro.
A princípio não sabia do que estava falando, mas quando olhei pela janela do meu lado pude ver uma fumaceira concentrada que fazia parecer que era noite, uma noite trágica. O avião fazia cada vez mais movimentos bruscos. Algumas pessoas começaram a gritar. No alto-falante soou a voz nervosa e quase ininteligível do piloto, que nos contava que uma guerrilha que ocorria no Congo, o qual estávamos sobrevoando, acabara de nos atingir com um míssil e que teríamos que fazer uma aterrissagem forçada. Uma mulher teve um ataque de histeria e tiveram que colocá-la sentada e presa entre duas comissárias de bordo e um homem que se ofereceu para ajudar. Nós três rapidamente nos sentamos, ajustamos os cintos de segurança e nos pusemos na posição indicada pela comissária durante a decolagem, com a cabeça entre os joelhos, olhando para o pouco alentador chão de metal. Estávamos aterrorizados. Enquanto estava nessa posição incômoda, lembrei de uma vez no noticiário em que haviam falado desses rebeldes que se financiavam porque controlavam algumas das minas de diamante do país, ou do precioso coltan, um mineral que contém um metal indispensável para a fabricação dos chips de celular, dos microchips ou componentes de centrais nucleares. Era algo assim como uma sangrenta guerra civil, na qual todos os países da região tinham interesses econômicos e militares, que já durava mais de vinte anos e que não parecia ter fim.
As sacudidelas eram tão fortes que me jogavam de vez em quando para frente com tanto ímpeto que o cinto de segurança me comprimia o estômago, me deixando com falta de ar e me fazendo golpear a cabeça contra o assento à frente. Notei como o bico do avião apontava para o solo e começava uma descida vertiginosa. O ruído era infernal, como milhares de motores funcionando a toda potência de uma vez. Logo antes de atingir o solo, o piloto emitiu um último aviso, de que iria tentar uma aterrissagem forçada em uma clareira que havia localizado. A última coisa que pensei foi que todos iríamos morrer na colisão. Logo tudo virou uma grande confusão, sons altos, golpes, escuridão…
Quando recobrei a consciência, tinha uma fortíssima dor de cabeça. Levei a mão à testa e notei que sangrava um pouco. Tinha ainda contusões e arranhões por todo o corpo; sobretudo um grande hematoma com a pele bem roxa, onde o cinto me havia apertado. Passei os dedos por cima e senti uma ardência intensa que me fez apertar os dentes com força. Olhei para os meus amigos. Juan parecia em estado de choque; emitia uma espécie de grunhidos de lamentação e se movia um pouco; Alex… Alex não se movia absolutamente; seu rosto, antes sempre alegre e cheio de vida, estava totalmente pálido, paralisado, o sangue brotando em abundância da nuca. Chamei-o desesperado, uma vez e depois outra. Toquei o seu rosto, estava muito rígido, segurei-o entre minhas mãos e o agitei levemente, chamando seu nome, implorando. Alex estava morto. Morto. Essa palavra ressoou na minha cabeça mais uma vez, como se fosse seu próprio eco. Morto.
Angustiado, dominado pela situação, tentava reagir. Na minha cabeça ecoava um bum-bum-bum, talvez por causa do golpe. Espera aí, não era a minha cabeça. Ao fundo eu ouvia o som de uns tambores em uma melodia repetitiva. Parecia que alguém estava se comunicando à distância.
– Merda! –pensei. Levantei-me cambaleante. Uma ideia surgiu na minha cabeça. Se foram os guerrilheiros que nos derrubaram, eles virão aqui e nos tomarão como prisioneiros, e pode ser até que nos matem. Era preciso fugir imediatamente. Minha primeira reação foi avisar o Alex, mas quando me virei e tornei a vê-lo, fui novamente confrontado com a sua morte. Fiquei quieto alguns segundos até conseguir voltar a reagir. Aproximei-me de Juan, que permanecia em seu assento e havia se agitado algumas vezes, como quem está tendo um pesadelo enquanto dorme.
– Juan –balbuciei– temos que sair daqui.
– E o Alex? –murmurou sem abrir os olhos.
– Alex… Alex está morto, Juan –respondi, tentando me manter de pé–. Venha, Alex está morto e nós também estaremos se não sairmos agora. Está morto.
Aos tropeços, procurei minha mochila em meio ao caos, até que a encontrei. Peguei-a e me dirigi à parte traseira do avião. Nessa parte, um lado estava em chamas e fazia muito calor. Todo o avião estava repleto de gente esparramada nas mais insólitas posições, alguns feridos, outros tentando reagir, outros mortos. Por todos os lados ouviam-se gritos, gemidos, murmúrios. Cheguei à parte da cozinha e meti na mochila tudo que encontrei: latas de sucos, sanduíches, caixas de coisas não identificadas, um garfo. Quando ficou cheia, voltei até o Juan e peguei a mochila dele, que estava em cima de uma mulher. Nessa mochila enfiei alguns cobertores do avião. Então me lembrei do estojo de pequenos socorros e voltei à cozinha. Estava ali, no chão, aberto e todo esparramado. Peguei como pude tudo o que estava próximo e voltei até o Juan.
–Vamos Juan, temos que sair daqui.
– Não posso –ele sussurrou– me dói tudo.
–Venha Juan, tem que se levantar ou vão nos matar. Vou levar as mochilas para fora e volto para buscar você.
–Está bem, vou tentar –respondeu, agitando-se um pouco no lugar.
Peguei as duas mochilas e saí ainda um pouco cambaleante pelo abalo do golpe. Tive que fazer um esforço muito grande para não parar e tentar ajudar as outras pessoas, mas não sabia de quanto tempo dispunha e queria simplesmente viver. Viver um dia mais para ver outro dia amanhecer. Estávamos em um lado de uma clareira na floresta. Pelo visto, o piloto tentou aterrissar aqui aproveitando a ausência de árvores, mas se desviou um pouco; havia perdido a asa esquerda ao se chocar contra as árvores grandes. Do avião saía uma grade coluna de fumaça até o céu, permitindo que fosse vista num raio de muitos quilômetros. Adentrei o mato um pouco e deixei as mochilas ao pé de uma grande árvore. Logo me voltei com a intenção de retornar ao avião, mas nesse instante, um grupo de homens negros armados invadiu a clareira pelo lado contrário ao que eu estava. Abaixei-me rapidamente, me escondendo atrás de um tronco. Notei uma pontada de dor no estômago. Os guerrilheiros, alguns vestidos com roupa de camuflagem e outros com roupas civis, rodearam o avião apontando com suas armas e gritando sem parar. Não entendia nada do que diziam, mas pela região em que estávamos devia ser suaíli ou sabe-se lá o que.
– Nitoka! –gritavam de vez em quando. Enyi!, nitoka!, maarusi![1 - Língua suaíli: nitoka, enyi!, maarusi!: Vocês! Saiam, depressa!]
Logo começaram a sair alguns passageiros do avião, desconcertados e confusos. Foram jogados ao chão sem contemplações e registrados conscienciosamente. Foram chegando mais rebeldes. Um dos passageiros, um homem que havia estado sentado à nossa frente, ficou nervoso e se levantou, tentando sair correndo. Os guerrilheiros dispararam diversas rajadas com suas metralhadoras, fazendo com que caísse morto no mesmo instante. Durante esse momento de confusão, Juan saiu do avião e começou a correr na direção contrária de onde todos tinham as atenções voltadas.
– Basi![2 - Língua suaíli: basi: alto!], Basi! –gritaram alguns rebeldes quando o descobriram.
– Nifyetua![3 - Língua suaíli: nifyetua!: atirem!] –gritou o que parecia ser o chefe, quando Juan estava a ponto de alcançar a borda da clareira.
Então dois deles o metralharam pelas costas sem mais demora. Algumas balas passaram por cima de mim assobiando. Abaixei a cabeça e fechei os olhos com força, com a crença estúpida de que isso poderia me salvar das balas. Caiu de joelhos a apenas cinco metros de onde eu o observava e, antes de cair por completo, chegou a me ver abaixado e me dedicou seu último sorriso.
– Nitoka, maarusi! –seguiram gritando até o avião.
Não precisei fazer muito esforço para gritar, já que fiquei completamente mudo e paralisado. Não sei quanto tempo fiquei assim, mas quando consegui reagir, soube com certeza que apenas me restava uma saída: fugir para salvar a vida. Peguei as duas mochilas e me afastei adentando a frondosidade da selva com o máximo de cautela que me foi possível, o que era pouco, já que levava tombos, e com o corpo todo dolorido, era incapaz de controlá-lo totalmente. Não sabia para onde me dirigir, mas tinha noção de que quanto mais distância desses selvagens, mais probabilidades de viver eu teria.
