Sumalee

Sumalee
Javier Salazar Calle
Uma viagem a Cingapura para dar início a uma nova vida. Lá, o protagonista conhecerá a esperança, a traição, a dor e viverá uma tórrida história de amor com uma mulher avassaladora. Como ele foi parar no inferno de Bang Kwang, uma prisão tailandesa de segurança máxima? O que fez com que ele se transformasse em um homem totalmente diferente, capaz das mais obscuras atrocidades?
Uma história apaixonante de máfia, mistério e violência que levará o leitor por uma torrente de sentimentos e aventuras que o prenderá desde a primeira página. Novela carregada de emoções que, junto a um surpreendente final, não deixará ninguém indiferente.
Às vezes a vida não dá muitas opções e as que ela oferece não tem porque serem as que mais te agradam. Você nem sequer tem que gostar delas.


Sumalee
Histórias de Trakaul

de
Javier Salazar Calle
Traduzido por Mariana Baroni
Ilustração da capa © Sara García
Ilustrações internas @Elena Caro Puebla
Foto do autor © Ignacio Insua
Título original: Sumalee. Histórias de Trakaul.
Copyright © Javier Salazar Calle, 2020

3ª Edição (revisada)

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Dedico a Raquel, a melhor amiga que alguém poderia desejar.

Agradecimentos:
A Antonio Fernández, por contribuir com seus extensos conhecimentos sobre Cingapura e revisar o livro; a Josele González, pela fantástica página da Web que me fez (www.javiersalazarcalle.com (http://www.javiersalazarcalle.com)); e a meus leitores beta, por tornarem este livro muito melhor: minha mulher, Elena Caro; minha irmã, Pilar Salazar e meu pai, Jose Antonio.
ÍNDICE

Tailândia 12 (#ulink_531263f0-6fee-515a-8fb2-b4fd1b44be7b)
Cingapura 1 (#ulink_c6d6797b-a460-57a5-8c00-930ac647a1f2)
Cingapura 2 (#ulink_349ed04d-8f72-59fa-bbdc-c802d035ae97)
Cingapura 3 (#ulink_ab46231c-63d9-5ac3-bc8d-1916bca746c8)
Tailândia 13 (#ulink_1da3e428-f1fc-512c-b73c-804adb792bc3)
Cingapura 4 (#ulink_a5169663-4f7d-5455-8750-d025eb2f426c)
Cingapura 5 (#ulink_d54240f6-e25a-5428-b29d-2a85c0783880)
Cingapura 6 (#ulink_ee8a251b-65b7-5543-8426-7464529486ff)
Tailândia 14 (#ulink_21a9d657-5b74-5b23-9679-9d2bd153561f)
Cingapura 7 (#ulink_6503cd79-9b69-5326-87bc-ba9bba79d59d)
Cingapura 8 (#ulink_43c52f84-a25e-5bde-8df6-53deb5084061)
Cingapura 9 (#ulink_ae8fd1a8-4cd0-5ec9-9d5b-15a19d837b95)
Tailândia 15 (#ulink_6d61a92f-ff43-53e0-b4fb-c51d49852a90)
Cingapura 10 (#ulink_6ea193d0-f899-5af7-9c2f-a9ef522add51)
Cingapura 11 (#ulink_6b29db2a-f20b-5d17-8aa9-803331353123)
Cingapura 12 (#ulink_1314fdc6-00fe-591a-9e54-c04cb4fb16e8)
Cingapura 13 (#ulink_d27f1acc-4770-543a-a7cd-f1def61a8c5d)
Tailândia 1 (#ulink_dc2e86eb-f777-5158-b7be-f44ea2d0a7f2)
Tailândia 2 (#ulink_ecaeb66f-f611-5db6-ae4d-7f29d8783398)
Tailândia 3 (#ulink_902d8597-449d-5cc9-90c5-f5881ffdf690)
Tailândia 4 (#ulink_3bb5a717-a692-54d7-9fae-5b3fd6c9e622)
Tailândia 5 (#ulink_4d5e475c-f71a-5037-9301-c574fac7586f)
Tailândia 6 (#ulink_6f661a14-bc6a-5c57-ad82-a94283537559)
Tailândia 7 (#ulink_990c6913-3dab-5b31-8dd8-4799ceae96f4)
Tailândia 8 (#ulink_fab2cc66-e8ff-52c2-ae8a-5154e93ca687)
Tailândia 9 (#ulink_75f0083d-e84d-5e36-a5b3-4ced2f02a699)
Tailândia 10 (#ulink_70941821-9b92-5ef8-82ce-a510d5d4f22b)
Tailândia 11 (#ulink_1843be7a-8fc4-5130-9551-48323898d985)
Tailândia 16 (#ulink_33513604-631a-5c4f-bd29-c4524d9621a2)
Tailândia 17 (#ulink_b21c648a-a39c-5c56-bfbf-593c29bf9d51)
Tailândia 18 (#ulink_ea18fd17-fb9a-5a43-87e0-b6c2b6048e89)
Tailândia 19 (#ulink_9702ed3f-c764-5bc8-9135-b3a29acfe331)
Tailândia 20 (#ulink_2dbd0038-3527-5ab5-b997-7d86f6dda434)
Tailândia 21 (#ulink_d07cfadc-5057-5efa-a152-2a571dcdf00c)
Tailândia 22 (#ulink_45663114-19c5-53a3-a4fc-bd03124493c1)
Tailândia 23 (#ulink_911033b4-7f73-5590-8ad1-737d00fed6bc)
Tailândia 24 (#ulink_987bf6e4-4dac-5b82-a5ec-d6129dfdcf27)
Tailândia 25 (#ulink_47b85aa0-0855-5fe3-8cac-ccf765ab3707)
Tailândia 26 (#ulink_d59ce4cd-074e-5fb2-ab15-8cf7303c16a2)
Tailândia 27 (#ulink_d1abff74-33ec-504e-aae8-26886a75b869)
Tailândia 28 (#ulink_e0cfa8b9-edc0-5564-a150-e95105360375)
Tailândia 29 (#ulink_c791811a-a38b-5803-9aa9-e52da9cb4d9f)
Tailândia 30 (#ulink_47557282-a8a0-5784-b2bd-11e93fb81703)
Outros livros do autor (#ulink_bea403d1-650e-546f-a1e6-24fd4d7df725)
Sobre o autor (#ulink_2d8b258d-b8e4-5082-8c0c-521d4762fcb3)

Tailândia 12
A primeira porrada me deixou meio aturdido. A segunda me derrubou no chão. Ali, recebi um monte de chutes durante vários minutos. Tentei me encolher como um bebê e cobri a cabeça como pude. Um deles gritou, se divertindo:
— Você sabe bem como apanhar.
Quando se cansaram, eles foram embora do mesmo jeito que chegaram, andando com calma, rindo. A multidão se dispersou em seguida e quando abri os olhos, tudo parecia normal à minha volta, como se nada tivesse acontecido. Cada preso com suas coisas. Lei do silêncio.
Não era a primeira vez. Tinham me acertado nas marcas de todas as surras anteriores, sobre hematomas com toda sorte de cores em todas as suas fases de evolução. Em um deles, de um soco no olho, me deixaram com a visão embaçada por um par de dias, mas acabei me recuperando. Nesses dois dias, eu estava convencido de que ficaria cego para o resto da vida. A certeza era aterradora, muito mais que a lesão em si. Em outra ocasião, quando me deram um tapão no ouvido, fiquei enjoado por uma semana. Também tinha várias costelas lesionadas, não sabia se quebradas, e dores de todo tipo em cada parte do corpo. Me lembrava dos temos da juventude, quando eu dava uma de valentão e todo dia saía na porrada com alguém. Aprendi que proteger a cabeça era o fundamental. O resto sarava; melhor ou pior, mas sarava. O que era sinistro nessa situação, o mais humilhante, era ver como os guardas da prisão eram espectadores à distância em muitas dessas surras. Até riam e apostavam. Sobre o que? Não sabia, porque me limitava a receber as porradas desejando que acabassem o mais rápido possível. Talvez sobre se aquela seria a surra que me mataria.
Tentei me levantar, mas uma dor aguda no peito me impediu. Ali, no chão do corredor, de joelhos, eu tentava abrir a boca ao máximo para poder pegar a maior quantidade de ar para aliviar minha sensação de sufocamento, de asfixia. Eu estava me concentrando em respirar de forma lenta e profunda, mas não conseguia. Levei um tempo para diminuir meu ritmo cardíaco e poder respirar novamente com relativa normalidade. Com um árduo esforço fiquei de pé e, cambaleando, apoiando-me nas paredes, me esquivando de outros presos que me ignoravam, cheguei à minha cela. Minha e de mais quarenta pessoas.
Uma vez ali, sentei-me no colchonete e fiquei um tempo quieto, tentando deixar a mente em branco e isolar-me de tudo o que me rodeava, incluindo a dor que percorria meu corpo de cima a baixo. Um corpo que pedia aos gritos que eu me deitasse e não me levantasse por algumas horas, mas eu sabia que não podia fazer isso. Eu sabia. Minha sobrevivência dependia disso. Fiz o que eu tinha que fazer. O que era necessário. Me levantei e comecei minha rotina de treinamento. Alongamentos complexos, flexões, agachamentos… Trabalhando cada parte do corpo de forma independente e junto com as demais. A dor era quase insuportável, mas nem por isso parei; mesmo chorando em silêncio, molhando o chão com minhas lágrimas. Nunca deveria mostrar fraqueza. Se eu quisesse sobreviver, se quisesse poder sair algum dia dali sem que fosse no triste caixão de papelão que usavam, eu deveria continuar. Acabei o treinamento, tanto com os movimentos que eu tinha aprendido com meu antigo professor de boxe, quanto imitando o que eu via os prisioneiros que treinavam Muay Thai fazerem no pátio, aprendendo a lutar como eles, com a diferença de que eles faziam isso diante de todos, em plena luz do dia, e eu só treinava quando ninguém estava me vendo. Afastado de todo olhar curioso. Preparando-me nas sombras.
Algum dia, que eu esperava que fosse logo, me sentiria preparado e não me limitaria a receber os golpes, tentando minimizar o dano, mas responderia de forma brutal, certeira e sem compaixão. Matando, se fosse necessário. Sim, mataria sem pensar duas vezes. Nesse dia, eu ganharia o respeito deles e terminaria essa parte do pesadelo que estava vivendo. Eu tinha que garantir minha vitória de qualquer jeito, porque se me levantasse conta eles e não triunfasse de forma a não deixar espaço para dúvidas, me matariam. Pode ter certeza disso. Enquanto isso, só me restava ter paciência e tentar me manter com vida até esse momento, sem sofrer nenhum dano irreparável.
Eu tinha visualizado na minha cabeça mil vezes esse momento. Com mil variantes, com diferentes finais, em todo tipo de cenário, tentando prever qualquer possibilidade. Em breve, muito em breve, chegaria a minha hora. Ou morreria.
Mas como eu tinha chegado a esta situação, quando há apenas algumas semanas eu era David, um insignificante profissional de TI nos escritórios de uma instituição financeira de Madri? Que circunstâncias tinham me empurrado para esta situação inconcebível em tão pouco tempo?
Enquanto eu lutava contra o sofrimento, enquanto seguia com o calvário que me levava ao exercício, repassava as infelizes circunstâncias vividas. Que me empurraram de uma vida tranquila no departamento de informática de um banco para estar preparando0me para poder matar alguns indesejáveis que abusavam de mim constantemente na temida prisão de Bang Kwang, a sete quilômetros ao norte de Bangkok, na Tailândia. Uma das prisões mais perigosas do planeta. O poço de perdição onde eu me encontrava. Meu final, se eu não fosse capaz de inventar um caminho que me salvasse.


Cingapura 1
Algumas semanas antes…

Me custou várias tentativas para conseguir desligar o despertador. No segundo tapa, quase que eu o atiro da mesa de cabeceira. Sentei-me na borda da cama e estiquei os braços enquanto dava um grande bocejo. Mais um dia de trabalho. Como um autômato, levado pela rotina, comi o café da manhã, tomei uma ducha e me vesti. Quarenta minutos depois de ter me levantado, estava arrancando com o carro.
No caminho do trabalho, repassei meus últimos meses. Marcado pelo rompimento com minha namorada de sempre, ainda não tinha conseguido levantar a cabeça. Depois de sete anos, parecia que ela tinha se cansado de mim e me deixou para ficar com um suposto amigo que eu mesmo apresentei a ela e com quem, pelo que fiquei sabendo logo, já estava envolvida há muito tempo. Eu estava cego durante todo esse tempo, sem ver o que os outros me avisavam. Desde então, eu andava como uma alma penada, sempre cabisbaixo e triste. Desolado. Tinha me refugiado no boxe, que eu praticava várias vezes na semana. Esmurrava o saco de pancadas e os companheiros colegas de treino, como se essa adrenalina fosse capaz de devolver minha vida. Além disso, eu não gostava nem um pouco do projeto em que estava trabalhando no banco. Todo O dia todo fazendo testes, sozinho, com uma tediosa ferramenta e anotando os resultados em um documento padronizado. Resultado correto, resultado incorreto, ocorrência. Às vezes, eu olhava pela janela do quarto andar, onde ficava minha mesa, e tinha vontade de me atirar por ela. De forma figurada, claro. Nunca tinha pensado em algo tão drástico como o suicídio. Eu estava triste, não destruído. Resultado correto, resultado incorreto, ocorrência.
O que eu não sabia era que esse dia ia mudar minha vida para sempre. De uma forma que eu nunca havia imaginado.