Caminhei por quase duas horas, impulsionado pelo pavor, pelo medo de morrer, até que minhas pernas não resistiram mais e caí ao solo, desmaiado. As mochilas me pareciam estar carregadas de pedras. Meu joelho esquerdo doía com tanta intensidade; desde que me machuquei jogando futebol nunca me recuperei totalmente e ainda me dava problemas de vez em quando, quando o forçava. Abri minha mochila e tirei uma lata de suco. Ainda estava fresca e bebi com avidez. Transpirava copiosamente; gotas de suor escorriam torrencialmente pelo meu queixo, como se tivesse acabado de chover ou se tivesse saído de uma piscina. Sentia falta de ar e abria a boca tentando aspirar grandes lufadas de ar. Engasguei-me com um sorvo um pouco mais rápido, comecei a tossir fortemente e pensei que me afogava. Quando consegui me tranquilizar um pouco, ainda ofegante, me dei conta de que havia menos luz, estava anoitecendo. Alex morto no acidente, Juan crivado de balas; meus dois melhores amigos perdidos em um pequeno instante devido à estupidez de uma guerra civil que não entendia e que não me importava. Por que não se matam uns aos outros? Por que nos matar? Por que meus amigos, Alex e Juan? Idiotas! Se dependesse de mim, poderiam se explodir, todos eles. Por culpa deles estava agora sozinho, nesta merda de lugar, úmido, acabrunhante, asfixiante, sem meus amigos. Por que eu, por que eles? A morte de Juan, metralhado por esses selvagens passava de vez em quando pela minha cabeça, como se fosse um filme. A luz de seus olhos se apagando naquele último olhar que ele me lançou… Tentei não pensar nele, escondê-lo em algum recôndito de minha mente, mas não havia como. Há duas horas estávamos juntos, rindo enquanto recordávamos as histórias da viagem, e agora…
Estive chorando por um bom tempo, não sei quanto, mas me fez muito bem. Quando consegui parar estava muito melhor, no mínimo mais tranquilo. Já era evidente que estava anoitecendo, a selva em penumbras entrava no mundo das trevas. Devia buscar um lugar para dormir. Sentia medo de dormir sozinho, sobretudo de que os rebeldes me encontrassem, mas dormir sobre uma árvore também não me tranquilizava, com serpentes, esses macacos escandalosos ou vai lá saber que fera selvagem e faminta. Precisava decidir, serpente ou homens armados e enfurecidos? As serpentes me pareceram melhor opção, ao menos ainda não me tinham feito nada. Busquei uma árvore que me parecesse fácil de escalar, difícil para as serpentes e com algum lugar onde pudesse me acomodar para dormir.
Foi nesse momento em que me dei conta da incrível quantidade de tipos de árvores e plantas que havia. Desde as menores plantas, quase minúsculas até árvores de mais de cinquenta metros cujos troncos sobressaíam por cima dos demais sem conseguir ver o final, toda uma amálgama de classes distintas de flora salpicadas por toda parte; incluindo altíssimas palmeiras de folhas desfranjadas pintadas e de vários metros de largura com grupos compactos e densos de flores[4 - Flora: Dendezeiro, Elaeis guineensis]. Havia uma camada superior de árvores de uns trinta metros com algumas que emergiam muito por cima, depois uma segunda camada de uns dez ou vinte metros de altura com forma alargada como os ciprestes de nossos cemitérios e
uma terceira camada de cinco a oito metros de altura onde chegava muito menos luz. Havia ainda arbustos, exemplares jovens de tipos diferentes de árvores, ainda que poucos, e uma camada de musgo que o cobria quase por inteiro em algumas partes, igual a um amontoado de cipós subindo por todos os troncos, pendurados de todos os galhos. Flores e frutos em todos os lados, principalmente nas camadas mais altas, inalcançáveis para mim. Também se notava todos os tipos de animais. Não era fácil vê-los, mas podia ouvir inúmeros tipos de piados de pássaros, gritos de macacos, ramos agitando-se acima de mim devido à movimentação deles, insetos zumbindo ao redor das flores por todos os lados, inclusive algum animal terrestre cujas pisadas eu escutava como um ruído distante. As borboletas e o resto dos insetos esvoaçavam por todos os lados. Se não fosse pela situação em que estava, teria desfrutado de um lugar tão bonito, mas nesse momento tudo era um obstáculo em potencial para a minha sobrevivência. E tudo me dava medo.
Após uma breve busca encontrei uma que me parecia adequada e subi com as duas mochilas nas costas. Pareciam pesar uma barbaridade e meus joelhos suplicavam por descanso. Quando estava alto o bastante para me sentir seguro, mas não para me acidentar ou me ferir gravemente quando a noite caísse, coloquei-me como pude entre dois galhos grossos que iam quase paralelos e me cobri um pouco com uma das mantas pequenas que havia trazido do avião, e a outra fiz de almofada. No céu, pude vislumbrar uma incrível quantidade de grandes morcegos marrom-escuros, agitando-se dessa forma característica que têm de esvoaçar aparentemente errantes e movendo-se por impulsos[5 - Fauna: Morcego cor-de-palha, Eidolon helvum]. Não sabia como contá-los, pois devia haver milhares, pairando principalmente sobre as palmeiras, comendo seus frutos, eu imaginava, ou caçando os insetos que comiam os frutos.
Devo ter dormido duas horas em pequenos intervalos de quinze ou vinte minutos. Os ruídos me atormentavam de todas as direções, não fazia mais que ouvir passos, vozes, gritos, rosnados, guinchos agudos, zumbidos, sussurros, um murmúrios constante que aumentava e baixava sem cessar. Até mesmo me pareceu escutar o grito agonizante de um menino várias vezes e o barrido de elefantes. Não sabia se podia ser o que parecia, ou se somente parecia. De vez em quando se ouvia algum rugido bastante inquietante, que me fazia imaginar alguma fera selvagem me devorando enquanto eu dormia. Por alguns momentos a angústia me impedia de respirar, apertando meu coração até quase me causar dor. Cada som, cada movimento, tudo o que ocorria ao meu redor era um tormento, uma sensação de angústia opressora. Quando conseguia cair no sono em algum momento, qualquer coisa me obrigava a despertar assustado. Às vezes via olhos brilhando na noite tétrica e, para tentar me encorajar, pensava que era uma simples coruja ou seu parente mais próximo que houvesse por esses lares, mas essas tentativas de me manter positivo duravam pouco e sempre acabava vendo felinos com intenções inescrupulosas ou alguma serpente perigosa à caça. Outras vezes me parecia ouvir disparos próximos, rajadas intermitentes, mas se escutava com atenção não conseguia ouvir nada.
– Javier –ouvi como Alex me chamava.
– Oi, cadê você? –disse, despertando de um sobressalto.
– Javier –tornei a ouvir.
Olhei em todas as direções, angustiado, expectante, ansioso por ver meu amigo. Até que me dei conta de que Alex estava morto e que me encontrava sozinho e sem ajuda no meio da selva. Isso me assustava; não poder contar com ninguém que pudesse me auxiliar, com quem compartilhar minha dor deste momento, meu desespero. Não devia me deixar levar pelo pânico, tinha que expulsar os maus pensamentos da minha cabeça para poder sobreviver, mas não conseguia. Uma sensação sufocante de solidão me obrigava a me aprofundar em meus medos.
– Javier, Javier.
Durante toda a noite sua chamada foi constante, inquisitiva, atraente. Teria ido com ele, se soubesse aonde ir.
DIA 2
SOBRE COMO DESCUBRO AS MARAVILHAS DA SELVA
– Não, não o matem! –gritei, agitando-me convulsivamente e causando minha queda da árvore com um ruído abafado.
Agitei-me de um lado para outro, fugindo de meus próprios fantasmas, ignorando a dor da queda. Olhei para todos os lados totalmente desorientado e fiquei quieto momentaneamente, encolhido, gemendo como um animal gravemente ferido. Enquanto esfregava as costas machucadas me dei conta de que havia sido um pesadelo, um pesadelo muito realista, já que havia sonhado que voltava a vivenciar a morte de Juan, a colisão do avião, outra vez o corpo inerte de Alex entre minhas mãos. O suor me escorria pelo rosto, minhas mãos tremiam. Respirei fundo por um momento e decidi me mover, somente desejava me distanciar o máximo possível do avião em que havia perdido parte da minha vida. Meu passado era terrível, meu futuro desolador.
Doíam-me muito as costas pela posição que havia tomado, pela queda ou por ambas as coisas ao mesmo tempo, e estava um pouco trêmulo. Subi lamuriante para pegar as mochilas e me dei conta de que a mochila com a comida havia sumido. O pulo que dei com o susto quase me derruba da árvore novamente. Sem essa mochila não teria nada que fazer. Procurei assustado por entre os galhos e, quando supus que nunca a encontraria, vi que estava caída ao solo com todo o seu conteúdo esparramado. Possivelmente eu a havia jogado, arrastando-a na minha queda ou me movendo durante a noite. Desci cuidadosamente com a outra mochila no ombro e recolhi tudo o que localizei: três latas de refresco, um sanduíche de linguiça, uns biscoitos mordiscados e cheios de formigas, uma caixa com saquinhos de sal para usar nas saladas e duas caixas, que eram de marmelo. O resto havia desaparecido, suponho que tenham sido levados por animais. Isso me fez concluir que havia caído durante a noite.
Decidi fazer um inventário de tudo o que levava para ver o que me podia ser útil e tirar o que não o seria. Não havia sentido em carregar peso inútil e eu precisava saber de que meios podia dispor. Na minha mochila, além da comida, levava a navalha que havia comprado para o meu pai, todas as figuras de madeira, um livro de viagem sobre a África Central, um pacote de lenços de papel, binóculo 8x30, um gorro de tecido cáqui e uma camiseta onde se lia "I love Namibia". Do estojo de remédios me restavam uma caixa de aspirinas pela metade, uma caixa inteira de antidiarreico, uma bandagem, três curativos adesivos e alguns comprimidos contra enjoo. Além, é claro, da documentação. Na mochila de Juan também estava a documentação dele, e além disso, três mantas e um travesseiro do avião, um pequeno livro com frases em suaíli, seus óculos de sol, um boné, umas barrinhas de chocolate, uma garrafa plástica de água de um litro quase vazia, um garfo, uma grande figura de madeira de um elefante e várias menores, um maço de cigarros quase cheio e um isqueiro.
No entanto, não podia carregar duas mochilas, de modo que guardei tudo na minha, que estava em melhores condições, exceto uma das mantas, o travesseiro que ocupava muito espaço e todas as figuras de madeira, inúteis nesse meio; enterrei tudo e tampei com folhas secas do chão. Enquanto ia descartando algumas coisas, lembrava das pessoas para quem elas eram destinadas; Elena, minha família, meus amigos, Alex, Juan… e não tardei a começar a chorar de novo. Nunca mais voltaria a vê-los, nenhum deles. Bem, Alex e Juan eu veria logo, no paraíso ou aonde quer que se vá depois de morto.
As barras de chocolate comi nesse momento, derretidas pelo calor, limpando a embalagem com a língua até que não sobrasse nem rastro. Estava delicioso. Também bebi a pouca água que restava na garrafa. Foi então que me dei conta de que teria que parar um pouco para refletir quais seriam os próximos passos que devia dar. Algumas perguntas sugiram em minha mente: Os rebeldes sabiam que eu estava vivo? Para onde deveria ir agora?
Com respeito à primeira pergunta não tinha resposta. Na melhor das hipóteses haviam conseguido que algum passageiro confessasse que me havia visto, ou procuraram nas redondezas e encontraram minhas pegadas ou a lata que joguei no chão depois de beber (isso foi um grande erro, ainda que naquele momento tivesse que fugir), ou estavam por todos os lados e me encontrariam de qualquer jeito, ou não sabiam de nada. Fosse o que fosse, a partir de agora deveria tentar ser mais cuidadoso e deixar menos rastros possíveis por onde passasse.
Com respeito a para onde me dirigir. Parecia me lembrar que desde o avião, durante a aterrissagem vertiginosa, vi que havia um povoado no horizonte e uma grande clareira na selva. O que não sabia era se seria a base dos rebeldes ou não, mas era muito provável que fosse, já que estava muito próxima de onde nos haviam atacado. Como íamos do sul da África para o norte, devia supor que indo sempre na direção norte eu sairia da selva, chegaria a outro país e teria mais possibilidades de encontrar ajuda. Como sentia falta dos meus amigos nesse momento! Agora me cairiam muito bem o entusiasmo, o otimismo e a alegria abundante de Alex e a capacidade de análise fria, a serenidade e o poder de decisão do Juan. Como precisava da companhia deles para me encorajar e enfrentar este desafio que se apresentava de forma inevitável! Com eles isto seria mais fácil, inclusive seria uma aventura para contarmos na volta; mas estavam mortos, assassinados, exterminados sem piedade como moscas sem valor, aniquilados na melhor fase da vida… e eu teria que sobreviver conforme possível. Desgraçados, filhos da…! Calma, Javier, calma, devia tentar manter a calma. Era minha única opção para ter alguma chance. Bem, supomos o sol nascendo no leste e se pondo ao oeste, e sabendo que amanheceu mais ou menos por esse lado… deveria andar naquela direção. Se com esse sistema de orientação chegasse a algum lugar não seria habilidade e sim milagre. De todos os modos, para me assegurar, subi cuidadosamente em uma das árvores mais altas que pude ver.
Foi fácil, já que ela tinha muitos galhos para usar como degraus, ainda que quanto mais subia, menores e mais flexíveis eles se tornavam. Assim, tive muito cuidado em ir pisando justamente na base dos ramos, que é a parte mais larga e resistente. Sobressaía por cima da maioria e quando cheguei ao topo a paisagem era estarrecedora. Um mar verde se estendia em todas as direções como um tapete, subindo e descendo, seguindo o contorno do solo, imitando as ondas, uma vasta extensão de vida. Apenas algumas árvores solitárias muito mais altas do que o resto se destacavam na imensidão desse tapete formado pela fronde das copas infinitas da selva. Não via mais que copas de árvores em todas as direções, sem fim. Nem com ajuda do binóculo consegui ver alguma coisa por lado nenhum. De fato isso não me ajudava em nada na busca de que direção seguir. Desci da árvore e escondi a mochila de Juan com tudo o que deixava nela meio enterrada debaixo de um tronco caído. Em um último momento decidi ficar com a girafa para Elena, caso voltasse a vê-la gostaria de ter um presente para ela. Dei uma última olhada ao redor para comprovar que não deixava sinais claros da minha presença e, quando estava mais ou menos convencido, comecei a andar sem muita esperança. Como precisava de meus amigos!
Durante toda a caminhada encontrei uns pássaros coloridos com peitos vermelhos chamativos e o resto do corpo esverdeado[6 - Fauna: Surucuá (Trogon) de narina, Apaloderma narina]. Revoava um bando de uns doze ou quinze entre os galhos das árvores com incrível agilidade. Quando fiz um algum ruído, desapareceram de minha vista em um instante. Somente esses belos animais me tiraram por um momento da sensação esmagadora de solidão com que a selva me golpeava implacavelmente: um mundo opressor, hostil, impiedoso, na sombra permanente de que a agonia, o cansaço e o sufoco não eram mais que companheiros habituais da viagem.
O caminho era difícil. Constantemente tinha que dar voltas ou saltar obstáculos. Às vezes havia pequenas clareiras, mas as circundava com medo de ficar muito visível. Suava sem parar e tinha muita sede, mas não queria tomar outra lata pois só me restavam três. Devia estar fazendo uns 25°C com altíssima umidade, o que fazia com que a angústia e o calor aumentassem. Durante um tempo tirei a camisa, mas tantos mosquitos me picaram que tive que vesti-la novamente. Em alguns momentos o pequeno bosque ficava tão espesso que tinha que abrir caminho com uma vara que havia catado e que fazia as vezes de facão. Nesses casos, praticamente não avançava, já que com a vara o máximo que conseguia era afastar os galhos do caminho enquanto passava, e não cortá-los. Além disso, tinha a parte baixa das pernas e os antebraços cheios de feridas produzidas pelo roçar contra as plantas naqueles lugares onde a roupa não me cobria. O rosto também me ardia em diversas partes, sinal de que também o tinha cortado.
Às vezes o chão estava cheio de ramos ou troncos derrubados, outras vezes o solo era macio, coberto de folhas caídas e eu tinha que andar com cuidado para não torcer um tornozelo em algum buraco ou deslizamento, porque isso seria fatal. Em algumas zonas, as copas das árvores se juntavam tanto que impediam a passagem da luz, criando ambientes de luz e sombras certamente desalentadores; ou formavam vários planos de luz de matizes distintas de acordo com as alturas. Nessas partes eu passava assustado porque tinha a impressão de me ver constantemente atacado por fantasmas, que na realidade eram os galhos mais altos das árvores movendo-se ao som do vento que devia haver no trecho verde da selva e que, de passagem, fazia com que produzissem um uivo assustador que me atormentava por todos os lados. Várias vezes a selva se espessava tanto que era absolutamente impraticável e era preciso dar grandes voltas para seguir avançando. Nunca imaginei que fossem possíveis tantas plantas diferentes juntas. Já não via o romantismo em andar pela selva como os exploradores, aliás, desejava sair o quanto antes deste lugar. Além do mais, como geralmente andava fazendo muito barulho, tinha o coração apertado, pensando que se estivessem me seguindo seria muito fácil me localizar.
Mesmo havendo na noite um ruído incessante por todos os lados, não era o mesmo ruído, mas também se ouvia o zumbido de insetos, cantos estranhos de pássaros na copa das árvores e alguns gritos que supunha fossem de macacos ou algo assim. Ao menos não se ouviam os rugidos inquietantes, que deviam ter sido de algum caçador noturno, ou assim eu queria acreditar. Não via muitos animais, mas podia sentir todos eles.
Olhei a hora no meu relógio. Eram dez da manhã. Estava andando há uma hora e não conseguia mais. O joelho já começava a enviar sinais de aviso, notava como estava um pouco inflamado. Várias vezes os ligamentos, ou algo que o valha, haviam se deslocado e eu tinha que colocá-los com a mão de novo no lugar, massageando suave porém firmemente. Sentei-me no chão para descansar um pouco, apoiado em um tronco de uma árvore altíssima e esfreguei o joelho com as mãos. O calor me forneceu um certo alívio. Estava em uma zona bastante clara. Quando passei um tempo sentado, vi em um galho de árvore em frente a mim um pássaro[7 - Fauna: Papagaio cinzento, Psittacus Erithacus] parecido com um papagaio de plumagem azulada fosca, cuja única nota de cor era o vermelho de seu pescoço, com uma aréola branca ao redor dos olhos, o bico negro e que emitia chiados quase humanos. Girava a cabeça em praticamente todas as direções sem mover o resto do corpo, me fazendo lembrar a menina de O Exorcista. Aproximou-se bamboleante de um fruto da árvore e começou a bicá-lo. O fruto era de cor avermelhada-alaranjada, do tamanho de uma mão e com forma semelhante à abóbora.