Depois de meia hora dirigindo e um tempo dando voltas para encontrar lugar para estacionar, cheguei ao meu posto no escritório. Liguei o computador e fui cumprimentar outro colega. Quando voltei, dei uma olhada rápida, como todas as manhãs, nos e-mails recebidos. A mesma coisa de todos os dias: testes, testes, resultados de testes, perguntas sobre os testes, solicitações de testes, relatórios de testes e previsão de testes. Apenas um e-mail era diferente do restante. Era do meu gerente, enviado no dia anterior à noite, me pedindo para que ligasse para ele para conversar sobre um assunto. Não tinha nem ideia do que poderia ser, mas seja lá o que fosse, tudo o que sugerisse fazer algo diferente, ainda que fosse por cinco minutos, seria bem-vindo. Olhei para o relógio. Nove e meia. Bom horário. Peguei o celular do trabalho, procurei pelo Valentín na agenda e liguei.
— Pois não? — soou a voz de Valentín.
— Oi, Valentín. É o David. Acabei de ler seu e-mail e estou te ligando para ver o que você queria me contar.
— Bom dia, David. Como vai?
— Entediado. Você sabe que esse projeto que me designaram vai me matar. Diga que tem algo para mim. Preciso de uma mudança.
— Pode ser. O que você sabe sobre Cingapura?
— Cingapura? — Aqui ele já tinha conseguido atrair minha atenção. Fiquei em pé e fui até a sala de reuniões próxima, que estava vazia. — Não sei, Valentín… Um país pequeno da Ásia, com bom nível de vida, muito civilizado, falam chinês e inglês…
— É aí que eu queria chegar! — gritou Valentín. — Falam inglês, como você.
Era verdade, eu sou bilíngue. Minha mãe era americana. Apaixonou-se por meu pai e veio morar e trabalhar na Espanha. Poucos anos depois de eu nascer, meu pai desapareceu sem dizer nada. Nunca se soube mais nada dele. Todo mundo pensava que ele tinha abandonado minha mãe, mas ela sempre acreditou que tinha acontecido alguma coisa com ele, porque estavam apaixonados até o último fio de cabelo. Em todo caso, eu me criei sem pai desde os dois anos, coisa que teve muita influência em minha infância e adolescência, e falando inglês desde então.
— O que você está me propondo então?
— David, surgiu um projeto em Cingapura de uns seis meses de duração, ampliável a dois anos, no qual você se encaixa perfeitamente por causa dos seus conhecimentos e do idioma. Sei que é um pouco precipitado, mas preciso que me diga algo entre hoje e amanhã, porque existe uma urgência para começar a cuidar de toda a papelada. — Levantei as sobrancelhas, expectante. — Vou te mandar todas as informações do projeto e das condições nas quais você iria. Qualquer coisa, me liga e esclareceremos tudo. O que acha?
— Não sei o que dizer, Valentín. Você me pegou um pouco de surpresa…
— Eu sei, eu sei. Pense nisso e amanhã você me dá uma resposta. Não estava cansado de fazer testes? Essa é sua oportunidade e, se você se der bem, isso ajudará muito na sua possível promoção deste ano. Vou te mandar o e-mail. Pense e amanhã você me fala. Ei, sei eu não achasse que você se encaixava bem, não teria tocado no assunto.
— Tudo bem, tudo bem. Amanhã te dou uma resposta. De qualquer forma, obrigado por se lembrar de mim.
Quando desliguei o telefone, fiquei pensativo. Ao chegar à minha mesa, o e-mail de Valentín já estava na caixa de entrada. Estava claro que ele tinha pressa. Abri e li todas as informações. Projeto interessante, país com referências incríveis, boas condições financeiras que incluíam o alojamento e, acima de tudo, sair daqui por um tempo; afastando-me da lembrança da minha ex e dos chatíssimos testes. Estava claro. Cinco minutos depois da ligação eu já sabia qual era minha decisão. Ainda assim, decidi esperar até o dia seguinte para dar ao meu cérebro a chance de repensar, ainda que, quando eu tomava uma decisão, e costumava fazer isso muito rapidamente, poucas vezes eu mudava de ideia. Ao chegar em casa, a única coisa que fiz foi verificar se meu passaporte estava em ordem.
O que de verdade eu sentiria falta era todos os esportes que praticava: corrida, basquete, futebol, tênis, escalada… eu era um apaixonado por tudo o que sugeria esforço ou risco, especialmente se fosse ao ar livre. Por outro lado, em Cingapura eu poderia praticar esportes de mar que em Madri era impossível e só podiam ser aproveitados no verão, como mergulho, navegação ou jet ski. Eu teria que fazer muito pouco para praticá-los vivendo em uma ilha. Voltei ao trabalho. Resultado correto, resultado incorreto, ocorrência.

No dia seguinte, ao meio-dia, liguei para Valentín e comuniquei minha decisão. Iria para Cingapura. Ele me mandou os detalhes da viagem e começamos a reunir toda a documentação. Personalised Employment Pass, EntrePass, Work Permit... Era um monte de opções e vistos. No fim, o que eu precisava era um Employment Pass, um visto de trabalho. Para este tipo de licença, era a empresa que solicitava em nome do candidato, mas tive que traduzir meus títulos acadêmicos (mas assim que cheguei a Cingapura, tive que homologar os originais com um tradutor juramentado de lá e esperar que fossem aprovados pelo Ministério do Trabalho), preencher formulários para o seguro saúde, providenciar cópias do passaporte e do registro de trabalho da minha empresa… O fato de não ser uma mudança de empresa, mas uma transferência e de a companhia se encarregar de quase todos os trâmites tornou o processo muito mais simples.
Algumas semanas depois, eu estava no aeroporto de Barajas pegando um voo a Qatar Airways a caminho de Cingapura. As outras pessoas da equipe já estavam ali há algumas semanas preparando o lançamento do projeto e lendo documentações. A empresa pagava um apartamento de três dormitórios compartilhado com dois colegas, por isso, não teria que me preocupar em buscar correndo um lugar para morar e teria a oportunidade de conhecer gente desde o primeiro dia.
Eu tinha comprado um livro de viagem sobre o país que li durante o voo. Tempo era o que não me faltava: dezesseis horas de voo com escala em Qatar. Era para se imbuir de paciência.
O livro começava com a típica apresentação da história do lugar. Pelo visto, Cingapura era uma cidade-estado que tinha passado de mão em mão e onde agora vivia uma mistura de raças e idiomas única. De fato, os idiomas oficiais eram quatro: inglês, malaio, tâmil e chinês mandarim. Dois além dos que eu achava que sabia.
O que me importava era o fato de ser o quarto maior centro financeiro do mundo (atrás de Nova York, Londres e Tóquio) e o quinto porto de mercadorias mais importante, dada sua posição estratégica. Na teoria, quase um paraíso na Terra e uma oportunidade profissional sem igual. Logo descobriríamos, uma vez ali. Pelo menos, de cara, parecia promissor. O livro estava cheio de todo tipo de dados, o que aproveitei muito. Me encantavam as cifras e as curiosidades sobre qualquer coisa. Eu mergulhei na leitura tentando absorver, como bom turista, todas as informações relevantes.
Por fim, anunciaram que estávamos chegando ao aeroporto de Cingapura. Um aeroporto construído sobre o mar. Grudei na janela para poder vê-lo bem. Debaixo de mim, via-se a aglomeração da cidade, apesar de eu ter ficado surpreso de forma grata com a quantidade de árvores que havia ali. Odiava os lugares em que a única cor visível era a do cemitério. O aeroporto estava em um canto da ilha e, em seguida, via-se um grande porto naval. O mar ao redor estava coalhado de barcos de todos os tamanhos, mas principalmente daqueles gigantescos que carregavam contêineres. Nunca tinha visto tantos juntos de forma tão organizada, formando longas filas de barcos paralelos. A cidade estava infestada de arranha-céus e altos edifícios. Nas bordas da ilha havia largas praias com densa vegetação por trás. Logo pude ver uma área de casas mais baixas, como urbanizações dos arredores, que acabavam ao lado de um largo rio cruzado por pontes.
O avião voava muito baixo sobre uma região de gramado bem cuidado e pude ver aparecer a pista bem debaixo da asa esquerda, onde me encontrava. Logo senti o solavanco do trem de pouso ao tocar o solo e o avião começou a frear. Ao fundo, a uns cem metros, estava escrito com arbustos o nome do aeroporto: Changi.
O avião saiu da pista e se dirigiu ao terminal. Não dava para ver do meu lado, mas podia deduzir que estava ali através da vista das janelas do outro lado. A comissária de bordo anunciava pelos autofalantes, entre outras coisas, que a temperatura era de vinte e seis graus. Por se tratar de uma zona equatorial, as temperaturas costumavam ser mais ou menos essa, com alta umidade e muitas chuvas rápidas, mas intensas.
Em pouco tempo, nos deixaram levantar e ir atrás das bagagens. Com a mala e a mochila nos ombros, dei uma volta pelo aeroporto. Havia coisas curiosas que eu estava acostumado a ver, como áreas de internet grátis para notebooks e até computadores para quem não tivesse um. Também havia uma área para relaxar, com espreguiçadeiras, parecidas com as de piscinas, de frente para os aviões e onde as pessoas estavam escutando música, dormindo ou lendo.
Continuei avançando em busca da plataforma dos trens. Nas telas eram anunciadas chegadas e partidas de todas as partes do mundo. Finalmente cheguei. Era preciso pegar algo parecido com um bonde chamado Skytrain que levava ao Terminal 2, onde eu pegaria um táxi. Quando o trem parou na plataforma, me chamou muito a atenção que ele não tinha condutor. Em seguida, ele me deixou no Terminal 2. No meio dele havia um jardim tropical com um pequeno tanque e flores lindas. Sofás de automassagem gratuitos, lágrimas de cristal pendentes que subiam e desciam, aquários com peixes laranjas, lugares para receber massagem asiática… Até anunciavam uma piscina no Terminal 1 de onde, segundo as fotos, podia-se ver a pista de aterrisagem! Incrível. Nos banheiros haviam painéis táteis com a foto do faxineiro do turno em vigor, onde se podia votar pressionando umas carinhas de acordo como você considerava que estava a limpeza do lugar. É claro que estava limpíssimo. Por algum motivo, aquele era considerado um dos melhores aeroportos do mundo. A primeira impressão de uma pessoa nova na cidade era seu aeroporto, e aqui eles tinham sido perfeitos.
Finalmente cheguei à saída e peguei um dos táxis que estavam esperando. Entreguei ao motorista um papel com o endereço da minha futura casa e ele saiu dali. Eu tinha chegado em um sábado e a empresa tinha me comunicado que meus colegas de apartamento me esperariam em casa para ajudar com minha instalação e me contar um pouco do que eu precisava saber para começar a me adaptar o quanto antes. Não havia possibilidade de me enganar com o lugar, porque se chamava Spanish Village. Vila Espanhola, no idioma de Cervantes. Curioso lugar para se hospedar um grupo de espanhóis. Não se era coincidência ou de propósito, mas o nome era perfeito para tentar me sentir como se estivesse em casa. Eu tinha procurado na internet e ficava no bairro de Tanglin, ainda que isso, naquele momento, não significasse nada para mim.
Começava minhas andanças por Cingapura.