– Claro que você sabe onde está –disse para mim mesmo–, claro que sim. Fiquei descansando quase meia hora e depois tornei a caminhar. Cada vez que contornava uma clareira e tinha que retomar a direção supostamente correta estava mais convencido de que podia estar dando voltas durante anos sem me dar conta. Tudo me parecia igual e o sol já não me servia de muita ajuda. Olhava a que altura se encontrava, comprovava com a hora do relógio e chegava à conclusão de não ter a menor ideia do que estava fazendo. Segui o mesmo ritmo toda a manhã; andava uma hora e descansava um pouco. Nos momentos de descanso lia o livro de frases em suaíli ou o de viagens para entreter a mente com algo, pelo menos serviria para poder me comunicar com alguém em um encontro hipotético. Cada vez me custava mais para me levantar e continuar, o joelho me fazia mancar e por volta das duas da tarde caí, rendido.
A culpa de tudo era minha, eu havia arrastado meus amigos a este lugar infernal, por minha culpa haviam morrido. Se lhes tivesse dado ouvidos estaríamos agora voltando da Itália com um monte de fotos de Veneza e algum cartão postal da Toscana. Culpa minha, tudo era culpa minha.
Estava sedento e meu estômago rugia sem parar. Tinha um dilema: Comia em condições para recuperar as forças ou economizava devido a escassez de comida de que dispunha e me arriscava a que me acontecesse algo? Seria de se supor que em uma selva conseguir comida e água deveria ser fácil, ou era o que acreditava nestes momentos, e eu tinha muita fome. Assim, optei por beber uma das latas de refresco e comer os biscoitos mordiscados, afastando as formigas aos sopros, e o sanduíche. Abrandei um pouco o apetite voraz. Guardei o marmelo, pensando que demoraria mais a estragar. Logo caí no sono pelo cansaço e por não ter podido dormir na noite anterior.
Quando despertei, ouvi um sibilo bem próximo. Devia haver uma serpente ao meu lado. Fiquei completamente quieto tentando aguçar o ouvido para descobrir onde poderia estar. O medo me comprimiu o estômago e começou a me dificultar a respiração. Uma vez havia visto uma reportagem sobre umas serpentes que se chamavam "serpentes dos três passos", porque quando mordiam só dava tempo de dar três passos antes de cair morto. No fundo isso não seria má situação, mas se me mordesse uma que me fizesse agonizar durante horas, perdendo o controle do corpo pouco a pouco, chegando ao paroxismo da loucura… tinha tanto medo de sofrer, tanto pânico da dor. Se fosse morrer, que fosse rápido, quase o desejava para me libertar da situação em que estava. Eu merecia. Parecia que o sibilo estava cada vez mais próximo, também podia ouvir o estalar das folhas pela sua passagem. Vinha na minha direção, estava certo. Quase podia sentir como se deslizava por cima do meu corpo, subindo pela perna na direção do meu pescoço, quase estava chegando, ia me morder. Fechei os olhos por um momento e respirei profundamente tentando me acalmar. Logo voltei a abrir os olhos e, sem me mexer nem um centímetro, girei-os em todas as direções tentando localizá-la. Por fim consegui vê-la. Estava quieta enroscada um galho de uma árvore a três metros à minha direita, a uns dois metros de altura. Somente movia a cabeça de um lado para outro, como se vigiasse algo. Era de cor verde com um leve toque azulado, um pouco amarelada nas costas, com a cauda longa, com algo mais de um metro de comprimento e o corpo delgado, como se comprimido lateralmente, quase invisível entre as folhas[8 - Fauna: Cobra-cipó, Leptophis ahaetulla marginatus]. Quando se deslizou pelos galhos pude ver que tinha o ventre esbranquiçado.
Fiquei mais um pouco sem me mover, escutando, até que me convenci de que era essa que havia escutado e o resto havia sido fruto de minha imaginação. Levantei-me devagar e observando atentamente o solo em busca de outra serpente, mas a que via era a única. Pelo menos a única que localizei. No princípio pensei em dar uma volta e me distanciar, mas logo me lembrei de que sempre diziam que a carne de serpente tinha gosto semelhante à de frango, que era muito boa. Ou assim contavam os avós como anedotas da Guerra Civil e da fome que passaram. Parecia uma boa oportunidade de conseguir comida e, se tiver gosto bom, melhor ainda. Procurei uma vara comprida com ponta em forma de "V" para tentar prender-lhe a cabeça. Também tirei a navalha do bolso, a abri e a coloquei no cinto da bermuda. Encontrei um galho caído adequado e lhe dei a forma que buscava, recortando uma das extremidades em forma de V e sem perder a serpente de vista. O processo de preparação me pareceu interminável e me esgotou ao extremo, ainda que na realidade não exigisse nenhum esforço físico considerável.
Quando estava preparado, me aproximei sorrateiramente da serpente. Ela não pareceu se dar conta ou me ignorou, mas o caso é que não prestou a menor atenção em mim. Quando estava a meio metro levantei a vara e a golpeei na cabeça com toda minha força. Com o primeiro golpe ela ficou meio dependurada, então lhe apliquei mais dois golpes até que caísse ao solo. Logo lhe enganchei a cabeça com a forquilha da vara e a apertei bem forte contra o solo. A serpente se agitava convulsivamente, sibilando sem parar e eu estava aterrorizado. Se a soltasse para tomar distância com a vara ela poderia me atacar, a outra opção seria me aproximar mais e cravá-la com a navalha. Juntando coragem, aproximei-me mais e pisei na cauda com força, apertando-a contra o chão em uma tentativa de mantê-la quieta. Agachei-me e cravei a navalha logo abaixo da cabeça do ofídio, junto da vara, deixando-a fincada ao chão. Ainda assim continuava se agitando, de modo que descravei a navalha e cortei o pescoço dela, separando a cabeça do resto do corpo. Logo dei um pulo para trás temendo, ignorante, que ela ainda pudesse me atacar. A cauda continuava batendo sem parar, cuspindo sangue por onde antes se encontrava a cabeça. Golpeei-a algumas vezes com a vara, mas não fez diferença, então decidi deixá-la um momento. Em questão de menos de meio minuto parou de se mover paulatinamente até que ficasse completamente parada. Dei-lhe ainda alguns toques com a vara mas ela não mais se movia. Estava definitivamente morta. Por fim pude respirar tranquilo.
Meu primeiro triunfo na selva. O homem havia dominado a besta. Senti-me totalmente eufórico, por um momento todos os meus problemas se dissolveram como açúcar em um copo de leite quente. Agora sabia que subsistiria e conseguiria sair dali. Era um autêntico aventureiro, um sobrevivente nato. E nada poderia evitar que encontrasse a saída nesse labirinto verde e que regressasse a casa, ao lar. Havia sido desafiado pela mãe Natureza e havia demonstrado meu valor, minha capacidade de adaptação e de sobrevivência. Agora sabia, eu era o vencedor deste combate desigual contra mim mesmo e contra os elementos adversos.
Peguei a serpente e a abri pela metade com a navalha, tirando-lhe as tripas o melhor que pude, não sem que me causasse bastante asco. Para isso, segurei por uma ponta e a girei sobre mim mesmo a toda velocidade, dando giros rápidos e as tripas saíam voando em todas as direções. Logo pensei que isso ia contra meu plano de ser discreto e não chamar atenção, mas já havia restos de serpente por todos os lados e não tinha a menor vontade de catá-los. O que restou, terminei de limpar com a navalha, me causando alguma ânsia de vômito, já que era nojento. Depois a esfolei. Quando estava pronta me dei conta de um problema. Não podia fazer fogo para cozinhá-la pois revelaria minha existência e minha posição. Teria de comê-la crua. Reparei na carne sanguinolenta. Cortei um bom pedaço e o meti na boca. Se os animais comiam cru eu também podia. Mastiguei algumas vezes e cuspi tudo. Estava repugnante! Tinha uma consistência de plástico, como se estivesse tentando comer uma boneca de minhas irmãs ou uma cartilagem meio desfeita. Sempre gostei de carne bem passada, não conseguia comê-la mal passada e assim, completamente crua, menos ainda. O que mais me causava repulsa eram as coisas de consistência como essa carne: pele de frango mal passada, toucinho, dobradinha…
Totalmente desiludido, catei todos os restos da serpente e os da minha comida e os enterrei. Coloquei umas folhas por cima para disfarçá-lo melhor. De que me adianta poder conseguir comida se não posso comê-la? Correr o risco de que uma serpente me morda e me mate, para que? Além disso, havia o problema da água. Tinha que encontrar algo porque não desejava ter uma sede terrível e só me sobravam dois refrescos. Deixei-me cair no chão, suando copiosamente pelo esforço realizado de capturar a serpente. Derrotado, bebi um dos refrescos e joguei a lata fora. Que me descubram, afinal de contas é melhor morrer crivado de balas do que de fome, demora menos. Ademais, havia espalhado tripas de serpente em um círculo de dois metros ao meu redor. Adeus triunfador, adeus sobrevivente nato, olá fracassado que ia morrer em um jardim selvagem. Era o que merecia, então não podia me queixar. Havia matado os meus dois melhores amigos. De todo modo, sabia que havia visto algo na televisão sobre a água na selva, me lembrava que diziam que era fácil conseguir em um lugar, de uma forma correta, mas não me lembrava onde.
Durante um tempo, que não calculei, fiquei ali, sentado no chão, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça abaixada, com a mente em branco, me deixando levar. Resignação, conformismo, abandono, renúncia à vida. O acidente aéreo com a morte de Alex, ver como metralharam Juan, a euforia da serpente e a decepção posterior, o cansaço, o sonho… coisas demais em praticamente vinte e quatro horas, emoções demasiado intensas. Por que Juan teve que ser tão estúpido e sair correndo daquele jeito? Por que me havia deixado sozinho? Pelo menos se estivéssemos os dois tudo seria diferente; mas não, tive que tentar fugir desse modo tão… tão… Queria voltar para casa, fechar os olhos e que ao abri-los novamente estivesse em minha cama e tudo tivesse sido um pesadelo muito realista, um sonho ruim como qualquer outro, uma anedota para contar quando estivesse à tarde com a namorada e os amigos. Comecei a chorar, mas quase não caíam lágrimas de meus olhos.
Perdido, desanimado, desiludido e quase desmaiando de cansaço e sono. Não sabia o que fazer. Por fim, por puro automatismo, enterrei a lata que havia jogado no chão e me levantei para seguir andando, ainda que agora a um ritmo muito mais tranquilo, deixando-me levar, quase arrastando os pés. Fui andando e parando intermitentemente até que dessem oito horas da tarde. As paradas eram cada vez de maior duração, os momentos de andar cada vez mais curtos. Fazia de cajado a vara que havia usado contra a serpente, assim descarregava a pressão do joelho lesionado, ainda que nesses momentos já nem sentia as pernas. Andar por andar, sem tentar sequer fixar bem o meu rumo, no fim das contas, não sabia com certeza como fazer e quase podia dizer que não me fazia diferença. Por que tive que convencê-los a vir aqui, por quê? Nunca escutava ninguém, sempre tendo que prevalecer minha vontade. Veja para onde me trouxe minha vontade de controlar tudo, de mandar em tudo. Juan, idiota, por que saiu correndo dessa maneira, se suicidando? Isso era culpa sua, eu não tinha nada a ver com isso. Culpa sua. Sua.
Quando não consegui mais, comi uma das caixas de marmelo inteira e bebi a lata que sobrou, escondendo todos os restos, inclusive uma das duas mantas que estavam comigo. Para que queria duas? quanto menos peso carregar, melhor. Ademais, me davam muito calor e quando carregava a mochila tinha a impressão de que estavam assando minhas costas, levando a camiseta permanentemente grudada ao corpo pelo suor, o que produzia uma sensação incômoda. Também havia começado a ter uma sensação constante de enjoo, possivelmente porque estava desidratado. Não me estranhava, os refrescos matavam a sede no momento mas não ofereciam muita hidratação. O efeito ioiô, como chamava um colega do colégio, dizia ele, por causa do açúcar.
Como estava anoitecendo e não tinha vontade de voltar a dormir tão incomodamente em uma árvore, busquei um lugar um pouco resguardado, com a terra seca, fabriquei um magro colchão de folhas e galhos verdes, me aconcheguei coberto com a pequena manta como pude e com a mochila como travesseiro e dormi. Havia passado meu primeiro dia inteiro na selva e já estava mais do que farto, rendido e com vontade de que isso terminasse de qualquer maneira.
DIA 3
SOBRE COMO COMEÇA O MEU SOFRIMENTO
Algo estava me atacando, sentia como me picava por todo o corpo. Levantei-me de um salto, totalmente desperto de modo súbito e gritando. Olhei para minhas mãos e estavam cobertas de formigas avermelhadas com a cabeça muito grande, meu corpo estava completamente coberto delas. Picavam-me por todos os lados. Tirei a roupa, quase arrancando-a, comecei a esfregar o corpo com as mãos, a saltar, a me agitar e retorcer como o rabo de um lagarto, dando gritos e gemendo de dor. Algumas entravam pela minha boca, me obrigando a cuspir de vez em quando, e outras pelo nariz, nas orelhas, por toda parte. Era como se um enxame inteiro de abelhas houvesse decidido me atacar ao mesmo tempo. Pouco a pouco consegui me desvencilhar das formigas, mas demorei uns dez minutos até que notei que nenhuma mais corria impunemente pelo meu corpo. Por onde havia estado deitado, passava uma coluna interminável de formigas[9 - Fauna: Formigas legionárias, Dorylus Spp]. Tinha o corpo vermelho dos golpes que me havia aplicado para arrancar as formigas e cheio de pontos ainda mais vermelhos que as picadas recebidas por esses malditos insetos. Tudo me ardia, e tanto, que não sabia por onde começar a me coçar. Ainda que não houvesse nenhuma sobre mim, de vez em quando me dava a impressão de notar como se algo se mexesse por algum lado e voltava a me agitar convulsivamente.
Quando dominei um pouco minha frustração, peguei a mochila e sacudi também todas as formigas, e fiz o mesmo com a manta e com a roupa que havia atirado ao chão.
Calcei apenas os tênis e o resto guardei na mochila. Agarrei umas pedras e uns ramos e os atirei com raiva sobre a organizada coluna, enquanto insultava as formigas. Durante um momento perdi o controle, a ira me invadiu. Sim, as formigas tinham culpa de tudo, tinha que acabar com as formigas, elas me haviam levado a esta estúpida situação e iriam pagar por isso. Pisei nelas mais uma vez e mais outra, frenético, como que possuído por um ardor de destruição irrefreável. Algumas subiam pelas minhas pernas picando-me novamente, mas já não sentia nada, a dor havia deixado de existir por um momento. Um solitário pensamento em minha cabeça: acabar com as formigas. Sapateava, pisoteava sobre as que estavam no solo e esmagava com fortes tapas as que tinha pelo corpo, massacrando-as contra minhas pernas, meus braços ou meu peito. Durante uns minutos essa foi a minha única guerra, meu único mundo: pisadas, golpes com a mão, gritos de fúria, de frustração contida durante tempo demais. Um Guliver furibundo destruindo o mundo de Lilipute. Assim que me afastei uns passos, desmoronei no chão e fiquei um tempo como se estivesse ausente, totalmente abandonado à minha sorte, cego ao que ocorria ao meu redor, ignorante de qualquer outra coisa que não fosse o nada, o vazio interior. Ao final, reagi. Durante a noite me havia parecido ter ouvido o murmúrio de uma corrente de água por perto, então fui procurá-la, nu, apático, tremendo, com o corpo todo ardendo, cajado na mão e mochila no ombro. Atrás de mim, uma miríade de formigas amassadas e muitas outras correndo ao redor em seu baile particular de desorganizada loucura.
Efetivamente, meu ouvido não havia me enganado. Um rio de uns cinco metros de largura abria caminho entre a floresta diante dos meus olhos. Minha primeira intenção foi tirar os tênis e jogar-me na água, mas me lembrei de algo sobre sanguessugas e primeiro inspecionei a água da margem com cuidado, deixando que a prudência fosse mais forte que o meu desespero por um momento. Só a ideia de que alguma delas grudasse ao meu corpo me estremecia. Enganchada, chupando meu sangue. Ao tocar a água com a mão, notei que não estava fria demais para que pudesse suportar. Não me parecia ver nada, exceto uns belos e pequenos peixes coloridos, alguns mais coloridos que outros, que eram pequenos demais para alimentar e bonitos demais para matar. Tinham o corpo comprido e aplanado, a cauda dividida em três partes, sendo a central parecida com plumas de aves, os olhos proporcionalmente grandes com relação à cabeça, tinham uma coloração azul iridescente, mas quando os raios do sol refletiam em seu corpo, toda uma incrível gama desde o azul até o violeta se difundia por suas escamas[10 - Fauna: Tetra do Congo, Phacogrammus interruptus]. Procurei alguma outra coisa, como piranhas, crocodilos ou algo assim e não encontrei nada. Assim, decidi me molhar e depois beber um pouco d'água.
Entrei um pouco na água, assegurando primeiro com o cajado que o solo era firme, com os tênis calçados, porque tinha medo de que algum bicho me picasse ou que me cravasse algo nos pés. A primeira impressão me produziu um calafrio pelo contraste da temperatura da água com a do exterior, ainda que tenha me acostumado depressa. Ao meu redor voavam algumas libélulas de cores vivas, com suas formas alongadas e seu voo rápido e seguro; também havia grande quantidade de insetos, tanto voando como correndo pela superfície da água como se fosse uma pista de patinação.
Quando a água me chegava aos joelhos, parei e me molhei todo o corpo ajudando com as mãos. O efeito refrescante da água sobre as infinitas picadas das formigas, e nos inúmeros arranhões e sobre o joelho inflamado me produziu uma sensação de alívio indescritível. Poder estar por um momento na água, esquecendo-me de tudo, desfrutando de cada segundo, produziu em mim um estado de relaxamento profundo. Fechei os olhos e submergi a cabeça prendendo a respiração o máximo possível, sentindo como o frescor corria pela minha pele, rodeando-a e acariciando-a com suavidade. Durante breves instantes todos os problemas e preocupações se desvaneceram. Também bebi grandes goles de água, até que me senti completamente saciado. Ao sair da água estava decidido a sobreviver como pudesse; meus ânimos se encontravam reforçados, meu espírito disposto para a luta.