Cingapura 2
Em menos de meia hora, o táxi parou na frente da entrada de um complexo de edifícios e o motorista me indicou que esse era o destino que dizia o papel. Dei uma olhada e vi que à direita da entrada estava Spanish Village 56-88 Farrer Road e, o que deduzi, que era a mesma coisa em caracteres chineses. Após trocar algumas palavras com o guarda da guarita de segurança, este entrou no complexo e parou em seu interior. Paguei ao motorista com os dólares de Cingapura que tinha trazido da Espanha e o vi se afastando.
Olhei de novo para o papel onde tinha anotado o endereço. Eu estava no lugar certo. Comecei a andar com toda a minha bagagem nas costas buscando pela entrada. O conjunto era formado por um grupo de edifícios de cor bege e terra vermelha em cada terraço. Com quatro andares de altura, mais um andar térreo, formavam todos uma elipse. No meio dos edifícios, encontrei uma piscina bastante grande, um parque infantil, áreas para estacionar ao ar livre, duas quadras de tênis, uma área de churrasqueiras… Via-se que aqui a urbanização era muito completa, não como o triste apartamento em que eu morava enquanto procurava uma casa melhor para viver com minha ex. Minha ex, Cristina. Agora ela estava a milhares de quilômetros de mim e, ainda que houvesse momentos em que a sentisse dolorosamente perto, até com terrível intensidade, eu tinha que me esquecer dela. Já estava farto de tanta penúria, motivada autocompaixão e inusitada tristeza, tinha que voltar a aproveitar a vida. Eu gostaria de voltar a ser esse David louco de antes de conhecê-la; sem rodeios, sem compromissos, sem necessidade de dar explicações a ninguém. Pelo menos na parte de conhecer muitas mulheres e curtir com elas sem amarras.
Uma vez dentro, enquanto procurava a porta do edifício, um homem de traços asiáticos me interceptou e me perguntou em um inglês sofrível onde eu estava indo. Adivinhei que era alguém da manutenção ou algo assim. Eu disse a ele que era um novo inquilino e informei o apartamento. Isso pareceu tranquilizá-lo. Ele apertou minha mão com efusividade e, com um largo sorriso na cara, me acompanhou até a porta do meu edifício, ajudando-me com minha mala. Ele mesmo chamou no meu apartamento e, quando alguém respondeu, uma voz que me soou familiar, ele avisou que o novo inquilino tinha chegado. Parei um momento para pensar como tinha sido esperto o zelador, não aceitando minha palavra de cara, mas acompanhando-me até a porta para confirmar o que eu disse com meus companheiros. Quando a voz confirmou que estava me esperando, deu-se por satisfeito, despediu-se de mim e eu entrei no que seria meu novo lar, pelo menos pelos próximos seis meses. Ou pelo menos era o que eu achava.
Soou a campainha e eu empurrei a porta. Fiquei surpreso. Eu achava que tinha reconhecido a voz de Josele, que era um colega da minha empresa, um amigo com quem eu trabalhei três anos lado a lado e que, no fim, acabou em um projeto nos Estados Unidos junto com algum outro colega do banco. Desde o início nos demos muito bem. Senti muito quando o projeto terminou e tivemos que nos separar, mas tínhamos continuado a manter contato regular e nos vendo sempre que ele voltava para a Espanha.
Na porta do apartamento, como tinha suspeitado, Josele estava me esperando. Não tinha mudado nada, com esse cabelo que crescia nele como um topete, uma má imitação de Elvis Presley. Deixei minha mala e a mochila no chão e o abracei com entusiasmo.
— Josele, é você?
— Surpresa! Entre e já conversamos. Olha quem está aqui —disse ele, abrindo totalmente a porta.
— Dámaso!
Saí correndo e o abracei, levantando-o no ar. Dámaso era outro dos colegas que a empresa tinha mandado com Josele para os Estados Unidos. Um pouco estranho, mas uma cara conhecida, no fim das contas. O dia não podia começar melhor, tendo como meus colegas de apartamento esses dois personagens.
— Mas, o que está acontecendo aqui? Vocês não estavam nos Estados Unidos?
— Sim, estávamos — respondeu Dámaso. — O projeto acabou e nos mandaram para cá faz pouco tempo. Valentín nos disse que você estava vindo também, mas não quisemos dizer nada para não estragar a surpresa.
— E que surpresa, rapazes! Com certeza não poderia ser melhor. Outra vez juntos, e desta vez, colegas de apartamento. Cingapura, prepare-se!
— Sim! — gritou Josele, entusiasmado. — Poderemos voltar a praticar esportes juntos. Dámaso e eu saímos para correr duas vezes por semana e estamos em uma liga de basquete de expatriados. Já inscrevemos você na equipe.
— Fantástico — respondi. — Pelo menos não ficarei como um boi e me servirá para conhecer gente. Bom, me contem como é a vida aqui.
— Diego e Tere também estão aqui — informou Dámaso.
— Também! Que legal, toda a turma junta de novo. Não achava que fossemos voltar a trabalhar juntos no mesmo projeto.
— Sim, e sabemos de algo que você não sabe…
— Diego também está na equipe de basquete?
— Sim, ele está inscrito, mas não é isso.
— Então o que é?
— Estão saindo juntos.
— O quê? Tere e Diego? Desde quando?
— Não sabemos, porque demoraram para nos dizer, mas com certeza antes de virem para cá, então há pelo menos dois meses.
— Nunca teria suspeitado. Mas, de fato, se parar para pensar, eles são combinam muito mesmo. Fico feliz por eles! E o que fazemos agora então?
Josele e Dámaso primeiro me mostraram a casa. Tinha três quartos e dois banheiros. Eu teria que dividir o banheiro com Josele. Pelo visto, Dámaso insistiu em ter um só para ele e Josele não se importava. A sala e a cozinha eram espaçosas. A casa tinha internet com WiFi e um terraço fechado de onde dava para ver a piscina. Também me contaram que o bloco tinha segurança 24 horas. O homem que tinha me interceptado no jardim era de origem chinesa e se chamava Shao Nan e era o funcionário da manutenção do turno diurno. À noite era um malaio que se chamava Datuk Musa. Também havia uma academia, uma sauna e quadra de squash no térreo, além de um jardim com várias churrasqueiras, que eu já tinha visto, para poder fazer piquenique sem ter que sair do condomínio. Havia uma televisão grande na sala, mas cada quarto tinha outra pequena, além de ar condicionado, uma escrivaninha com cadeira e um armário grande para as roupas. Não sei se as outras pessoas do país teriam casas iguais, mas o nível devida aqui parecia incrível. Tínhamos dois shoppings a menos de vinte minutos andando, com todo tipo de restaurantes, lojas de alimentação e roupas, bancos ou lugares para se divertir. Pois é, nossa localização era perfeita.
Eles me contaram coisas úteis sobre os meios de transporte da cidade. O metrô se chamava MRT e tinha quatro linhas que cruzavam Cingapura de norte a sul e de leste a oeste. Também havia ônibus e o uso de táxi era muito comum, pois era bem barato. A empresa tinha me dado um cartão de transporte misto que servia tanto para o MRT quanto para os ônibus. Os escritórios da nossa empresa ficavam ao lado da desembocadura do rio Cingapura e próximo a um parque urbano chamado Fort Canning Park. Eles usavam o ônibus para ir ao trabalho. Tínhamos fretado e em menos de quarenta minutos ele chegava ao escritório.
Os horários de trabalho eram longos, como em todo lugar. O normal em Cingapura era trabalhar quarenta e quatro horas semanais e ter quatorze dias de férias, mas nós, por sorte, mantínhamos as férias da Espanha. Em Cingapura havia uma cultura de trabalho muito diferente da Espanha. Não acredito que na Espanha fosse possível instaurar-se uma jornada de trabalho de quarenta e quatro horas e apenas duas semanas de férias.
Josele me deu um saco com uma caixa dentro.
— O que é isso?
— Um presentinho da empresa. É seu celular corporativo para Cingapura. Dentro tem o telefone, o cartão sim e as instruções para se conectar com todos os aplicativos da empresa, mas na verdade, o único útil é o de e-mail. Na segunda vão te dar seu notebook.
— Poxa, muito obrigado. Vocês precisam me explicar sobre as tarifas e ligações para a Espanha. E para comer? Como fazem? O que se come aqui? Vão a restaurantes, como na Espanha?
— Bom, há muitas opções — respondeu Josele. — É muito difícil encontrar gente comendo em restaurantes porque são muito caros. O normal é comer nas cantinas do próprio edifício comercial, nos hawker centers, que são conjuntos de cozinhas com um pequeno balcão que compartilham uma área para comer, nos coffee shops, que são como os hawkers, mas mais caros e bonitos.
— E com ar condicionado! — interrompeu Dámaso. — É onde, via de regra, comemos.
— Sim, sim, e com ar condicionado — continuou Josele. — É que o Dámaso não se dá bem com o calor e a umidade. Em qualquer um desses lugares, é possível comer ou comprar sua comida para levar. Isso depende de cada um e de haver lugar para se sentar, porque às vezes não tem onde ficar na cantina, de tanta gente. Os restaurantes de comida rápida, como Burger King, McDonald’s e outros de cadeias asiáticas que não existem na Espanha, também ficam bastante cheios. Tem gente que leva marmita, mas é muito difícil ver ocidentais com elas. As pessoas de Bangladesh ou das Filipinas costumam levá-las porque elas gostam de comer coisas tradicionais de seus países e elas mesmas cozinham.
— Tá bom, tá bom —interrompi, rindo. — Só te perguntei onde vocês costumam comer, não sobre um estudo completo da sociedade de Cingapura e seu estilo de alimentação. Você me ajudou muito aqui. Tive tempo de arrumar o telefone e deixá-lo funcionando. Espera um pouco, vou ligar para minha mãe.
— Manda um abraço para ela! — disseram ambos em uníssono.
Eles a conheciam de quando trabalhamos juntos em Madri, de algum dia que tinham vindo à minha casa comer. Minha mãe era uma excelente cozinheira, que tinha se apaixonado pela comida espanhola, e ela adorava receber visitas. Tinha tido uma juventude atormentada, para dizer o mínimo, e ficava encantada em receber novos amigos que, à primeira vista, pareciam gente boa; nada a ver com as nada recomendáveis amizades da minha adolescência. Aproveitei o telefone da empresa para ligar e dizer que eu já tinha me instalado e estava novamente com meus grandes amigos. Ela se alegrou muito de saber que eu não estava sozinho e que eu conhecesse alguém ali. Mandou muitos beijos para os dois. Fiquei de ligar outra hora para podermos conversar com mais calma. Quando desliguei, continuei perguntando coisas que eu queria saber do lugar.
— E para se divertir, o que tem para fazer por aqui? Não preciso que me conte tudo o que tem para se saber sobre a cidade hoje, tá, Josele? Você também tem que se divertir um pouco. Tem algo de especial?
— Muitas coisas — respondeu Dámaso. — Em Cingapura, você não vai ficar entediado, com certeza. Tem todo tipo de entretenimento: desde simuladores de voo incríveis, corridas de cavalos, cassinos, parque de diversão, pistas de caminhada, museus, shoppings até dizer chega e, claro, centenas de pubs e baladas para sair e conhecer gente, que é o que você está precisando, principalmente alguma menina depois da sacanagem que a Cristina fez com você. — Minha cara denunciava como eu concordava com essa última parte. Parecia muito bom recuperar meus tempos de loucura, em o que importante era acabar com uma garota sem importar qual. — Próximo do nosso trabalho, do outro lado do parque, fica uma das principais áreas de caminhada. Ao longo de uma rua chamada Mohamed Sultan Road que é cheia de casas noturnas. A vinte minutos a pé. E também há golfe do outro lado da Marina Bay, claro!
— Já estava estranhando que você não voltasse a tocar no assunto do golfe. Com certeza, você ficou sabendo como ficar sócio do campo de golfe antes de descobrir onde comprar pão. E se tiverem por acaso câmaras de bronzeamento artificial, aí é perfeito, não é? — Comecei a rir.
— Você faz ideia do que é fazer um ace com uma só tacada logo de cara? Eu também não, mas continuo tentando.
— Como você o conhece, David. — Alfinetou Josele, entre gargalhadas. — Assim que ele chegou, perguntou ao taxista no caminho do aeroporto até em casa. E uma vez por ano acontecem corridas de Fórmula 1, claro. Acho que é lá para setembro, e nos disseram que é incrível, porque correm pela cidade de noite. Por isso, se estivermos por aqui, temos que ir, mesmo que você não goste de corrida, porque só o ambiente já deve valer a pena.
— Mas há quanto tempo vocês estão aqui? Já tiveram tempo de fazer tudo isso?
— Não, cara, — Riu Josele. — Os bares, sim, claro. Mas a maioria das coisas, outras pessoas que estão aqui há mais tempo nos contaram. Agora que você chegou, pode ter certeza que nos mexeremos mais.
— Cara, eu também queria poder navegar um pouco. Principalmente se eu tiver essa boa companhia.
— Você está se referindo a nós ou a alguma gatinha?
Nós três rimos. Estava claro que nesse tempo em que eles estiveram nos Estados Unidos, nós não tínhamos perdido a cumplicidade que sempre tivemos em nossos projetos juntos na Espanha. Especialmente com Josele.
Bons tempos estavam por vir.

Cingapura 3
No dia seguinte, saímos juntos para dar uma volta pela cidade. Eu queria muito sentir o ambiente desse novo país.
Como queria me fazer útil, peguei os sacos de lixo para jogá-los fora, mas Josele me parou na entrada da casa.
— Mas onde você vai com o lixo?
— Jogar fora. Eu vi uma lixeira lá fora.
— Minha nossa, temos que explicar tudo. Aqui existem instalações para o tratamento de lixo em cada bloco. Você joga o lixo pelos dutos que estão na cozinha, debaixo do micro-ondas, e ele vai pra onde tem que ir.
— Da hora. E os apartamentos do térreo?
— Eles deixam o lixo na porta da entrada de serviço e o pessoal da limpeza recolhe. Quase ninguém leva o lixo até a lixeira.
— E reciclam?
— Existem lixeiras coloridas para reciclar, se quiser, mas quase ninguém faz isso.
— Entendido. Todo o lixo no duto da cozinha.
Joguei os dois sacos e saímos para a rua. Começamos dando uma volta pelo nosso bairro, Tanglin. Os cingapurenses que vinham pela rua pareciam em sua maioria de origem oriental - chineses principalmente, mas também muita gente de aparência indiana e muitos que eu não conseguia dizer.
— São de origem malaia — esclareceu Josele. — Aqui, são mais calados e fechados que os europeus. Também são muito rígidos com as leis. Há uma infinidade de proibições. Algumas que podem parecer chocantes para a gente, e se se não as cumprir, vão te punir sem hesitar. Todo mundo aprende logo, por bem ou por mal, a ser respeitoso.
— Isso da ordem eu gostei.
— Nós já sabíamos. Do jeito que você é quadrado…

É verdade que naquele momento eu era, mas nem sempre tinha sido assim. (Eu entendo que era o contrário. Que antes eu era quadrado e agora não.)

Fomos para a direita, deixando para trás uma passarela de pedestres coberta com plantas cheias de flores roxas. Um pouco depois, chegamos a uma estação de metrô. O tipo de construção mudou e em nossa calçada apareceram casas pequenas, como se fosse uma zona de chalés geminados, mas elas eram diferentes entre si, tanto em materiais como na arquitetura. Um pouco mais adiante havia um cruzamento com outra rua importante chamada Bukit Timah, que seguia em paralelo com um riacho e com uma ponte elevada.
— À esquerda está o shopping que te falamos, o Coronation Shopping Plaza — disse Josele. — À direita, o jardim botânico.
— À direita então. Teremos tempo para ver lojas — respondi.
Seguimos até chegar à entrada principal do parque botânico ou, pelo menos, de uma das entradas. Ninguém sabia quantas havia. Me aproximei por curiosidade para ver a informação para entrar. Estava aberto das cinco da manhã até à meia-noite todos os dias do ano! Além disso, era gratuito, exceto a parte das orquídeas. Isso, sim, era um bom serviço de atendimento ao público.
— Por que não entramos aqui? — disse, tentando persuadir Josele e Dámaso a entrarem para dar uma olhada.
— Você terá tempo para ver as coisas melhor. Para um primeiro dia, é melhor darmos uma volta mais genérica. Além disso, Josele já conhece esse lugar — afirmou Dámaso.
— Você já veio aqui?
— Não é bem assim, cara — respondeu Josele imediatamente. — Não se confunda. Eu só gosto das flores para tirar fotos bobinhas, nada mais. Vim aqui porque estava interessado em uma japonesa bem gatinha e pensei que, trazendo-a aqui, com certeza teria sucesso. E, de fato, eu tinha razão — ele piscou um olho e rimos.
A verdade é que tínhamos toda a razão do mundo, teríamos tempo para ver tudo; por isso, cedi sem me queixar muito.
— Olha! — gritou Dámaso. — O ônibus. Poderíamos ir ver a Little India, o bairro indiano da cidade.
Josele e eu gostamos da ideia e em trinta minutos estávamos descendo do ônibus em um bairro totalmente diferente. Ali a distribuição demográfica mudava completamente, sendo em sua maioria indianos (ou bengaleses, porque na verdade eu era incapaz de diferenciá-los). A primeira coisa que me chamou a atenção foi um parque, em que havia centenas de indianos sentados no chão, em pequenos grupos, conversando. Segundo meus amigos, eles faziam isso todos os domingos. Aquele era o ponto de encontro deles para se verem e contarem o que tinha acontecido durante a semana. Não se via nem uma mulher sequer. Só homens. Curioso. Costume? Machismo? As mulheres se reuniam em outro lugar? Continuamos andando e cruzamos com uma igreja, a metodista Foochow, como dizia em uma placa na entrada, o que me surpreendeu por estar em uma zona indiana, onde se espera ver templos hindus. Isso demonstrava a singularidade do lugar. Também vimos restaurantes, dessa vez típicos indianos e, finalmente chegamos ao Mustafá Centre. Era um shopping muito grande que ficava aberto 24 horas. A calçada em frente estava cheia de casas de duas alturas que em sua maioria tinham restaurantes, alguma joalheria e escolas de hindi. Também havia um templo chamado Arya Samaj. Esse, sim, parecia hindu, mas eu não saberia dizer com certeza. Na entrada, havia uns cartazes de dois homens: um barbudo com cara de bonachão e outro com turbante e uma auréola, como se fosse um santo. Nos dois extremos da rua via-se ao fundo os arranha-céus da cidade, que contrastavam com esta zona de casas baixas. Tudo era muito diferente do que eu conhecia.
Josele, que sempre tinha sido mais curioso com as coisas e que era aficionado pela fotografia, sempre buscando localizações únicas para dar asas à sua vocação, me explicou que essas casas se chamavam shop houses, ou casas-lojas. Eram antigas edificações com o piso superior destinado à residência, e a inferior ao negócio familiar, normalmente oficinas, restaurantes ou lojas. Pelo visto, eram muito valorizadas, não apenas por seu valor histórico ou por sua beleza, mas também pela privilegiada localização que costumavam ter. O aluguel delas era entre três mil e quinhentos e até vinte mil dólares por mês, dependendo da sua situação e estado, e seu preço de venda chegava a vários milhões de dólares cingapurenses. Uma dinheirama.
Entramos no shopping para ver que tipo de lojas tinha ali. Ocupava dois quarteirões e tinha no primeiro piso uma passarela de cristal acima da rua que unia os dois blocos de edifício. Dentro, havia lojas de todo tipo: supermercado, farmácia, cosméticos, roupas desportivas, eletrônicos, correios e joalherias. Também tinha serviço de vistos para indianos e malaios e um local para câmbio de moeda. Um euro equivalia a quase um dólar e meio cingapurense. Eu tinha conseguido um câmbio um pouco melhor na Espanha.
Na hora de comer, como não podia ser diferente, comemos em um dos vários restaurantes indianos do lugar. Um que parecia especializado na comida do norte da Índia. Como se eu soubesse distinguir da do sul! Seguindo o conselho de Josele e Dámaso, pedimos pratos para dividir. De entrada, Aloo Gobi, que eram batatas condimentadas com couve-flor, e Chaat, um tipo de pastel muito crocante com diferentes recheios e muitos temperos. Em seguida, dividimos Chana masala, que parecia mexido de carne, como o que fazíamos em Madri, mas que com os temperos, tinha um sabor todo diferente; um arroz com lentilhas chamado Khichdi e frango Tandori, um frango assado com iogurte e condimentos que davam a ele um tom vermelho brilhante. Tudo acompanhado de um pão chamado Kulcha (http://es.wikipedia.org/wiki/Kulcha) e, para a sobremesa, umas pétalas de rosa com açúcar chamadas Gulkand (http://es.wikipedia.org/wiki/Gulqand). Um monte de nomes exóticos e comidas às vezes muito condimentadas. Uma vez ou outra, me parecia uma refeição curiosa de se fazer, mas para o dia a dia acabaria enjoando. Além disso, não tinha tanta certeza de que meu estômago fosse capaz de aguentar isso constantemente, estando acostumado a outro tipo de comida totalmente diferente. Eu tinha certeza que não me lembraria de nenhum dos nomes dos pratos da próxima vez.
Perguntei pela comida típica cingapurense e me disseram que era picante e também muito condimentada, mas que eu não me preocupasse, porque havia todo tipo de restaurantes para escolher. Eu gostava de comida picante, mas de vez em quando e não muito. Tinha uma amiga que gostava da comida pegando fogo, mas para mim, com o ardor na boca não se podia saborear de verdade o gosto dos alimentos. De qualquer forma, também havia muita influência chinesa na comida do país e essa, sim, eu gostava mais. Teria que experimentar logo.
Depois de comer, voltamos para nossa casa. Tinha que terminar de colocar todas as minhas coisas no quarto e eu queria descansar um pouco. Não sabia se era pelo jet leg ou não, mas estava esgotado. De qualquer forma, tinha recebido muita informação desde que cheguei à cidade e eu queria um pouco de tranquilidade, e até começar a trabalhar no dia seguinte para ir pegando um pouco da rotina.
Passamos o resto da tarde na casa vendo um pouco as notícias em inglês na televisão e conversando sobre as coisas que faríamos nas próximas semanas.
Jantamos no final do dia o que restava na geladeira e fui dormir cedo. No dia seguinte começaria minha nova aventura de trabalho.