Ouvi um ruído em uma árvore próxima e me escondi no matagal rapidamente. Já me haviam encontrado, nu e desprevenido, certamente iriam me matar sem piedade alguma, sacrificar-me como a um vil animal. Não queria morrer. Não poderia tê-los despistado? Não merecia um pouco de tranquilidade? Não havia sofrido o suficiente com as formigas? As imagens de Juan metralhado pelos rebeldes apareceram na minha cabeça como uma sucessão de curtos flashes, e o corpo sem vida de Alex sentado no avião após o choque, com o sangue escorrendo pelo rosto, me atormentou mais uma vez. Imaginei-me sangrando por vários buracos no meu corpo produzidos pelos disparos dos rebeldes, jogado ao chão ao pé de uma grande árvore, eles rindo e eu agonizando. A dor… Observei atentamente entre as folhas das árvores e finalmente descobri a origem do som: um macaco de uns cinquenta centímetros de altura com uma cauda de igual comprimento, a cara azulada, a cada lado entre olho e orelha uma banda de pelo escuro, uma banda transversal clara em cima dos olhos, a maioria do corpo pardo-amarelado e a garganta, o peito e o ventre brancos[11 - Fauna: Cercopitemo mona, Cercopithecus mona]. Talvez não estivesse predestinado a morrer nesse dia. Pouco a pouco foram aparecendo mais e se juntaram cinco deles, saltando de galho em galho e lançando alguns gritos agudos. Deviam estar jogando ou algo assim, se empoleiravam em um galho e o agitavam com energia enquanto gritavam. Na melhor das hipóteses estavam na época do cio, não fazia ideia, mas era um espetáculo grandioso. Meu coração voltou pouco a pouco a bater no seu ritmo normal. A última coisa que vi foi um deles pegar do chão algo que de longe me parecia uma lacraia e comê-la.
Na outra margem do rio apareceu outro macaco de forma parecida mas com cores diferentes. Esse tinha a cara negra, costeletas e barba brancas que continuavam no peito e parte dos braços. Sua cor era mais enegrecida e tinha uma mancha triangular avermelhada-alaranjada no lombo. Era maior que o anterior e bem mais robusto[12 - Fauna: Cercopitemo diana, Cercopithecus diana]. Bebeu um pouco de água, levando-a à boca com a mão e desapareceu. Fiquei um pouco observando os outros a jogar e saltar. Era uma experiência única, que nunca pensei que chegaria a viver. Mais uma vez me lembrei de meus amigos mortos e de como eles curtiriam estar vendo isto, principalmente o jovial Alex, sempre tão curioso sobre todas as coisas. Agora com quem comentaria estes momentos, com quem os compartilharia? Não havia ninguém que os houvesse vivido comigo, que pudesse entendê-los. Não! Não devia pensar nisso, não me ajudava a seguir adiante e agora o que precisava era juntar a maior quantidade de energia possível para poder sobreviver.
Sair desta maldita selva deveria ser o meu único objetivo. Escapar deste inferno verde.
Descalcei os tênis, torcendo-os um pouco para que a água se escorresse e os enganchei na ponta de um galho para que secassem. Então, peguei a garrafa de água e procurei um local com água corrente para enchê-la. Parecia-me haver lido que era pior coletar de lugares onde a água estivesse parada porque haveria mais possibilidades de que não fosse salubre ou tivesse algum tipo de bichos. Claro que podia ter me lembrado disso antes de beber. Meu corpo inteiro não parava de arder, ainda que com menor intensidade do que antes. Sentia a coxa latejar e quando me virei para ver se havia algum ferimento, localizei uma sanguessuga que ficou grudada à minha perna. Era uma espécie de lesma, talvez mais fina. Primeiro me assustei, logo reagi e pensei em como soltá-la. Se mal me lembrava, podia-se soltar as sanguessugas com sal ou queimando-as. Saquei o isqueiro e aproximei a chama do animal, até que ele se encolhesse, momento em que aproveitei para desgrudá-la com a navalha. Onde havia estado agora só restava uma mancha vermelha, e uma gota de sangue exsudava da borda. Queimei a ponta da navalha com o isqueiro e cauterizei a ferida com cuidado. Não tinha nem ideia se as sanguessugas infectavam ou não a ferida que produziam, mas não queria me arriscar. Doeu tanto que tive que fazer grandes esforços para não gritar com todas as minhas forças. Verifiquei o resto do meu corpo para ver se não tinha mais alguma, mas era a única. Agora na perna tinha a forma da ponta da minha navalha gravada ao fogo. Ia fazer uma tremenda bolha. Talvez não devesse ter feito essa barbaridade.
A preguiça tomou o controle do meu corpo e decidi me dar uma manhã livre. Tantas emoções seguidas cansavam, estava destroçado e o corpo me pesava enormemente. Procurei um local com sombra e quando me sequei, vesti a roupa e usei a camiseta de lembrança da Namíbia que levava na mochila para cobrir toda a cabeça, inclusive o rosto, para evitar os incômodos e abundantes mosquitos que demarcavam as margens. Antes de me deitar, observei um arbusto que havia por perto, havia visto já diversos como este, com um virtuoso fruto de cor carmim com pequenas sementes azuladas[13 - Flora: Cola digitata]. Seria comestível? Esmaguei uma formiga desnorteada que ainda não tinha conseguido sacudir da roupa. Fechei os olhos e me deixei levar por um estado de sonolência, de torpor; o calor e a umidade produziam peso nos músculos e na vontade.
Um disparo, uma rajada de alguma arma automática, mais disparos. Pus-me de pé num salto. Ouvia-se na outra margem do rio, ainda que distante. Agora sim que não estava imaginando, iam me encontrar a qualquer momento. Subitamente recuperei a consciência de que minha situação não me permitia relaxar, e que não manter todos os meus sentidos em alerta constante seria certamente a minha perdição.
Rapidamente, catei todas as coisas, guardei a camiseta na mochila, calcei as meias e os tênis e peguei o cajado. Ainda estavam molhados, mas nesse momento não tinha tempo de me preocupar com essas minúcias. Decidi que o melhor caminho possível para chegar a algum lugar seria continuar pelo leito do rio, mas como segui-lo ao lado da margem me parecia muito perigoso, adentrei a selva mais uma vez para passar despercebido entre a folhagem e andar quatro a cinco metros paralelo ao rio. Era um mundo fechado, onde em qualquer direção não via mais que um muro verde impenetrável, sem saída alguma. Quando muito, via três ou quatro metros de distância diante de mim. Logo perdi o rio e, mais uma vez, encontrei-me a caminho de lugar nenhum.
Estive andando a um ritmo às vezes forte e outras vezes mais suave durante toda a tarde com escassos momento de descanso. Justamente para recobrar um pouco o fôlego e escutar se ouviam-se mais disparos. Tive que aguentar permanentemente o som semelhante ao produzido quando se pisa em um charco que faziam meus tênis em cada passo que dava e esporádicos avisos de cãibra na panturrilha. A densidade da folhagem aumentava em alguns momentos, sumindo nas sombras de alguns lugares. Havia mosquitos por todos os lados, não deixavam de me incomodar como se fosse uma batalha sem fim. Às vezes me faziam lembrar os kamikazes japoneses da Segunda Guerra Mundial, lançando-me o ferrão como seu objetivo, sem lhes importar a vida. Os mosquitos eram iguais, jogando-se sobre meu corpo de forma contínua e sem lhes importar as baixas que causavam meus tapas, usando minhas mãos à guisa de artilharia antiaérea. Alguns eram tão grandes que mais que caças de combate pareciam gigantescos bombardeiros, cuja presença propriamente dita já causava apreensão no inimigo. Quando os via aproximarem-se ficava imediatamente tenso, preparado para me esquivar deles. Sempre havia algum com apetite e tinha uma infinidade de picadas pelos braços e pernas, ali onde minha roupa não cobria meu corpo. Algumas estavam inclusive sobre as próprias picadas que as formigas me haviam feito ao acordar. Era uma batalha que estava perdida de antemão, uma luta banal, inútil, já que eles não tinham fim e eu estava cada vez mais cansado. Incomodaram-me tanto que decidi cobrir as partes onde não tinha roupa com terra úmida, formando uma barreira impenetrável para eles. Essa ideia fugaz me salvou. Era difícil me movimentar, sobretudo quando secava, mas seus ataques contínuos eram piores. Graças a esse truque pude me esquecer dos insetos implacáveis durante um bom tempo. Se não consegui a vitória, ao menos uma trégua temporária. Além disso, tive o efeito surpreendente de conseguir que parassem de me picar onde as formigas haviam estado. Alguma sorte, afinal.
Não parava de observar tudo ao meu redor, tinha a sensação constante de estar sendo seguido, que estava cada vez mais encurralado, acuado em uma selva ilimitada. Inclusive, parecia-me ouvir passos e vozes atrás de mim ou ver rostos rápidos de guerrilheiros olhando-me com frieza entre as árvores, vigiando sem cessar. A verdade é que não cheguei a ver ninguém com clareza, nem sequer pude verificar nenhum rastro de sua presença na região. Tinha a impressão de que as árvores se dobravam sobre minha cabeça, aprisionando-me mais e mais em uma cela de madeira viva. Não sabia se estava ficando paranoico ou o quê, mas tinha que conseguir me acalmar para sobreviver nesta selva desconhecida e mortal.