Tailândia 13
Meus pensamentos sobre o apartamento em Cingapura foram interrompidos quando senti que alguém estava me observando. Parei a série de socos que estava fazendo e olhei para a porta da cela. Dali, um homem curioso me observava. Seu nome era Channarong. Eu o conhecia de ouvir os outros prisioneiros falarem dele, sempre com respeito. Seu nome, segundo me contaram, significava algo como “lutar para ganhar”, que era justamente para o que eu estava me preparando. Não estava muito claro para mim porque as pessoas o tinham em consideração. Não sabia se era um membro de alguma máfia, um lutador famoso ou o filho de um rico homem de negócios que podia pagar a alguém para que te matassem se o incomodassem. O caso é que ele estava me olhando em silêncio dali não sei há quanto tempo. Comecei a dissimular, esticando os braços e fazendo movimentos estúpidos, tentando imitar o que em minha cabeça seria tai chi. Eu tinha certeza de que seria tarde e que estaria claro para Channarong que eu estava treinando artes marciais. Teria que ser muito idiota para acreditar que o que eu estava fazendo era tai chi.
Me sentia ridículo tentando despistá-lo, assim, parei e fiquei olhando para ele se dizer nada. Channarong fixou seus olhos nos meus e me examinou com atenção. Seu rosto era totalmente inexpressivo. Era impossível saber o que ele estava pensando. Após alguns instantes, que me pareceram horas, deu uns passos e se aproximou de mim. De forma instintiva, deu um passo para trás e ergui os braços em posição defensiva. Estava acostumado com todos que se aproximavam era para me bater, ainda que desta vez eram muitas surras seguida, já que a última tinha sido a menos de uma hora.
Channarong se aproximou até estar a vinte centímetros de mim e me olhou curioso. Levantou sua mão e me encolhi, esperando receber o primeiro golpe, mas em vez disso, o que fez foi pegar o braço e esticá-lo um soco.
— Assim não —disse ele em um inglês bastante descente, enquanto negava com a cabeça várias vezes. — Assim não. Não, não, não.
Pegou meu braço e o esticou de novo, desta vez com muito mais força, Obrigando-me a girar sobre minha cadeira para não cair.
— Mova a cadeira, golpeia a cadeira. Mova a cadeira, golpeia a cadeira. Sabe como chamar esta cela? O Grande Tigre, porque dizem que “caça e come”. Quer ser preza ou caçador?
Repetiu essa frase como se fosse um mantra, e mais algumas vezes, enquanto eu movia meu braço e me dava palmadas na cintura. Ele estava corrigindo o movimento! Além de não querer me bater, ainda estava me ensinando a golpear de forma correta. Ele soltou meu braço e me animou com um gesto da mão a continuar tentando. Lancei uma nova série de socos, trocando de braços e utilizando a cadeira nos golpes enquanto Channarong ia corrigindo meus movimentos.
— Décima lição de Muay Thai —disse ele, muito sério, quando demos um tempo: — treinar e exercitar-se de forma regular. Você constante, eu observar. Muito bem. Muay Thai ser guerreiros de oito braços. Punhos, cotovelos, joelhos e pés. Treinar tudo, buscar equilíbrio.
Assim, ele ficou me vendo treinar sem que me desse conta. Estava claro que eu não escondia isso tão bem quanto acreditava. Um momento! Ele tinha dito décima lição? E as nove anteriores? Não importava. Fiz outra série de socos, concentrando0me em fazer tudo perfeito, tal qual ele tinha me ensinado, pondo toda minha atenção em cada detalhe do movimento, tentando não deixar que a dor no meu corpo influenciasse. Me virei, satisfeito, para ver o que ele achava, mas Channarong já tinha ido embora. Desapareceu da mesma forma que apareceu. Em silêncio e sem aviso. Me deixou todo confuso. Por que tinha me ajudado? Por que se foi sem me dar tempo para agradecê-lo? Não tinha respostas nem a possibilidade de obtê-las naquele momento, como se esperava de alguém prático como eu. Continuei treinando meus socos, usando a cadeira de apoio para golpear com mais força. Tentando superar a dor que me causava cada movimento naqueles lugares golpeados pela surra.
No dia seguinte procurei Channarong para agradecê-lo, mas não o encontrei. Também não insisti em procurar por todo o complexo, porque, com meus antecedentes, era melhor não me deixar ser visto para evitar problemas. Quando usavam alguém como saco de pancadas, o mais prudente era que não o encontrassem. Continuei treinando meus socos e o resto dos movimentos. Eu ia adorar se ele decidisse ser meu mentor, como o senhor Miyagi, do Karatê Kid, ou como Ángel, o professor de boxe que me ensinou o que era o respeito pelos demais e por si mesmo, mas duvidada muito que esse homem tão querido e a quem eu nunca tinha dirigido a palavra tivesse muito interesse em mim. Por outro lado, ele tinha me ajudado, não? Em todo caso, ninguém costumava me dirigir a palavra. Assim, me sentia grato pelo menos por isso.

Alguns dias depois, encontrei Channarong na fila do refeitório. Me aproximei para agradecer por seu interesse, mas ele mandou que eu me afastasse dele com rápidos movimentos de mão e um som como o de uma serpente
— Segunda lição — gritou, enquanto eu me afastava, confuso: — fazer-se útil aos demais.
Enquanto comia, tentava decifrar o significado dessas palavras. Ele queria que eu ajudasse as pessoas da prisão? Queria que eu pensasse em mim mesmo? Os orientais às vezes gostavam de divagar sobre as coisas. Não era mais fácil dizer logo o que queria? Fazer-se útil aos demais… defender aos demais dos brutamontes em vez de a mim mesmo? Filosofia barata. É tão mais útil dizer as coisas de forma direta. Olhei para Channarong e ele estava apontando para minha mesa, contando algo a seus companheiros, que riam com vontade. Não sabia o que pensar. Eu estava totalmente perdido. Provavelmente só estava rindo de mim, mas então, para que me ajudar?
Percebi que o grupo que tinha invocado comigo estava entrando no refeitório, assim, levantei, deixei a bandeja no lugar como tudo o que ainda restava para comer e fui embora rápido. Como dizia minha mãe: “Quem evita a ocasião evita o perigo”. Isso, sim, era um conselho útil. E claro.
Fui para a cela treinar. Não que treinar depois de comer fosse o mais aconselhável, mas era o único de poucos momentos em que costumava não ter ninguém e tinha que aproveitar. Fiz o que eu tinha que fazer. O que era necessário. Comecei minha rotina de treinamento. Alongamentos complexos, flexões, agachamentos… Trabalhando cada parte do corpo de forma independente e junto com as demais. Em seguida, continuei com os golpes no ar: primeiro socos, depois chutes, por último, joelhadas e cotoveladas, como os que via os presos que treinavam no pátio fazerem. Como disse Channarong, o guerreiro dos oito braços. Como ninguém falava comigo por medo de também se tornarem alvo dos que me batiam, eu tinha muito tempo para pensar. Em uma das minhas reflexões diárias, tinha considerado que, além de conseguir a melhor forma física e de tentar melhorar minha técnica e velocidade, deveria também enrijecer meu corpo e acostumá-lo aos golpes. Por isso, acrescentei a minha rotinha uma série de golpes com punhos, cotovelos, canela e dorso da mão na parede, usando pedaços de pano como atadura e começando com menos intensidade. Às vezes, exagerava com os golpes e ficava com alguma parte do corpo inchada por alguns dias, mas considerava isso necessário para ensinar a meu corpo a superar a dor. Quando meu ânimo fraquejava no treinamento, eu só tinha que me lembrar de alguns dos meus inimigos antagônicos da juventude ou de qualquer uma das surras recebidas; de mim no chão, sendo alvo de pontapés e golpes, encolhido como um animal e esperando que tudo acabasse. Então, aumentava o ímpeto dos golpes, o esforço do treinamento, tirando forças da fúria, ânimo do medo, intensidade do desespero.
Também tinha que aumentar muito minha resistência, por isso, dedicava meu tempo a correr sem parar no pátio; o que meus perseguidores comemoravam com piadas e risadas porque deviam pensar que eu estava treinando para fugir deles. Para mim, ao mesmo tempo, servia como terapia. Nem sempre gostei de correr. Logo que comecei a treinar boxe em Madri, tive que acrescentar rotinas de corrida para ganhar resistência e poder aguentar de pé um combate completo. Era extenuante, mas necessário. No fim, correr meia hora todos os dias se provou um alívio estabelecido para doutrinar meu corpo e mente.
Logo seria meu momento e a situação mudaria completamente. Logo essas risadas se transformariam e gritos. Gritos de dor. Pelo menos era nisso que eu acreditava. Era isso ou a morte.
Não havia outra alternativa.

Cingapura 4
Finalmente, segunda-feira. Primeiro dia de trabalho. Levantei às seis e meia da manhã, comecei o dia com café, cereais e um copo de suco. Um café da manhã completo. Meus colegas de apartamento me contaram, enquanto isso, que o que eles, e muita gente, costumavam fazer era tomar café da manhã no trabalho, na cafeteria da empresa, onde havia bebidas, frutas, pães e bolos grátis, ou nos estabelecimentos do edifício, se queiram algo diferente. Assim, podiam conversar um pouco com os colegas antes de começar o trabalho. Às vezes tinha gente que tomava de café, principalmente da Ásia, o mesmo que comemos nas outras refeições: macarrão, sopas, legumes refogados… Era muito curioso vê-los comer assim a essa hora da manhã. Me vesti e esperei dez minutos até que os outros estivessem prontos.
Entre uma coisa e outra, nos atrapalhamos e decidimos pegar um táxi para o trabalho. Por apenas dez dólares cingapurenses, que Josele pagou, em quinze minutos estávamos à porta do nosso edifício, em uma pracinha que havia na entrada, como a dos hotéis onde paravam os carros para se descarregar as malas.
A área era um complexo de quatro arranha-céus de cor branca com planta octogonal chamado Raffles City Tower. Pelo visto, era um conglomerado com shopping, escritórios, centro de convenções, restaurantes e dois hotéis que ocupavam duas das torres. Cada edifício devia ter quarenta ou quarenta e cinco andares. Impressionante. À direita da entrada onde estávamos havia um bar que se chamava Salt Tapas & Bar, um nome premonitório para os espanhóis, como o da nossa casa. O destino, no qual não acreditava, parecia me dizer que eu estava onde tinha de estar.
Nossos escritórios ficavam no 36º andar da torre de escritóriosRaffles City Tower. A vista devia ser espetacular. Na entrada, como era meu primeiro dia, tiveram que me identificar e criar meu cartão de acesso permanente. Quando me entregaram, subimos de elevador até o escritório. Nosso andar tinha a vista livre, quase sem paredes, salvo pelas salas de reunião. Enquanto me levavam até onde estava aquele que seria meu gerente, cruzei com Teresa e Diego. Nos cumprimentamos rapidamente e combinamos de nos ver em breve na cafeteria do andar. Depois, Dámaso foi para sua mesa trabalhar e Josele me levou até Amit Dabrai, um indiano que era meu novo chefe.
Amit era uma pessoa muito seca e prepotente. Ele me contou em linhas gerais em que consistia o projeto como se estivesse me fazendo um favor e me mostrou meu posto de trabalho, onde meu notebook já estava me esperando. Assinei todos os papeis da entrega do computador e do celular e me instalei em meu lugar. Amit compartilhou comigo uma pasta na nuvem como toda a documentação e me disse que Jérôme, a quem me apresentou como o colega no projeto que tinha me designado, me contaria o que era mais importante ler para começar. Nisso, sim, ele insistiu que eu devia me colocar a par muito rápido e que esperava que naquela mesma semana eu começasse a trabalhar a todo vapor. Grande chefe arrogante e sério que me deram! Me lembrava muito um que tive em um projeto na Espanha.
Jérôme, que era francês, acabou sendo um cara totalmente diferente de Amit. Ele era doido, mas muito louco. Defini-lo como extrovertido era dizer o mínimo. Além disso, ele tinha um entusiasmo e uma vitalidade contagiosas e parecia estar sempre de bom humor. Falava um inglês com marcadíssimo sotaque francês – me custou acostumar-me a ele e escutá-lo sem rir. Ele me disse quais eram os principais documentos que deveria ler e me fez uma apresentação do projeto de quase uma hora, destacando o que era importante de verdade: em que consistia, o que se esperava de nós, em que ponto dele estávamos e quais eram os próximos passos que tínhamos que dar. Tudo isso depois de ir ao refeitório e conversar animadamente com Tere e Diego.
No meio da manhã, Josele me acompanhou até uma filial do banco POSB para eu abrir uma conta. Ele tinha conta no mesmo banco, que era um estatal do departamento de correios que funcionava muito bem. Segundo tinha me contado, por ser um paraíso fiscal, abrir uma conta era um processo muito simples. Me pediram o número FIN, que era como o documento de identidade. A empresa tinha agilizado para mim com o visto de trabalho, mas, pelo visto, era possível abrir uma conta sem ele e entregá-lo quando o tivesse. Tudo era fácil. Emitiram um cartão de débito para mim na hora e me deram minhas chaves para operar por internet e telefone.
Não muito longe havia um escritório exclusivo para banco privado.
— Ali, com um bom maço de notas, não é necessário nem identificarem você — disse Josele, olhando para mim com uma cara travessa. — Ainda que não possam dizer isso abertamente, claro. Essa gente facilita tudo para receber dinheiro.
— Que nada, espero conseguir ser cliente deles — assegurei, rindo.
Uma vez feitos os trâmites, voltamos para o escritório.