Nesse deambular demente me deparei com um espetáculo dantesco. O que parecia ter sido uma família de primatas, do tamanho de um chimpanzé ou semelhante, jazia em uma clareira sem mãos, pés e cabeças em meio a grandes poças de sangue ressecado e rodeados por miríades de moscas e todo tipo de insetos e animais carniceiros. O fedor que expeliam era insuportável e não pude evitar o vômito que subiu instantaneamente pela garganta. Juntei coragem e voltei a olhar. Havia dois que deviam ser adultos e um menorzinho. Não parecia haver nenhuma cria. O que não sabia era por que não foram capturados, presos ou por que não foram levados para serem vendidos no mercado ilegal. Sabia que havia determinadas partes de animais que se vendiam muito bem como afrodisíacos nos países asiáticos: chifres de rinocerontes, ossos de tigres e coisas assim. Na melhor das hipóteses, seria algo desse tipo. Decidi me afastar desse lugar maldito o mais rápido possível. Essa descoberta não apenas me demonstrou mais uma vez a crueldade humana, mas também me fez ver que andava por zonas frequentadas por caçadores furtivos, certamente pouco amigáveis com estranhos.
Sentia-me demasiadamente afetado por tudo o que estava acontecendo. Houve um momento em que finalmente me deu uma forte cãibra na panturrilha direita, o que me obrigou a parar para esticá-la enquanto apertava a boca com força por causa da dor e me retorcia no chão. Tive que permanecer sentado por um bom tempo até que pudesse me mover outra vez e fiquei incomodado pelo resto do dia. Diversas vezes pensei que a puxada voltaria e tive que parar para esticar a perna. Quando começou a anoitecer, estava completamente esgotado e não havia avançado muito por causa do ritmo lento que tive que assumir. Sobretudo, minhas pernas estavam exaustas de tanto caminhar, o joelho e a panturrilha doloridos e os pés dormentes. Observando do ponto de vista positivo, a minha barriga de cerveja que havia começado a se formar já estava me deixando. Já era alguma coisa. Não deveria perder meu senso de humor, isso talvez viesse a me salvar. Era a única coisa que me sobrava. Isso e minha vontade de sobreviver. Elena, o que eu não daria agora por um abraço seu, pelo seu sorriso! Ou por uma daquelas refeições maravilhosas que você me preparava!
Sentei-me sobre um tronco caído e comi todo o marmelo que me sobrava, com um grande gole d’água. Ao meu redor,
sobrava apenas um quinto da garrafa e nada de comida. Esta terceira noite passaria novamente sobre uma árvore. Depois da experiência com as formigas não acreditava que conseguiria pegar no sono, já que as formigas estão tanto no chão como nas árvores, muito menos me agradava a ideia de que os canalhas dos disparos me encontrassem dormindo. Como na primeira noite, busquei uma árvore adequada e quando a encontrei, encarapinhei-me sobre o galho escolhido, subindo por uma trepadeira. Quando coloquei a mão nela tive que retirá-la rapidamente pois senti uma picada aguda. A trepadeira era espinhosa. Esfreguei a mão dolorida e procurei outra árvore. Quando a encontrei, subi com muito cuidado e me dispus a passar outra noite mais neste inferno. Tirei os tênis e as meias e rezei para que estivessem secos na manhã seguinte, ainda que duvidasse bastante, já que o ar estava quase permanentemente úmido. Meus pés estavam enrugados e de uma cor verde-amarronzada escura. Sequei-os como pude, mas a sensação de mal-estar persistiu. Tentei me aquecer, mas não houve jeito nem com a manta, nem me esfregando o corpo. As picadas dos mosquitos e das formigas me molestavam sem parar, mas não podia fazer nada. O único que me aliviava essas moléstias era quando passava barro úmido pelo corpo para evitar as picadas; nesses momentos o ardor constante se via transformado em uma reconfortante sensação que não sabia como descrever. Nas pernas sentia uma dor constante sem conseguir localizar, o mesmo que nas costas. O braço direito estava dormente devido ao esgotamento de estar todo o dia fazendo movimentos de machadadas com a vara. Estava tão esgotado que dormi logo. Meu último pensamento foi a esperança de que ao acordar no dia seguinte estivesse um café da manhã me esperando com um copão de leite com mel e um par de torradas cheias de manteiga e geleia de morangos ou de amoras.
DIA 4
SOBRE COMO ENCARO UMA TEMPESTADE TROPICAL
Um ruído muito próximo me despertou e quase caí no chão com o susto. Agora sim. Haviam me descoberto, estava acabado. Tanto esforço para nada, havia deixando que me pegassem desprevenido, descuidado e agora ia pagar caro. Agarrei-me fortemente ao galho e olhei aterrorizado em todas as direções, procurando pelos rebeldes, gritando não atire, não atire! Mas não vi nada. Se tivessem sido eles, teriam disparado ou ao menos me feito descer da árvore, mas era um alarme falso. Queria saber que tipo de animal havia passado por ali, estava um pouco obcecado.
– Será que não posso acordar um dia com tranquilidade?, –resmunguei em voz alta–. Não podem me deixar tranquilo um momento?
A verdade era que não importava. Desci e me espreguicei dando grandes bocejos. Havia dormido umas boas horas seguidas, mas as costas me doíam uma barbaridade. Além disso, conforme me limpei um pouco voltei a notar as picadas contínuas nas pernas e braços, onde as formigas e os mosquitos haviam fincado o ferrão. Isso de dormir em um galho não deveria ser muito bom para o corpo, mas às vezes me parecia preferível ao chão, onde estava à disposição de toda pessoa ou animal que passasse por ali. Olhei com atenção minhas pernas e braços e vi que algumas feridas, sobretudo as roçaduras com plantas, estavam infectadas. Era o que me faltava. Ouvi um rugido crescente, que na verdade era o meu estômago. Tinha uma fome atroz e não me restava nada para colocar na boca. Minha prioridade para esse dia era encontrar comida, já que água no momento não era um problema porque havia voltado a localizar o rio. Gostaria que o sensato Alex estivesse ao meu lado para poder escutar seus sempre meditados e sábios conselhos. Mas eu estava sozinho, Alex estava morto, Juan estava morto e eu estava sozinho. Por minha culpa, tudo por minha culpa.
Aproximei-me do rio para lavar o rosto um pouco e beber água. Também enchi a garrafa. Bebi tanta água que fiquei momentaneamente saciado, mas isso duraria pouco. Sentei-me sobre uma pedra e me pus a refletir sobre o melhor modo de conseguir alimento. Enquanto eu tentava encontrar uma solução fixei a atenção em uma árvore próxima que me fez lembrar de algo. Observei-a com atenção. Sabia que algo me escapava, era aquela sensação de ter algo na ponta da língua e não saber o quê. Então me lembrei. Era essa mesma árvore onde havia visto aquela espécie de papagaios comendo seus frutos. Foi aí que se acendeu a lâmpada, onde a ideia finalmente quebrou os moldes do esquecimento, onde a necessidade acabou com a estagnação da minha mente. Se os animais comiam aqueles frutos, possivelmente eu também poderia. Havia lido que alguns tinham o metabolismo capaz de digerir frutos venenosos, mas a maioria dos que arrancavam deveria ser comestível para mim também, principalmente se um macaco o podia comer, que era o animal mais parecido com o homem que havia por esses lugares.
Levantei-me e fui até a árvore. Depois escalei por entre os galhos e colhi dois ou três frutos dos que me pareceram mais apetitosos. Logo desci com eles e abri o primeiro pela metade com a navalha. O interior me lembrava cabelo de anjo em sua forma e textura, mas de cor vermelha. Descasquei uma das metades e dei uma pequena mordida.
Mastiguei devagar, quase chupando. Tinha um sabor estranho, mas era bom. Comi as duas metades com voracidade e descasquei uma segunda fruta que também comi. Quando parti a terceira pela metade vi que tinha uns bichos e joguei-a fora. Voltei a subir na árvore e colhi mais meia dúzia. Cinco delas entre as mais duras, pensando em levá-las comigo na mochila para que me servissem nos outros dias; as outras para comer nesse mesmo instante.
Terminei o café-da-manhã e me senti plenamente satisfeito, tanto por haver conseguido comer como pelo feito em si de haver conseguido encontrar comida. De todo modo, propus-me a permanecer muito atento a partir de agora para encontrar outras fontes de alimento, fossem frutos ou qualquer outra coisa, já que não podia estar unicamente à base dessa fruta. Decidir fixar-me nos pássaros e nos macacos. Ademais, devia pensar em alguma forma de comer carne sem ter que cozinhá-la, já que ainda que tivesse isqueiro, não podia arriscar-me a fazer fogo por medo dos rebeldes, a menos que descobrisse como fazer fogo sem fazer fumaça. Talvez se a comesse em pedaços bem pequenos não seria tão difícil. Algo parecido com carpaccio dos restaurantes italianos.
Olhando para o rio em busca de algum peixe com aparência comestível, notei umas plantas que cresciam na ribeira. Tinham mais de meio metro de altura, de cor verde ou avermelhada nas folhas mais novas. Estavam cobertas em seu talo por pelos eriçados. Suas folhas eram ovaladas de contorno com as bordas serrilhadas, como pequenos dentes[14 - Flora: Hortelã-da-água, Mentha aquatica]. O que me chamou a atenção de verdade foi o seu cheiro. Tinha um intenso aroma de menta. Pensei que talvez me pudesse ser útil e colhi um bom punhado de folhas.