Cingapura 5
Josele se aproximou sorridente da minha mesa no trabalho.
— Adivinha, adivinha!
— Não sei. Tem algum abacaxi para me passar que precisa que eu termine antes do fim da semana? Estou cheio de coisas aqui tentando ficar em dia com isso, mas ajudarei você no que puder.
— Não! Muito melhor.
— Vamos ver.
— Neste sábado temos uma festa na Avalon, uma das baladas da moda. A que comentei com você que fica do outro lado do rio, ao lado do Museu de Artes e Ciência.
— Cara, não me surpreende muito. Tenho a impressão de que todos os sábados temos uma festa.
— Esta é especial. É uma homenagem aos expatriados espanhóis. Estará cheio de espanhóis e de expatriados de outros países. É a sua oportunidade de conhecer gente de todo tipo e lugar!
— Já conheço vocês, acho que não preciso de mais do que isso nos próximos cinco anos… — Sorri, contente de estar com eles.
— Sim, mas nós precisamos nos livrar de você um pouco. Você é como as rêmoras, esses peixinhos que vivem grudados nos tubarões. Tudo bem que sejam parasitas, mas às vezes cai bem um pouco de liberdade. Não sei se me entende.
— Se querem que eu os deixe em paz, é só me dizerem, manés.
— É brincadeira! Você sabe. Mas não te fará mal conhecer gente nova e tomar um bom porre.
— Isso, sim, eu sei. Estou cansado de choramingar pelas esquinas como um trouxa. Vamos ver se conhecemos um trio de belas australianas precisando de carinho. Porque de espanholas já me fartei por um bom tempo. O que preciso é um pouco de exercício de quadril. Você me entende — disse, fazendo um nada discreto movimento para frente e para trás.
— Esse é meu garoto! Vamos dizer a Dámaso e combinamos.
Levantei e fomos contar os planos a Dámaso. Naquele sábado arrasaríamos Cingapura.
O resto da manhã pareceu eterno. Todo mundo falava dessa grande festa para espanhóis à nossa volta. Todos faziam planos e riam pensando nas coisas que fariam. Saímos os três para correr com Diego algumas tardes para tentar liberar a tensão e nos concentrarmos em outra coisa, mas todos os esforços foram infrutíferos; e olha que forçamos tanto que nossas pernas ficaram doendo a semana toda. Até a partida de basquete da liga das empresas não foi mais que uma desculpa para falar do mesmo assunto.

Finalmente, chegou o sábado. A festa era no começo da noite. Assim, de manhã me levantei cedo e desci para a academia. As pernas estavam destruídas, mas tinha muito que trabalhar nos braços. Depois, fui com Diego em uma sessão matinal do cinema, na rede Golden Village Cinema, a quinze minutos andando de nossos escritórios. Eram salas com assentos grandes, muito espaço para esticar as pernas e em que às vezes passavam ciclos de cinema clássico. Estavam passando alguns dos melhores filmes de ficção científica de sempre e Diego e eu estávamos com pique para todos. Ver de novo Alien, Guerra nas Estrelas, Dune ou Blade Runner na tela grande não tinha preço. Nós éramos fanáticos pelo gênero.
Depois do filme, que era Matrix naquele dia, comemos em um restaurante de comida rápida chamado Mos Burger que, como o próprio nome diz, servia hamburgueres. Era a semana do hamburguer japonês e tinham alguns ingredientes muito estranhos, como shoyo e missô. No fim, não me entusiasmei muito. Onde tivesse um bom hamburguer com molho barbecue, queijo, tomate e cebola, preferia que deixassem de foras os experimentos estranhos. Então, fomos cada um para sua casa para tomarmos um bom banho e nos prepararmos para a festa, que começaria pouco depois, às sete da noite.
Quando cheguei em casa, Dámaso e Josele estavam em plena animação preparatória. Josele estava ocupado diante do espelho do banheiro com seu pequeno topete, que lhe dava um ar de “Rei”, e Dámaso olhava as roupas do armário com tanta concentração que parecia que estava jogando a mais difícil das partidas de xadrez da história. Aproveitei para tomar uma ducha e escolher um conjunto de roupas elegantes, mas nada exagerado. Não queria humilhar, mas também não queria parecer um Don Juan. Quando estávamos todos prontos, descemos até a rua, onde já esperava o táxi que tínhamos chamado, e fomos para a festa. Em quinze minutos estávamos na porta.
A entrada era uma estrutura de cristal com a palavra Avalon em letras fluorescente. Era vizinha da Marina Bay, por isso, a vista do outro lado da baía, incluindo os prédios onde trabalhávamos, era impressionante, com todos esses altos edifícios iluminados. Não deixava nada a desejar às vistas noturnas de Manhattan, em Nova Iorque, do Brooklyn. Entramos quando a festa tinha acabado de começar, por isso não havia ainda muita gente, e pudemos escolher um bom lugar para ficar. Nas festas acontecia o mesmo que com o marketing na Internet. As três chaves eram: posicionamento, posicionamento e posicionamento. Por dentro, havia um ar de nave industrial e com todas as luzes e a música, me lembraram o movimento ciberpunk, muito parecida com a ambientação do filme Blade Runner que Diego e eu iríamos ver na semana seguinte. Ao fundo, em uma plataforma com muitíssimos pontos de luz na parede que se acendiam e apagavam de forma aleatória, estava o DJ, tocando música eletrônica. Para mim, o nome dele não dizia nada, mas a verdade é que música não parecia ser sua especialidade. Parecia até que não tinha nem ideia do que estava fazendo. De qualquer forma, parecia ser conhecido aqui, porque quando o anunciaram, as pessoas ficaram loucas.
Tínhamos combinado com dois colegas de trabalho, e pouco a pouco foram chegando até que éramos mais de vinte. Na verdade, espanhóis eram cinco: Teresa, Dámaso, Josele, Diego e eu. Eu achava estranho falar em inglês com meus amigos espanhóis, mas fazia isso por cortesia ao resto do grupo, que não falava espanhol. Ficamos bebendo e dançando, rindo e contando histórias engraçadas de coisas que tinham acontecido com eles naquele lugar. Na festa, mais de 80% dos que estavam ali deviam ser expatriados ou, pelo menos, tinham cara de ocidentais. Em muitos dos grupos de pessoas ouvia-se falar em espanhol.
Ao nosso grupo, juntaram-se mais espanhóis que eu não conhecia. Dois rapazes e duas garotas. Dámaso, como não podia deixar de ser, conhecia a todos e me apresentou.
— David, este é Nacho. Não sei se ouviu falar de um fotógrafo chamado Ignacio Ínsua.
— Não, mas também não estou muito por dentro do mundo da fotografia.
— Bom, tanto faz. É ele. Josele o conhecem em uma exposição de fotos há algumas semanas. Na Espanha, ele expôs em vários museus e centros de arte. Uma atriz local conhecida logo notou seu trabalho e ele veio para cá com ela para fazer um book e desde então vive aqui. É o fotógrafo dos famosos e dos grandes eventos em Cingapura. Além de ser um bom jogador de golfe, claro.
— Prazer, Nacho. Vejo que já conhece Dámaso. Espero que se dê bem aqui e que possa ser meu fotógrafo particular, porque no golfe não acho que nos encontraremos. Eu sou mais de esportes de ação.
— Claro que sim, isso seria excelente. Um cliente espanhol que possa pagar minhas nada moderadas comissões. Prazer, David.
— Sempre posso pilotar um barco para uma sessão de fotos em alto mar e tirar uma graninha extra.
— Está falando sério? Às vezes fazemos books e anúncios em barcos. Preciso de vez em quando de um motorista.
— Claro — disse, sorrindo pelo uso da palavra “motorista” em vez de “piloto”. — Tenho o título de Capitão de Iate. Adoro a navegação. Conte comigo quando quiser. Tudo com relação a navegação me parece ótimo.
— Não me esquecerei.
Dámaso continuou com as apresentações.
— Estas duas morenas tão lindas são namoradas e se chamam Elena e Raquel. Elas têm uma doceria de produtos sem glúten.
— Olá. Dois beijos, né? Por que vieram a Cingapura?
— Queríamos conhecer outro país e vimos que aqui também havia celíacos, como em todo lugar, mas não tinham muitas lojas dedicadas a eles — explicou Elena, enquanto eu dava dois beijos em Raquel.
— Eu tinha um amigo celíaco em Madri. Alguns dos doces que ele comia eram tão bons quanto os normais. Não saberia diferenciá-los. Um dia quero passar na loja de vocês para prová-los.
— Quando quiser — disse Raquel. — Aqui está um cartão.
— Obrigado. Vejo que está preparada. Gosto disso. E você, como se chama? — disse, dirigindo-me ao quarto do grupo. — Eu continuo sendo David… — respondi, sorrindo.
— Me chamo Pamos, Juam Pamos — disse, imitando o estilo James Bond.
— Cuidado com ele, David — Dámaso me avisou. — É um bon vivant. Diz que é especialista do cinema, mas não sei se já estreou na profissão. Seus pais são ricos empresários que trabalham em assuntos relacionados com a exportação, mas ele só se dedica a ir de festa em festa e sair com todas as garotas que pode, tenham namorado ou não. Só deixa as festas para jogar golfe comigo e com Nacho.
— Golf? Dá para ver como você fez amigos. Bom, eu estou sozinho aqui, sem par, e não sou uma garota, então não tenho que me preocupar. Com sorte, ele ainda pode me apresentar alguma amiga bonita… — Ri com vontade.
Fiquei um bom tempo conversando com todo mundo, colegas do trabalho e novos conhecidos. Então, em uma volta que dei para ir até o banheiro, um homem com sotaque inglês se aproximou de mim e me ofereceu não sei que substância que eu não conhecia, mas que sem dúvida era algum tipo de droga. Recusei de forma taxativa e segui meu caminho. Nunca tinha usado drogas, nem sequer na minha época mais rebelde, e nem tinha vontade de começar agora. Não gostava que nada controlasse minha vida e esse era o típico caminho que podia me transformar em um escravo de minhas doses diárias. Nisso eu era muito radical. Nem fumava, apesar de já ter feito isso por um tempo, mas tive que parar porque era incompatível com o exercício que eu fazia. E apesar de beber, nunca deixava que o álcool me fizesse perder o domínio de mim mesmo. Meus amigos enxiam meu saco às vezes com esse assunto, principalmente Dámaso, que tinha umas bebedeiras hercúleas, mas eu gostava de sempre sentir que tinha o controle da situação. Era um pouco obsessivo com isso.
Quando voltei, me ofereci para buscar algo para Tere e meu colega, Jérôme, o louco, beberem. Enquanto estava no balcão esperando ser atendido por algum garçom, uma garota lindíssima de aspecto tailandês ou parecido apareceu ao meu lado. Tinha cabelos castanhos, longos, cacheados presos em duas partes de forma que caíam por ambos os lados da cabeça sobre o peito. Usava um gorro de tecido verde e uma camisa com alças da mesma cor. Seu rosto era arredondado e tinha um sorriso precioso, ressaltado por lábios pintados de uma cor vermelha muito suave. Seus olhos eram castanhos escuros, um pouco puxados, mas não muito. Bastante alta, devia medir um metro e setenta ou algo assim, e era magra. Não poderia dizer que tinha me apaixonado à primeira vista; isso seria uma bobagem. Mas meus hormônios de macho ibérico deram um salto mortal triplo, ainda mais quando ela virou para mim e falou comigo em um inglês perfeito com uma voz doce e musical que só pude escutar porque coincidiu com uma diminuição no volume da música.
— Desculpa, não vi a fila.
— Não, não! O que é isso? Não se preocupe. Ainda estou esperando ser atendido. Peça você primeiro, não precisa fazer seu acompanhante esperar.
— Meu acompanhante? Não, estou sozinha. Vim com uma amiga, mas ela teve que ir embora. Espera! Era uma estratégia para saber sobre isso, não é?
— Bom, você me pegou — reconheci, sorrindo. — Mas é difícil de acreditar que uma mulher tão bonita não tenha companhia.
Ela pareceu ter achado meu comentário muito engraçado, pois começou a rir com um riso melodioso que me encantou no mesmo instante. Durante alguns momentos, ficamos calados, nos observando.
— Desculpa, não me apresentei — disse, reagindo. — Me chamo David, sou um dos expatriados espanhóis homenageados nesta festa.
— Espanhol? Por seu inglês, achei que fosse americano… — afirmou, fazendo um biquinho.
— É porque minha mãe é americana. De Boerne, um pequeno povoado de dez mil habitantes no Texas, próximo a San Antonio. Um paraíso para as trilhas, cheio de rotas lindíssimas, mas não tanto quanto você, que nunca vi igual. Como se chama? Acho que você esqueceu de me dizer. Ou é um segredo?
— Não, não, não é nenhum segredo. Me chamo Sumalee, Sumalee Sintawichai. Em tailandês, meu nome significa “flor bela”.
— Flor bela? Economizarei o elogio fácil, mas é óbvio que é um nome perfeito para você. Dizem que a Tailândia é o país dos sorrisos. Se todos tiverem um tão bonito como o seu, deve ser o paraíso.
—É difícil não sorrir para um cara como você — respondeu.
Juro que o sorriso que ela me deu valia uma guerra. Era linda. Estava claro que essa mulher tinha capturado minha atenção.
— Você disse Simalee Sintawachi? — gritei, tentando superar o som ao redor. — Estou me esforçando para memorizar.
— Não, Sumalee Sintawichai — repetiu, aproximando-se do meu ouvido para não ter que gritar e fazendo com que eu ficasse todo arrepiado. — Mas Sumalee está bom para agora. Também não quero que funda a cabeça no primeiro dia.
Primeiro dia? Ela queria que nos víssemos mais vezes? Porque eu, sim, com certeza. Todos os que fossem possíveis. Uma garota tão bonita, eu queria para sempre ao meu lado. Não disse nada sobre seu comentário e a convidei para se unir a nós. Ela aceitou, encantada, com a condição de que não a deixasse sozinha em nenhum momento. Não me custou nada aceitar seus termos e, depois de pedir as bebidas de Jérôme e de Tere, e de oferecer uma a ela, nos dirigimos para o grupo. Eu a apresentei a todos os meus colegas e fiquei impressionado com sua desenvoltura diante de tantos estranhos. Quando chegou a vez de Dámaso, que já estava alegre pelo álcool, ele começou a fazer-lhe elogios aos gritos para que ela pudesse escutar, e tive que pará-lo.
— Calma aí, fera! As mãos controladas, se quiser mantê-las. Guarde seus encantos para outra mulher. Sumalee está comigo esta noite. Fizemos um trato, não é?
— Claro que sim. Só para você — disse, enquanto piscava um olho para mim de forma divertida e agarrava meu braço. — Fizemos um acordo de não nos separarmos nenhum momento hoje.
Dámaso, Jérôme, Josele e Diego me olhavam, incrédulos. Não sabiam se pensavam que eu tinha ganhado na loteria ou se havia uma armadilha por trás de tanta sorte. Para mim, tanto fazia; só queria que a noite durasse para sempre. Eu estava eufórico. Tinha acabado de chegar e já tinha criado laços. Estava claro que meus sete anos com Cristina não tinham me feito perder a habilidade lendária com as mulheres.

Passamos a noite toda na festa falando sem parar. Nos sentíamos muito confortáveis juntos, como se nos conhecêssemos a vida toda. Ela me contou que trabalhava em uma agência de viagens preparando principalmente todas organizadas para a Tailândia, seu país, ou de tailandeses por Cingapura. Teve que sair de lá porque sua mãe estava doente e ela precisava ganhar muito dinheiro para pagar o tratamento. Na Tailândia, tinha um bom trabalho, mas o salário era muito baixo, por isso, veio para Cingapura por conselho de uma amiga. Com o que ganhava podia mandar bastante dinheiro para casa para os remédios da mãe. Era original de uma região chamada Chiang Rai, no norte do país, quase fronteira com Mianmar e Laos. Sua família era pobre e teve que lutar muito para poder conseguir uma bolsa e estudar marketing na Universidade Thammasat. Quando terminou o curso, conseguiu um bom trabalho em uma grande empresa, mas o salário ainda era muito baixo para o que precisava, e isso a levou a Cingapura, onde, para a minha sorte, se encontrava agora.
Tínhamos muitas coisas em comum. Os dois adoravam esportes, viajar, ler, provar coisas novas, aventura, tudo relacionado ao espaço… Como se fôssemos almas gêmeas. Não podia acreditar na minha boa sorte. Aquela noite prometia ser agitada.
Não sei em que momento da noite chegamos àquela situação, mas quando me dei conta, ainda estávamos conversando, com sua mão direita apoiada sobre a minha e sendo acariciada por minha mão esquerda. Sua pele era muito suave e percebi uma pressão em seu peito que dificultava a respiração. Além disso, como a música estava muito alta e havia muita gente gritando, tínhamos que conversar ao pé do ouvido, o que tornava a situação ainda mais excitante quando ela me dizia algo e seu hálito acariciava meu rosto. Parecíamos dois apaixonados trocando confidências. Era difícil para mim não virar e começar a beijá-la e acariciá-la, satisfazendo o ardor que sentia em todo o meu corpo, mas não conhecia os costumes do lugar e não queria estragar a noite.
Falamos da minha família, do que tinha me levado a Cingapura… Ela me fazia uma infinidade de perguntas sobre coisas de todo tipo. Sobre quanto tempo eu ficaria em Cingapura, se gostaria de viajar… Parecia um interrogatório, mas me submetia a ele com gosto. Ela ficou muito interessada quando contei a história com minha ex-namorada. Dizia que para ela era inacreditável que uma garota pudesse me trocar por outro. Gostava cada vez mais de Sumalee. Definitivamente, tinha subido às posições mais altas de pessoas preferidas em Cingapura.
Tínhamos uma cumplicidade e uma confiança tamanha que parecia que ficaríamos a vida toda juntos. Enquanto ela falava, eu podia sentir o perfume dos seus cabelos, que tinha uma fragrância muito definida que ela me contou depois que era jasmim, e percebia uma sensação estranha que não sentia há muito tempo.
Era como se eu estivesse apaixonado, mas com certeza não era isso; provavelmente era a atração sexual do primeiro encontro. Seria uma loucura. Eu tinha acabado de conhecê-la há apenas algumas horas, ela vinha de uma história trágica, mas, ainda que parecesse perfeita para ser minha alma gêmea, não poderia ser tão fácil.
Fazia algum sentido?