A selva não parava de me surpreender. Talvez eu realmente conseguisse sobreviver. Novamente a euforia. Nesse dia decidi seguir como na tarde anterior: paralelo ao leito do rio mas sem andar pela costa. Que me lembrasse, a República do Congo não tinha saída para o mar, de modo que o rio só desembocaria no oceano em outro país, onde não havia rebeldes e eu poderia encontrar ajuda. De todo modo, o método alternativo de me guiar pelo sol não parecia me levar a lado nenhum, já que não fazia a menor ideia de como me orientar.
A manhã se passou tranquila. Andando e descansando; ainda que com uma sensação de cansaço permanente que fazia com que minhas pernas pesassem vinte quilos cada uma. De vez em quando tinha a sensação de estar sendo vigiado, uns olhos fixos permanentemente em minhas costas, mas por mais que olhasse nunca via ninguém, nem sequer algum rastro de vida humana. As meias surpreendentemente haviam secado. Os tênis ainda estavam úmidos, mas pelo menos já não faziam aquele ruído desagradável, ainda que tivessem infectado meus pés com algum tipo de fungo, como se houvesse estado em uma piscina pestilenta. Quando via algum pássaro ou qualquer animal ficava totalmente quieto e observava pra tentar descobrir o que comiam, mas não tive sorte, apenas os vi se moverem de um lado para outro sem aparentarem ter muita fome. Sorte deles.
Em um dado momento algo caiu no meu nariz, passei a mão e observei, parecia água. Olhei para cima e vi como caía uma gota e outra e logo outra, até que em um dado momento as nuvens pareciam estar desabando sobre mim. O céu escureceu quase de repente. Estava chovendo, digo, caindo um dilúvio de um jeito que nunca havia visto antes. Muito longe soavam trovões e, de vez em quando, entrevia o fugaz resplendor de um relâmpago, fulgores que iluminavam ao redor como se fosse um farol. Rapidamente busquei um lugar onde pudesse me refugiar. O único que encontrei foi a possibilidade de ficar debaixo de uma árvore agachado no chão com a mochila sobre as minhas pernas. Vesti o gorro e cobri meu corpo com a manta. Logo, imitando as aves em momentos assim, me dispus a permanecer sem mover nem um dedo para me molhar o mínimo possível, deixando que a água se resvalasse sempre pelos mesmos lugares.
Esteve chovendo sem parar durante muitas horas, tantas que me pareceram dias. Tinha fome mas não me atrevia a me mexer. A água havia encharcado completamente a manta e a camiseta, e já notava filetes caindo por algumas partes de minhas costas. Também caia pelo tronco da árvore passando em algumas partes por baixo de mim. Mais água, mais trovões, mais flashes de luz. Nessas horas em que não movi nem mesmo a cabeça, distraía-me tentando vislumbrar algum pequeno inseto no chão e, quando o encontrava, me entretinha vendo como as gotas caíam em cima dele ou como a correnteza o arrastava. Também localizei um par de minhocas fazendo uma festa, esfregando-se na lama da superfície. E seguia chovendo e trovejando, como se o Deus criador bantu, Bumba, estivesse acumulando forças e soltasse toda sua raiva em um único golpe, sobre minha cabeça, para acabar comigo. Sentia frio e comecei a tremer, os dentes se batiam até mesmo contra minha vontade, de forma incontrolável. Em algumas partes se haviam formado pequenos riachos, que corriam desviando dos obstáculos em direção desconhecida. Atrás de mim ouvia como o rio rugia com mais força do que o normal, supunha que aumentado de volume devido à chuva. A fome apertava cada vez mais meu estômago, e a chuva continuava e continuava. E mais trovões e mais faíscas elétricas produzidas pelas descargas dos combates entre as nuvens. Cada vez estava mais molhado. Isso de ficar quieto devia ter efeito com pequenos chuviscos, mas com tormentas assim somente valia ter um teto e quatro paredes, porque não creio que nem sequer um guarda-chuvas me livrasse de ficar como se tivesse acabado de nadar no rio. Agora já não tinha que me preocupar porque meus tênis estavam molhados, agora só queria saber quando o céu terminaria de se esvaziar sobre minha indefesa cabeça.
Estava desesperado. Comecei a pensar que isto poderia durar por dias ou até semanas. Lembrei-me das monções asiáticas e de seus efeitos devastadores. Não estranhava que houvesse árvores tão altas na selva se eram regadas assim amiúde. Se isso durasse muito mais tempo ia logo parecer um aquário com macacos em lugar de peixes. Curiosamente, com a chuva, se apagaram a maioria dos sons e ruídos habituais. Devia ser que o estrondo da água caindo apagava todos os outros, cujos responsáveis haviam ido para casa se refugiar. Todos menos eu, que estava ali, no meio da tempestade do século sem mal conseguir onde me abrigar, na mais absoluta intempérie. Se continuasse descendo neste ritmo tão rápido a próxima coisa que cavaria seria minha tumba, para poder me sepultar quando morresse de esgotamento físico e mental. Do jeito que estava não me parecia uma opção tão ruim, quase um descanso desejável.
Um raio caiu sobre uma árvore a uns dez metros à minha frente partindo-a pela metade. O estrondo que produziu me deixou sem poder ouvir durante alguns segundos. O chão tremeu, o fim do mundo se aproximava e eu estava perdido. A parte superior da árvore caiu ao chão em meio a um forte alvoroço, logo grudado ao tronco de outra árvore que se mantinha de pé e queimando na sua extremidade. Um cheiro estranho inundou tudo. De início fiquei petrificado pensando no perigo que corria estando tão próximo de outra árvore, imaginando um raio atravessando o meu corpo, fritando-me instantaneamente por dentro; mas logo me peguei observando o fogo e decidi que, já que estava completamente ensopado e não fazia diferença ficar quieto ou não, ao aproximar-me do fogo teria ao menos um pouco de calor, algo que nesse momento desejava com todas as minhas forças. Levantei-me e todas as articulações me doeram como se me cravassem uma infinidade de grandes agulhas, principalmente nos joelhos. Tive que tentar três vezes e esfregar muito as pernas até que consegui alguma mobilidade. Aproximei-me da chama apenas alguns centímetros.
O calor do fogo me golpeou o rosto como uma onda, mas foi uma sensação agradável. Fechei os olhos e desfrutei do calor redentor, libertador, que me envolvia. Mesmo que já não servisse para nada, voltei a me cobrir com a manta. Enquanto esperava que o dilúvio terminasse buscava pequenos galhos ou gravetos próximos e os jogava ao fogo para que tivesse mais do que se alimentar, que não lhe faltasse combustível. Quando tocavam o fogo produziam crepitações e produziam um resplendor momentâneo, como lampejos, mas logo ardiam com rapidez. Aproveitei também que havia me movido para tirar outros três frutos da mochila, descascá-los e comê-los. Fiquei enjoado deles, mas não acabaram de todo com minha fome e não queria comer mais a mesma coisa. Resolvi mordiscar um galho para despistar o apetite.
Acredito que, com quase toda certeza, essa noite teria morrido se não fosse pelo calor desse fogo oportuno.
Adormeci várias vezes, com a cabeça caindo sobre meus joelhos, mas logo me despertava com o estrondo de um raio ou pelo grito aparentemente desesperado de uma criança. Praticamente já não sentia mais a água sobre meu corpo. Amparado pelo ardor do meu amigo vermelho e amarelo passei toda a noite, até que amanheceu e, por fim, parou de chover.
DIA 5
SOBRE COMO O DESESPERO ME LEVA FAZER COISAS DESAGRADÁVEIS
Um sol radiante surgiu por entre as nuvens acariciando meu rosto emaciado. Olhei para o relógio, eram quase oito horas da manhã. Fiz um cálculo rápido: havia estado chovendo quase vinte horas seguidas. Bebi um bom trago e comi os dois frutos que me sobravam. Não me sentia nada bem. Sentia-me debilitado, tremendo, com as forças diminuídas, quase desfalecido. Podia ouvir como os sons habituais de piados, gritos, zumbidos e coisas assim tomavam outra vez posse da selva, desta vez acompanhados do ruído da água correndo pelo solo, caindo por entre as folhas das árvores em milhões de cascatas e, sobretudo, o incrível rugido que saía do rio atrás de mim. A umidade habitual havia aumentado muito com a chuva, chegando a ser asfixiante.
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notes
1
Língua suaíli: nitoka, enyi!, maarusi!: Vocês! Saiam, depressa!
2
Língua suaíli: basi: alto!
3
Língua suaíli: nifyetua!: atirem!
4
Flora: Dendezeiro, Elaeis guineensis
5
Fauna: Morcego cor-de-palha, Eidolon helvum
6
Fauna: Surucuá (Trogon) de narina, Apaloderma narina
7
Fauna: Papagaio cinzento, Psittacus Erithacus
8
Fauna: Cobra-cipó, Leptophis ahaetulla marginatus
9
Fauna: Formigas legionárias, Dorylus Spp
10
Fauna: Tetra do Congo, Phacogrammus interruptus
11
Fauna: Cercopitemo mona, Cercopithecus mona
12
Fauna: Cercopitemo diana, Cercopithecus diana
13
Flora: Cola digitata
14
Flora: Hortelã-da-água, Mentha aquatica