Cingapura 6
Na semana seguinte, eu tinha combinado com Sumalee de passarmos o dia juntos. Ela se ofereceu para me mostrar a cidade e ser minha guia particular, o que me pareceu uma proposta fantástica. Era uma profissional da viagem e muito mais linda que Josele e Dámaso. Além disso, meus amigos tinham combinado com o fotógrafo da festa de jogar golfe, que era um esporte que não me atraía muito.
Apesar de ter ficado até tarde da noite anterior na festa, marcamos bem cedo na porta do templo Leong Nam, no bairro Geyland, porque ela me disse que queria me mostrar algo que dava para ver melhor cedo. No sábado trocamos números de telefone para o caso de surgir algum contratempo e a primeira coisa que fiz assim que acordei foi olhar o telefone com medo de que ela tivesse cancelado o encontro; mas não tinha nenhuma mensagem dela. Quando cheguei, ela já estava me esperando. Usava shorts jeans curtas azuis que não chegavam na metade da cocha, uma camiseta de alças azul turquesa e uma jaqueta muito fina de outra tonalidade de azul. Estava linda, era linda, e sabia como evidenciar isso. Quando me viu ao longe, um sorriso incrível se desenhou em seu rosto e ela veio trotando até mim. Me deu um abraço e me beijou a bochecha.
— Olá, David! Queria te ver.
Ela pronunciava o “a” do meu nome com uma deliciosa mistura de “a” e “i”. Algo como David que me soava como uma música celestial.
— Bom dia. Você imagina o quanto eu também queria. Não consegui pensar em outra coisa desde que nos despedimos ontem à noite.
— Como você é bobo! Não é para tanto.
— É verdade, acredite, é sim. O que vai me mostrar hoje? Você me deixou curioso.
— Este é o bairro Geylang. É um dos que menos evoluíram em Cingapura e um dos que mantêm a gastronomia mais tradicional da região. Aqui fica o mercado tradicional asiático de Geylang Serai. Está cheio de barracas de frutas e outros tipos de produtos frescos, quase todas geridas por malaios. Aos domingos de manhã, ficam cheios de gente e barulho, mas se vier cedo, terá todo o mercado só para você — contava, entusiasmada. — Adoro vir aqui quase de madrugada e passear pelo lugar com o burburinho dos comerciantes preparando tudo e a mistura incrível de perfumes de frutas frescas que é possível sentir antes que o mercado fique cheio e eles se dispersem com o resto dos cheiros. É como passear no meio de campos de frutas. Me lembra um pouco minha terra.
Dava para ver por sua expressão que ela realmente gostava desses passeios.
— Parece muito bom. Ou talvez você seja uma vendedora excepcional. Venha! Você me guia.
Começamos a passear entre as frutarias pelas ruas principais e pelos lorong, que é como chamavam em malaio as vielas laterais. As casas eram do mesmo estilo da zona indiana: baixas, com dois andares e cada uma de uma cor. Íamos parando em diferentes lugares e Sumalee ia me explicando as diferentes frutas típicas dos mercados dessa região: a longan, branca por dentro que parecia uma batata por fora; a manga, que eu já conhecia; o mangostim, mais doce ainda que a manga; e o que mais me chamou atenção, o durian, com espinhos de cor esverdeada e do tamanho de um melão pequeno. Quando abriam um no meio, dava para ver que dentro havia uma polpa amarela.
— O curioso dessa fruta — contava Sumalee, alegre, — é que tem um cheiro muito forte que fez com que fosse proibido comê-la no transporte público e em hotéis para não incomodar as outras pessoas. Fede! — disse, colocando um pedaço debaixo do meu nariz e me obrigando a afastá-la rapidamente para tirar esse cheiro horroroso.
— Você sujou meu nariz.
— Um momento — disse Sumalee, tirando um lenço do seu bolso e limpando com cuidado. Eu não podia deixar de observá-la enquanto ela fazia isso. — Pronto. — Algo se estremeceu dentro de mim com aquele gesto.
Também havia muitos lugares com peixes salgados, sapos, arraias venenosas ou enguias. Tudo o que um ocidental poderia esperar de um mercado oriental.
Sumalee tinha razão. Era um passeio relaxante, com uma mistura de cheiros adocicados que o transportavam ao campo. Com o tempo, o lugar se encheu de gente, muito poucos deles ocidentais, e barulho e os cheiros mudaram totalmente, perdendo todo o encanto inicial.
— Bom, o que mais se pode fazer por aqui?
— Depende do que você gosta. Ao sul está o que chamam de bairro da luz vermelha de Cingapura, como o de Amsterdã.
— Não, obrigado. Tendo uma mulher como você ao meu lado, não acho que conseguiria encontrar nem de longe nada que chegasse aos seus pés no bairro vermelho, nem procurando em toda Cingapura. Com certeza, nem em toda Ásia.
Por um instante, ela ficou me olhando com firmeza sem dizer nada. Sentia como se ela estivesse esquadrinhando minha mente através dos olhos. Temi, por um momento, tê-la ofendido, mas não disse nada.
— Também há muitos templos e a Vila Cultural Malaia. Um museu onde se pode ver artesanatos, escutar música tradicional e degustar a culinária típica.
— Já que estamos em uma região malaia, poderíamos escutar um pouco de música tradicional e comer alguma coisa tímica, não? Eu sou um turista de livro. Na verdade, li um na viagem para cá.
— Tudo bem! Vamos para lá.
Com sua mão direita ela pegou a minha esquerda e me deu um puxão para que a seguisse. Durante um instante, apertei sua mão com força para ter certeza de que ela estava ali.
Chagamos em poucos minutos ao museu. Era um complexo de vários edifícios baixos de telhados canelados, muito no estilo oriental. Dentro, havia representações de objetos e utensílios malaios, como carroças puxadas por bois, exposições de artesanato e todo tipo de informação sobre sua cultura e gastronomia. Também tinha uma casa visitável decorada como se supunha que eram as tradicionais. Notava-se que ela gostava de viajar e conhecer coisas novas, além de trabalhar naquilo, porque olhava tudo com a curiosidade típica de uma criança, surpreendendo-se e emocionando-se com tudo. Eu gostei da visita, mas na verdade não tanto quanto ela, porque só estava concentrado no roçar de minha mão na sua e em observar, fascinado, todas as expressões de seu rosto. Tinha um rosto angelical. Queria tanto beijá-la!
Quando terminamos, ela me disse que me levaria para comer algo típico cingapurense e me deixei levar sem dizer nem uma palavra. Em vez de entrar pela porta principal, ela me levou pela viela de trás e chamou à porta da saída da cozinha. Eu estava intrigado. Quem abriu a porta foi um homem barrigudo e com um avental, gritando irritado, mas quando viu Sumalee, se calou e voltou para dentro, fechando a porta com uma forte batida. Um minuto depois, ela voltou a ser aberta e apareceu uma moça muito pequena, que também parecia tailandesa, e que se jogou nos braços de Sumalee, abraçando-a. Começaram a conversar em tailandês e logo Sumalee me fez sinal para que me aproximasse.
— Este é David. David, esta é minha amiga, Kai-Mook (http://www.significado-de-nombres-de-bebe.com/n/Kai-Mook), de quem falei um pouco ontem à noite. Também é tailandesa e trabalha neste restaurante. Ela vai preparar a comida para a gente.
— É um prazer. Não se preocupe, Sumalee não disse nada de mau de você — eu disse, sorrindo.
— Igualmente. Entrar para escolher o Swikee. — Seu inglês não era muito bom.
— Escolher o que? — olhei para Sumalee.
— Entre e verá.
Eu a segui pela cozinha e ela me levou até um lugar onde havia uma bacia gigante com uma tampa. Kai-Mook a levantou e dentro havia uma dezena de rãs saltando para tentar escapar de sua prisão de plástico.
— Rãs? — exclamei, olhando para Sumalee.
— Sim, são consideradas uma iguaria típica por aqui. Eles preparam uma sopa de rã deliciosa aqui no Swikee.
— Se você diz… Na verdade, nunca comi.
Estava um pouco indeciso, mas não queria parecer muito fresco, então escolhi as rãs que queria, as que me pareceram mais bonitas, se é que era possível, e me sentei à mesa que nos apontaram para esperar a refeição enquanto falava com Sumalee sobre o que faríamos depois. Não demorou muito para Kai-Mook aparecer com uma sopeira nas mãos. Quando ela a abriu e nos serviu a sopa de rãs, tive que reconhecer que tinha uma aparência muito apetitosa. Notava-se traços de pimentas vermelhas, algo que parecia coentro, chili e mais alguma coisa que não fui capaz de identificar.
Comecei a comer com um pouco de apreensão, mas quando dei a primeira bocada, todos os meus temores de dissiparam. Estava muito boa! Devorei o restante da rã com avidez. Ergui a cabeça e vi que Sumalee me observava, se divertindo.
— Está delicioso, não é?
— Tenho que reconhecer, esse é um prato de luxo. Tenho que trazer meus amigos aqui. Vão ficar loucos.
— Sabia que iria gostar. O cozinheiro deste restaurante prepara a sopa de rãs mais gostosa de toda a cidade. Se vier com eles, pergunte por Kai-Mook e vocês terão o tratamento especial da casa. Agora ela já te conhece e cuidará de você como se fosse eu mesma.
Olhei nos olhos dela enquanto suspirava. Não sabia que loucura estava fazendo, mas ia dizer a ela o que estava começando a sentir quando Kai-Mook nos interrompeu, aproximando-se para perguntar como estava a sopa. Disse o mesmo que tinha dito a Sumalee, que estava deliciosa, e ela voltou contente para a cozinha. O restante da refeição também foram pratos que eu não conhecia; muito saborosos, mas nenhum como a sopa. Ficamos o tempo todo rindo e contando histórias divertidas que tinham acontecido com a gente no passado em nossas viagens.
Quando terminamos, Kai-Mook deu uma bolsa a ela. Ela não quis me dizer o que era. Também não me deixou pagar e insistiu que era seu dia de guia e que os gastos ficavam por sua conta. Segurei seu rosto e, observando-a com intensidade, dei um beijo muito suave em sua testa enquanto acariciava com os dedos suas têmporas. Pude notar que ela tremia quando fiz isso, não sabia se de emoção ou de repulsa. O importante foi que ela não se afastou. Um calafrio de excitação percorreu meu corpo ao contato com sua pele. Naquele momento, senti uma vontade quase irrefreável de lançar-me sobre ela e beijá-la, mas consegui me conter. Não apenas gostava de estar com ela e me sentia muito confortável, mas ela também me excitava demais.
Saímos para a rua. Fomos direto para um pequeno parque que ficava bem em frente de onde estávamos, e ela entregou a bolsa a uma mulher que parecia uma mendiga. A mulher tirou algo de dentro e vi que era comida. Conversaram um pouco como se se conhecessem a vida toda e, então, continuamos nosso caminho.
É uma mulher que está passando por apuros. Eu a conheço de outras vezes que vim ver Kai-Mook. Sempre trago um pouco de comida quente para que ela tenha uma boa refeição no dia.
Além de bonita, é uma boa pessoa. Não para de me surpreender.
Passei o braço por cima de seus ombros e pegamos o ônibus para o parque East Coast, no sudeste da ilha. Tínhamos decidido mudar totalmente de ambiente e eu queria ver um pouco de água, e ali havia praias, palmeiras e mar. Um lugar perfeito para conhecer um pouco mais Sumalee.
Quando chegamos, nos metemos por um dos caminhos que entravam no parque. Sumalee ficou pensativa um momento e, então, se dirigiu a mim.
— Sabe patinar?
— Não, nunca tentei. Quando eu era pequeno, andei um pouco de patinete, mas não tinha o equilíbrio muito desenvolvido, então desisti logo.
— Bom, então ensinarei a você outro dia. E andar de bicicleta?
— Isso, sim, claro.
— Então vamos alugar umas bicicletas para visitar o parque. O que acha?
― Perfeito!
Dito e feito. Nos dirigimos para o lugar onde alugavam bicicletas e, ainda que pudéssemos escolher bicicletas tandem ou carrinhos com teto, decidimos por duas vermelhas individuais para o restante do dia. Aparentemente, era uma atividade popular, porque o parque estava cheio de ciclistas e de gente patinando. Havia uma pista com dois sentidos claramente demarcados. Sumalee foi contando-me tudo enquanto pedalávamos com tranquilidade.
— O parque está dividido em diferentes áreas. De acordo com a área, pode fazer uma coisa ou outra. Você vai acabar descobrindo que eles são muito organizados em Cingapura.
— Sim, estou percebendo.
— Aqui, à direita, fica a área de churrasqueiras. Muitas famílias e grupos de amigos vêm, principalmente no fim de semana. Também há muitos restaurantes e cafeterias, se preferir não ter trabalho. Para usá-las, é preciso fazer reserva. Dá para fazer pela internet.
— Como você disse, — afirmei, sorrindo — muito organizados. E isso?
— Essa é a área de esportes aquáticos. Dá para alugar caiaques, fazer esqui aquático, mergulho e muitas outras coisas. Você gosta desse tipo de atividade?
— Sim, adoro. E você?
— Não experimentei muito, mas poderíamos tentar juntos.
— Com certeza! Já está na minha lista desde que soube que viria para cá.
— Agora estamos chegando à área para ficar na areia. É muito normal que as pessoas construam castelos. Olha!
Paramos um pouco para ver um grupo de jovens terminando de construir um tempo de areia de um tamanho descomunal. Devia ter quase dois metros de altura e quatro de largura. Nenhum de nós reconhecemos o edifício, mas Sumalee me disse que o estilo era muito parecido com os templos de Angkor, em Camboja. Havia muitas pessoas tirando fotos. Sumalee me contou que outra atividade típica do parque era a fotografia. Outra coisa que abundava era gente correndo. Era como o Parque do Retiro, em Madri, mas tinha quase o dobro do tamanho, com mar e mais possibilidades. A coincidência era que tinha tudo muito bem dividido e com cada coisa em seu lugar. Era muito artificial também. Voltamos a pegar as bicicletas e continuamos a andar. Passamos por um edifício com o logotipo do Burger King. Isso me fez esboçar um sorriso irônico. Por mais longe que acreditamos ter ido de nosso ambiente, descobrimos que a suposta “civilização” já tinha chegado antes.
— Sumalee, e isso aqui? É um camping?
— Sim, há algumas áreas habilitadas para acampamento. Também dá para reservá-las pela internet — ela disse, rindo.
— Não duvidada — afirmei, enquanto pensava quanto eu gostava do som da sua risada.
Pedalamos durante algumas horas, percorrendo os quinze quilômetros de costa e parando de vez em quando para comentar algo, descansar ou parando em algum quiosque para beber alguma coisa. Em um deles vendiam ostras por um dólar, então comemos um par cada um. Para beber, aconselhado por Sumalee, pedi duas cervejas Tiger, que tinha um tigre como logotipo e era típica dali, de cor dourada pálida. Era bem suave e eu gostei. Como não podia ser diferente, brindamos por muitos dias como esse.
Vimos gente pescando com varas nas docas, famílias, casais de namorados, amigos em churrasqueiras, extensas praias de areia de uma largura que ia de dez metros a até apenas um com palmeiras e outros tipos de árvores ao fundo. A areia, no entanto, não era grande coisa, pois havia muitas garrafas de plástico jogadas pelo chão e o mar estava sempre cheio de grandes cargueiros. Também havia uma pista de patinação com obstáculos, áreas com aparatos para fazer ginástica, campos de vôlei, bancos com teto para descansar, caminhos estreitos de grandes pedras planas onde só dava para ir andando, além de muitos mapas para se orientar pelo caminho. As possibilidades eram incríveis, mas a manutenção e a limpeza não eram tanto como se esperava. Sumalee me disse que antes era melhor ainda e que nos últimos tempos havia decaído um pouco. Achei muito engraçado uma placa que proibia apontar com ponteiros laser para os aviões. Os aviões passavam muito próximo à terra porque o aeroporto de Changi não ficava longe dali. Outra queixa que se podia fazer ao lugar era o excesso de gente em quase todos os lugares, mas era preciso se levar em conta que era domingo, dia de suposta presença máxima de público. Teoricamente, nos outros dias o parque era mais tranquilo.
Quando nos cansamos de dar voltas, paramos em uma área de praia onde não havia ninguém. Já era tarde e as pessoas estavam indo para suas casas. No dia seguinte era segunda, dia de trabalho. Ficamos descalços e nos aproximamos da orla. Paramos bem rente ao mar, onde a água das ondas acariciava nossos pés de vez em quando.
— A água desta área costuma ser suja, não é muito aconselhável se banhar, apesar de termos visto algumas pessoas fazendo isso — disse Sumalee. — Em todo caso, não é permitido se afastar muito da orla a nado.
— Suja? Tem algo sujo em Cingapura? Isso, sim, é novidade. Se bem que essas praias também precisam de uma limpeza.
— Não é mesmo? É por causa de todos esses barcos que vemos aí. Ainda assim, às vezes venho aqui, me sento e me perco observando o azul do mar. Sei que do outro lado fica minha terra, minha casa, minha mãe.
Olhei para Sumalee. Por um momento, ela tinha ficado melancólica e parecia estar prestes a chorar. Passei um braço em torno de seus ombros e a aproximei com suavidade de mim.
— Deve ser difícil ficar tanto tempo longe dela e, ainda por cima, sabendo que ela precisa de você. Pense que tudo isso é por ela e que, quando tiver pago sua dívida, vocês poderão ficar juntas para sempre e será você quem a terá salvado.
— Sim, quando tiver pago minha dívida — disse, dando um suspiro. Mesmo que isso signifique tomar decisões que nem sempre gosto.
— Que decisões?
— Ah! Nada, nada. Coisas minhas.
Ficamos abraçados por um tempo, sem dizer nada. Na parte mais distante do mar dava para ver alguns catamarãs e uns caiaques amarelos dos que se podia alugar no parque. Mais longe se viam dezenas de cargueiros, todos grandes ou enormes. Acho que, se algum deles esvaziasse seus desperdícios na água ou se tivesse alguma perda de combustível, seria o suficiente para deixar as águas em um péssimo estado, por mais cuidados que fossem empregados e por mais que tentassem limpar.
A luz solar começava a cair de forma evidente. Estava começando a anoitecer. De acordo com o horário do parque, só havia iluminação ali das sete da manhã às sete da noite. Logo estaríamos no escuro e tínhamos que voltar porque não queríamos ter que refazer o caminho andando com bicicletas sem iluminação.
Sumalee se aproximou um pouco mais de mim e percebi que sua cabeça roçava meu corpo. Em imbuí de coragem e procurei sua mão com a minha. Não demorei para encontrá-la e a apertei com força. Ela me correspondeu. Tanto fazia a praia suja, a água insalubre ou tantos barcos estragando a paisagem. O céu alaranjado, o silêncio ao nosso redor perturbado apenas pelo canto de algum pássaro e sua mão segura na minha, era o paraíso.
Voltei para ela, nervoso, e com minha outra mão a segurei com suavidade pelo queixo e ergui um pouco sua cabeça de forma que nos olhássemos nos olhos a poucos centímetros um do outro. Ela olhava séria para mim, com intensidade, expectante. Abaixei minha cabeça e pousei meus lábios sobre os seus. Ela os entreabriu um pouco e eu peguei seu lábio inferior entre os meus. Passei assim um segundo, saboreando-o e, então, me afastei, devagar, deixando-o escapar de forma lenta. Por um momento achei que Sumalee ia se lançar sobre mim e me dar outro beijo, mas de repente sua expressão mudou.
— Temos… temos que ir — ela disse, com a voz trêmula.
— Acho que sim, mas não porque eu queira sair daqui. Estenderia este momento para sempre.
Sumalee não respondeu. Virou-se e puxou minha mão para que eu a seguisse. Montamos nas bicicletas e voltamos para a entrada o mais rápido que pudemos. Ainda assim, os últimos minutos percorremos quase às escuras.
Devolvemos as bicicletas e fomos andando até o ponto de ônibus de mãos dadas, sem dizer nada. Tínhamos que pegar ônibus diferentes. O primeiro a chegar foi o dela. Quando chegou ao ponto, me deu um beijo muito suave na bochecha, fez uma carícia no rosto com um olhar que dizia “não fique triste” e entrou. No meio das escadas, virou-se e me disse:
— Vamos no falando. Se cuida.
— Você também, Sumalee. Tudo bem?
Ela se virou sem responder e procurou um assento. Vi seu ônibus se afastar com uma estranha sensação. Uma mistura de euforia pelo beijo que tínhamos dado e de confusão por sua atitude depois. Não sabia muito bem o que significava. Ela não recusou o beijo, até o devolveu; mas algo a deteve logo. Ela não olhou mais para mim e tinha ficado pensativa; quase aflita, eu diria. Ainda assim, tinha falado em nos falarmos de novo. Como interpretar isso? Talvez não quisesse me beijar porque não sentia o mesmo que eu, mas não foi capaz de dizer que não. Talvez o beijo a tenha feito se lembrar de alguém querido do passado que perdeu. Talvez até em sua cultura não fosse legal se beijar tão rápido. Não fazia ideia.
Tinha que descobrir, precisava saber. Agora eu só podia pensar em como seria a próxima vez que nos víssemos: a Sumalee alegre e risonha de sempre ou a abatida e pesarosa que acabava de se despedir de mim.
Não podia esperar para descobrir a resposta.


Tailândia 14
Estava sentado no pátio observando os treinamentos de Muay Thai. Estava pensando que o pior da prisão era o tédio. Tantas horas sozinho, sem nada para fazer, sem ninguém com quem dividir, nem que fosse um pensamento, quando se aproximou de mim um homem grande careca e com cara de louco que tinha visto outras vezes andando por ali. Tinha uma grande cicatriz mal curada que subia do olho esquerdo até a metade da testa. Não se relacionava muito com o restante dos presos e ninguém parecia gostar de ficar muito perto dele. Tinha cara de estar bem mal da cabeça. Ele parou diante de mim, balançando-se de um lado para o outro, e me olhou cm firmeza com os olhos muito abertos, sem piscar. Eu não sabia muito bem o que pensar. Se também ia me bater ou se estava se divertindo só de me observar. Em todo caso, ele assustava. Após alguns segundos de tensão, ele se dirigiu a mim com um forte sotaque australiano.
— O que você fez para eles?
— Como?
— Isso mesmo: o que você fez para esses chatos amarelos para eles te tratarem assim? — perguntou mais uma vez, apontando com a cabeça para o grupo de perseguidores que conversavam do outro lado do pátio.
— Nada que eu saiba. Não fiz nada para ninguém na cadeia. Contanto que não sejam irmãos da desgraçada que me mandou para cá…
— Então é estranho que persigam você como fazem, né?
— Também penso assim. O que posso fazer?
— Acho que nada.
— Não é que me importe que converse comigo; pelo contrário, agradeço muito. Mas não tem medo de que eles impliquem com você por falar comigo? Ninguém quer se aproximar de mim por causa isso.
— Comigo? Acho que não. Desde que entrei aqui, representei o papel de um louco perigoso capaz de qualquer coisa e, desde então, ninguém se mete comigo. E já estou há muitos anos aqui.
— E como conseguiu? — perguntei, mas na verdade, acho que não devia ser difícil para ele se passar por um louco perigoso. Para mim, ele parecia mesmo. — Porque isso cairia muito bem para mim.
— No primeiro dia, quando um maldito amarelo veio falar comigo, arrogante, comecei a gritar como um possesso e fui para cima dele, batendo, mordendo, arrancando os cabelos dele… Como se um demônio estivesse guiando meu comportamento. Quase o matei. De fato, foi nessa briga que me fizeram esta cicatriz, quando seus amigos entraram para defendê-lo. Ele levou a pior, pode ter certeza — afirmou, com um olhar sádico e um meio sorriso no rosto. — Passei uma temporada isolado, mas quando saí, entre minha cara, que não é muito amigável, e a fama que a briga ganhou, ninguém voltou a cruzar meu caminho. De vez em quando, faço alguma bobagem ou grito com alguém para que não se esqueçam que sou capaz de qualquer coisa, e pronto. Se me virem com você, pensarão que é mais uma excentricidade do farang louco. Aliás, me chamo James — disse, estendendo a mão.
— David. Prazer — respondi, dando minha mão. — O que é farang?
— É como os idiotas locais chamam a nós, os ocidentais. Não sei se significa estrangeiro, branco ou demônio, mas também não me importa. E outra coisa: não se confunda. Não é porque falei com você que vou fazer alguma coisa para te ajudar quando te atacarem. Uma coisa é eu gostar de encher o saco deles um pouco, e outra muito diferente é me divertir com alguns chineses por você, para quem eu não dou a mínima.
Estava claro que meu novo amigo não gostava muito dos tailandeses, para não dizer que parecia bastante racista, mas não que tivesse muita escolha. Era a primeira pessoa que se atrevia a falar comigo desde que entrei. Em uma situação normal, teria dado meia volta depois de dizer o que pensava dos racistas, mas eu não estava em uma situação normal. De fato, estava bem do lado contrário. E não discordava totalmente com o fato de que alguns tailandeses mereciam mesmo morrer. Pelo menos alguma.
Ficamos conversando por um tempo de banalidades. Ele riu um pouco dos presos que estavam treinando, gritando com eles como se estivesse na final do campeonato mundial de luta e tivesse apostado todo o seu dinheiro no resultado do combate. Alguns paravam para ver quem estava gritando assim, mas quando viam que era ele, seguiam seu rumo. Eu não gostava muito de chamar atenção e metia a cabeça entre as pernas para que não me reconhecessem.
Ele também passou alguns minutos maldizendo a quantidade de negros que havia na prisão. Como me contou, quase todos eram nigerianos e todos por motivo de drogas. Havia muito tráfico de drogas com a Nigéria. Ainda assim, o líder de todos eles não era nigeriano, com certeza, mas ninguém parecia saber sua origem. Era um homem também negro, grande e forte, com uma curiosa cicatriz em forma de meia lua no rosto e a quem todos pareciam temer. Até James. Pelo visto, era um mercenário africano, um filho da guerra obrigado a lutar e matar desde jovem e que não estava para brincadeira. Parecia muito tranquilo, mas quando precisava, era muito violento e não parecia temer nada nem ninguém. Havia muitos rumores sobre ele, mas ninguém sabia quais eram verdadeiros ou não: que o haviam obrigado a matar seu irmão quando o recrutaram à força em um grupo armado com apenas onze anos; que dois anos depois, ele matou o chefe que ordenou o ataque e o nomearam como líder; que era um assassino de aluguel; que tinha sido escravista na guerra do Congo; que comia o coração de suas vítimas; que tinha violado centenas de homens e mulheres, inclusive menores; que gostava de matar com as próprias mãos; que uma vez queimou vivo um povoado inteiro só porque não quiseram dizer onde se escondia uma pessoa que ele estava procurando; que tinha traficado todo tipo de produtos ilegais… Tantas barbaridades. E, olhando para ele, nenhum me parecia pouco crível. Dava muito medo. Muito. Por sorte, ele me ignorava totalmente.
Quando já se cansou de maldizer todo mundo, levantou-se e se foi da mesma forma como tinha vindo, sem dizer nada. Eu o vi se afastando, sentindo-me em parte aliviado por ter podido falar com alguém depois de tanto tempo.
Eu me conformava com isso a essa altura.

Cingapura 7
Quando cheguei em casa, Dámaso e Josele correram para me perguntar sobre o encontro. Nos sentamos na sala e eu contei o que tínhamos feito, onde tínhamos ido e, principalmente, o que aconteceu no final, na praia. Os dois ficaram pensando um momento. Josele foi o primeiro a falar.
— Com certeza é uma paranoia sua. Ela só está querendo ir mais devagar.
— Não sei, Josele. Você não estava lá. Foi algo mais. No momento, parecia que íamos continuar nos beijando, até que algo passou pela cabeça dela e a fez recuar. Tenho certeza de que ela queria, mas não consigo pensar no que poderia a ter feito parar. Talvez tenha algum tipo de doença contagiosa. Não sei o que pensar.
— Para, burro! Certeza que é algo muito mais simples. As coisas costumam ser mais simples do que achamos, é a gente que complica tudo. Provavelmente tem a ver com o que dizem os costumes do país dela ou algo assim.
— Estou com Josele — afirmou Dámaso. — Combine de se encontrar com ela na semana que vem e veja como a coisas acontecem.
— Espero que tenham razão. Eu a conheço há apenas dois dias, mas essa garota tem algo de especial que me deixa louco.
— Olha lá, você está se apaixonando — disse Josele.
— Quanta bobagem! Como posso estar me apaixonando se a conheci ontem? A única coisa que eu queria era uma garota para passar o tempo.
— Você é quem está dizendo — respondeu Josele. — Na primeira noite, nada de nada, ontem um beijinho e hoje ela está fazendo sua cabeça… Amigo, você tem um problema.
— Sim, eu sei o que é — sussurrou Dámaso, com ironia. — Eu também prestei atenção quando você nos apresentou ela ontem… Ela tem uns argumentos muito convincentes — disse, caindo na risada.
— Como você é besta!
Nós três rimos muito. Um pouco de bobagem não me caía nada mal. É verdade que era uma garota linda e com um corpo incrível. É claro que isso foi a primeira coisa que me chamou atenção quando a vi no bar. Mas, conforme falava com ela no sábado durante a festa, fui percebendo quase com certeza que era ainda mais bonita por dentro do que por fora, e que podia me acrescentar muito. Eu me escutava dizendo essas tolices e ria pensando que não poderia ter me apaixonado em apenas dois dias. Provavelmente era pelo estado de ânimo tão baixo que tinha trazido da Espanha pelo fim do meu último relacionamento. Dámaso me surpreendeu logo com a história de uma garota de Cingapura com quem Josele tinha se envolvido.
— E vai ficar com ela? — perguntei.
— Com ela? Não só não tenho o telefone dela, como também não sei como se chama. Com esses nomes tão diferentes… — Josele não parava de rir.
Voltamos a rir com vontade. Josele era um Casanova incurável. Dámaso não desprezava uma boa oportunidade se cruzava com uma, mas o atraía mais a festa, todos os esportes em que pudesse apostar, bronzear-se e o golfe.
Fui para a cama cedo porque o dia seguinte era segunda e tinha que trabalhar, mas não conseguir pegar no sono a noite toda. Revirava na cama olhando para o celular para ver se ela me mandava uma mensagem ou pensando se eu deveria escrever algo para ela. Acabei não fazendo isso porque não queria incomodá-la, mas vontade não faltou.
Quando chegou a hora de me levantar, tinha dormido apenas algumas horas em curtos períodos. Cada vez que acordava, olhava rapidamente para o celular para ver se tinha alguma novidade. Tentei me convencer de que não era para tanto, mas não tinha jeito. Fomos para o escritório e tomamos café da manhã na cantina com Diego, Tere, Jérôme e uma garota chinesa muito tímida de Pequim chamada Aileen Meng. Desde que soube que Diego e Tere estavam juntos, não conseguia olhar da mesma forma para eles. Agora tudo pareciam gestos de cumplicidade entre eles. Não podia evitar sorrir quando os via juntos. Inveja, talvez.
Jérôme e Diego contavam uma história que parecia ser muito divertida pela forma como todos riam, sobre a cara que fez um turista norte-americano quando deram uma multa de mil dólares a ele por mascar chiclete. Em Cingapura, o chiclete estava banido. O homem tentou discutir com o policial sobre o sentido da exclusão nomeando as liberdades individuais e um monte de ideias mais típicas de filmes que da realidade de Cingapura. Eu me esforçava para esboçar um sorriso quando notava que os demais também faziam isso, mas estava muito distraído. No fim, me pareceu que já era uma boa hora para falar com Sumalee. Me afastei um pouco dos outros e escrevi uma mensagem a ela, que respondeu quase imediatamente.
— Bom dia.
— Olá!
— Posso ligar para você?
— Sim, claro.
Saí da cantina e liguei para ela enquanto dava uma volta pelos corredores.
— Como vai?
— Bem, e você?
— Muito cansado, não pude dormir muito.
— E… por que?
— Pensando sobre ontem.
— Foi legal, não foi?
— Sim, foi ótimo, mas você me deixou um pouco confuso.
— Por que?
Era o momento da verdade. Meu lema nesses casos era que a sinceridade leva você para onde deve estar ou para onde acabará indo, portanto, quanto antes, melhor. Com todas as consequências.
— Não sei. Eu gostei de beijá-la, tinha muita vontade de fazer isso. Mas depois você me deu a sensação de que algo a deteve. Talvez eu tenha me precipitado e não deveria ter me lançado tão depressa. Nos conhecemos há apenas dois dias…
— Não, não, não. Eu gostei.
— Então por que essa cara de repente?
— Por nada… Estava cansada e estava ficando muito tarde para conseguirmos sair do parque com luz. Só isso.
— Tem certeza? Sumalee, não quero pressioná-la. Podemos ir no ritmo que quiser, mas preciso que seja sincera. Odeio mentira, para o bem e para o mal.
Durante um momento, ela não disse nada. A espera estava me deixando louco.
— Sumalee?
— Sim, sim. De verdade, não era nada. Gostei do beijo. Foi um dia muito divertido e com um final muito especial.
— Eu também gostei muito. De tudo, quer dizer. Não só do beijo. O mercado, a comida, que estava deliciosa no restaurante da sua amiga, Kai-Mook, e o passeio de bicicleta pelo parque… e o beijo, claro. Essa foi a melhor parte. O que acha de nos encontrarmos de novo?
― Claro! — disse, com a voz jovial que tanto gostava de ouvir. — Mas antes de quarta-feira, não posso. Tenho muito trabalho.
— Até quarta-feira! Tudo bem, tudo bem. Tentarei aguentar até lá. Se quiser, posso te convidar para jantar.
— Me parece uma boa ideia. Onde?
— Bom, digo a você amanhã ou na quarta de manhã. Tenho que encontrar um lugar bonito à altura do restaurante da sua amiga.
— Justo. Vamos nos falando. Preciso ir, estão chegando clientes na agência. Um beijo.
— Outro.
Ouvi o som do beijo pelo telefone. Ainda que fosse virtual, também foi muito bom. Não sabia muito bem que conclusão tirar da conversa, porque no começo parecia reservada e prudente, mas depois voltou a ser a Sumalee risonha. No fim, a pessoa acredita no que quer. Guardei o celular no bolso e me dirigi para minha mesa com um sorriso de orelha a orelha torcendo para que o tempo passasse o quanto antes para que eu pudesse vê-la na quarta-feira. Quando contei a meus colegas de apartamento sobre a conversa, eles comemoraram por confirmar que não era nada e Josele tomou para si a tarefa de procurar um restaurante diferente para poder levá-la.

O dia passou voando. Eu me sentia como se estivesse flutuando em uma nuvem. Toda vez que fechava os olhos, lembrava do beijo e revivia o suave toque de seus lábios entre os meus. Minha pele se arrepiava só de pensar.
Jérôme, Dámaso e outros colegas iam beber alguma coisa na saída do trabalho. Como não tinha muito mais o que fazer, fui com eles. Fomos a um pub que parecia mais um de qualquer esquina de Londres, com a diferença de que a metade da clientela era de origem asiática. E que a bebida era caríssima. Muita gente fazia um “esquenta” antes, que era legal, e faziam isso principalmente em algumas pontes que ligam a área Clark Quay, região de caminhada por excelência para os turistas, ou iam a um hawker para comprar baldes de cerveja Tiger. Em seguida, iam para as discotecas com o álcool no corpo, como eu fazia em Madri quando era mais jovem. Em nosso caso, que não pagávamos pela moradia, dinheiro não era um problema.
Depois, organizamos um campeonato de bilhar e dardos que me manteve entretido até ir para casa. Ali, assaltei um pouco a geladeira e fui para a cama cedo. Sem ter dormido na noite anterior e com tanta festa, meu corpo se vacilava de vez em quando. Um pouco antes de me preparar para dormir, escrevi para Sumalee para desejar boa noite. Ela me mandou um desenho de uma menina oriental mandando um beijo que me fez sentir euforia e calor por dentro e eu retornei com outro igual. Naquela noite, dormi como um bebê.

No dia seguinte, levantei cheio de energia. Fomos para o trabalho, mas desci vários pontos antes do nosso. Eu queria me movimentar um pouco. Precisava. Além disso, assim poderia ver um pouco mais da cidade. A rua estava cheia de ocidentais que estavam indo trabalhar. Isso não era de se estranhar, levando em conta que 40% da população de Cingapura era formada por expatriados.
Passei o dia trabalhando sem parar e arrastando pelo andar com minha energia o pobre Jérôme, que não tinha ido dormir tão cedo quanto eu e estava com ressaca. Quando terminou o dia, eu ainda estava hiperativo, mas não convencia ninguém a fazer algo interessante, a não ser Dámaso a jogar tênis, então fomos para nossa casa e ficamos mais de uma hora correndo pelas pistas. Dámaso me deu uma surra, mas não me importei. A única coisa que eu precisava era gastar um pouco do excesso de energia. Ele, por sua vez, ficou me lembrando por vários dias, arrependendo-se de não ter apostado antes de começar.
Um colega norte-americano, Sam, me aconselhou um lugar que me pareceu sensacional para meu encontro do dia com Sumalee. Solucionado o assunto do lugar, não tinha muito mais o que fazer, por isso, liguei para minha mãe, contei como tinham sido aqueles dias, sem dizer nada sobre Sumalee para que ela não começasse com um filme fantasioso de casamento e muitos netos. Depois, eu e meus colegas de apartamento passamos o resto da tarde jogando Texas hold'em na sala com Shen, um cingapurense muito simpático de origem chinesa que era nosso vizinho. Ali pude me desforrar da derrota no tênis e, de quebra, pagar parte do jantar do dia seguinte. Dámaso não levou muito bem, era muito competitivo. Não fazia outra coisa a não ser dizer que fazia semanas que estava com muita má sorte, mas não sabíamos do que ele estava falando porque era nossa primeira partida. No fim, ele pagou o que devia.
Queria escutar Sumalee antes de ir para a cama, então liguei para ela.
— Muito boa noite, Sumalee.
— Olá, Davichu!
— Como você disso? Não está nos livros.
— O que acha? Que não posso pesquisar por minha conta? — ela disse, fazendo cara de inocente. — Falei de você para uma colega portuguesa do trabalho que fala espanhol e morou muitos anos na Espanha.
— Ah, sim? E o que mais ela contou?
— Coisas sobre os espanhóis. Te conto quando nos virmos. Ela também me ensinou a dizer “oi” em espanhol: houla.
— Quase, quase — disse, sorrindo. — Diga para ela corrigir sua pronúncia e veremos se amanhã você já vai estar falando bem.
— Já sabe onde vai me levar?
— Sim. Não sei se você já foi lá, mas me pareceu um lugar muito original e me lembra meu país.
— Onde?
— É uma surpresa. Espero, pelo menos. Amanhã você saberá.
— Não me deixe assim! Dá uma diga pelo menos.
— Tudo bem. Você terá que ganhar sua comida.
— O que?
— Essa é a dica, linda. Se eu deixar muito fácil, estragará a surpresa.
— Tudo bem, tudo bem. Onde nos encontramos?
— O que acha da estação de metrô de Seng Kang, às 7:30 da noite?
— Tão ao norte? Você vai me matar de curiosidade, mas aguentarei até amanhã. Está bem para mim! Irei logo depois do trabalho.
— Eu também. Nos vemos amanhã então. Um beijo enorme.
— Um beijo, David.
Doces sonhos, Sumalee, pensei enquanto desligava o celular. Doces sonhos.


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Sumalee Javier Salazar Calle

Javier Salazar Calle

Тип: электронная книга

Жанр: Книги о приключениях

Язык: на португальском языке

Издательство: TEKTIME S.R.L.S. UNIPERSONALE

Дата публикации: 16.04.2024

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О книге: Uma viagem a Cingapura para dar início a uma nova vida. Lá, o protagonista conhecerá a esperança, a traição, a dor e viverá uma tórrida história de amor com uma mulher avassaladora. Como ele foi parar no inferno de Bang Kwang, uma prisão tailandesa de segurança máxima? O que fez com que ele se transformasse em um homem totalmente diferente, capaz das mais obscuras atrocidades?

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